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"Biscoitos de areia" e memórias afetivas
A relação entre memórias afetivas e comida é vivenciada, em algum momento, por todos nós. Na literatura, Marcel Proust e suas madeleines mergulhadas em uma xícara de chá tornaram-se representativos dessa associação: uma simples rememoração provocada pelos sabores levou à narrativa de toda a série “Em busca do tempo perdido”.
Há duas semanas falamos aqui no Blog do CPPR sobre uma receita muito tradicional e muito afetiva em diversas parte do Brasil: o bolo de fubá. Essa foi uma das preparações em comum nos muitos cadernos de receitas de imigrantes e descendentes exibidos atualmente na exposição “Migrações à Mesa”, do Museu da Imigração.
Porém, quando tratamos de cadernos de receita, estamos falando somente daquele modelo tradicional de guardar informações culinárias, presentes nas cozinhas de uma geração pouco habituada com a internet, por exemplo? Como as pessoas se relacionam com as receitas e como as reproduzem e as passam adiante hoje em dia?
Andrea é chilena e vive no Brasil há quase oito anos. Participante do nosso projeto “Mulheres em movimento: Migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo”, ela nos contou uma história bastante singular sobre a recuperação de uma receita afetiva de sua infância.
Trata-se das “Galletas de chuño”, ou “Galletas de Arena”, espécie de biscoitinho quenão era seu favorito quando criança, pois achava seco e desmanchava muito na boca. Depois de adulta Andrea aprendeu a aprecia-lo e hoje conta que eles a fazem (assim como a Proust!) se transportar para outros tempos e lugares: mais precisamente, para sua infância no Chile, perto de sua avó Elena:
“Minha abuelita Elena, sem ‘h’ como ela gostava sempre de deixar claro, era uma mistura de vovó fofa, meiga, que tinha sempre em casa bolos e biscoitos prontos a serem devorados, e avó moderna, que trabalhava fora de casa, gostava de viajar e fazer amizades. Ela era neta de alemãs, chegadas no sul do Chile em meados do século XIX, e sureña, da cidade de Osorno, região que abriga a maior colônia alemã do país.”
Segundo Andrea, as chamadas gringas eram zelosas de suas receitas e pouco as compartilhavam; mas, de alguma forma, Elena aprendeu inúmeras preparações típicas da culinária alemã, misturadas com a culinária do campo chileno. Quando adulta, ela migrou para Santiago e formou sua família. Foi lá que nasceu sua neta Andrea:
“Eu cresci entre os cheiros das nozes torrando, da manteiga se derretendo, dos doces de fruta se cozinhando por horas na panela e dos biscoitos assando-se no forno do seu fogão. Aprendi algumas receitas com ela mas, infelizmente, não tudo que queria ter aprendido.”
Assim como outras mulheres participantes do projeto “Migrações à mesa”, guardiãs dos cadernos de receitas atualmente expostos no Museu, Andrea conta que, já no Brasil, e especialmente após o nascimento de seu filho, sentiu a necessidade de retomar esse contato com suas raízes, e foi aí que se lembrou das galletas de arena.
Ao procurar a receita e perguntar para seus familiares, porém, percebeu que não existia nenhum registro. É aí que a história ganha contorno modernos, mas não menos emocionantes: Andrea partiu para a internet e descobriu que na cidade chilena de Puerto Varas ainda existe um grupo de mulheres descendentes de alemães que preparam receitas da cultura germânica.
“Entrei em contato e descrevi o biscoito, e disse que minha abuelita o chamava de Galletas de Arena. Elas me responderam que provavelmente era o Sandnüsse que significa exatamente isso: biscoito de areia; e me passaram a receita.”
Com a receita em mãos, Andrea se deparou com mais um obstáculo, muito comum quando pensamos na circulação de receitas entre diferentes culturas e lugares: a dificuldade de se encontrar ingredientes específicos. Nesse caso, tratava-se no chuño, uma farinha de batata desidratada, muito comum nos países andinos.
“Pensei que não teria mais como fazer. Mas então descobri que aqui existe a fécula de batata, que é essencialmente a mesma coisa. Já com os ingredientes, coloquei a mão, literalmente, na massa e comecei a fazer os biscoitinhos. Quando eles ficaram prontos e os experimentei, me transportei em um segundo a todos esses momentos felizes que vivi com minha avó e fiquei muito agradecida.”
Para quem visitou a exposição “Migrações à Mesa”, os pontos de contato entre esta e aquelas histórias são evidentes, embora os suportes para contá-las sejam diferentes. Para quem ainda não foi, fica o convite – estará em cartaz até 24 de setembro – para descobrir histórias de afetos, memórias, pertencimentos, forno e fogão.
Segue a receita, tal qual nos foi passada (também pela internet!) por Andrea:
Biscoitos de Areia (Sandnüsse ou Galletas de chuño)
500g de manteiga, morna e suave
500g de açúcar
4 ovos batidos
500g de farinha de trigo
750g de chuño*
2 colheres de chá de raspas de casca de limão, de preferência siciliano.
2 colheres de chá cheias de fermento químico.
* O chuño pode-se encontrar nas feiras bolivianas, mas caso não achar pode usar a fécula de batata.
Preparo
Tempo de trabalho: 30 minutos
Tempo de descanso: 12 horas
A manteiga e o açúcar se batem até que a mistura esteja suave e esponjosa. Adicionar os ovos aos poucos e ir batendo até que fique tudo misturado e cremoso.
Logo adicione muito devagar a farinha e o chuño.
Deixe a mistura descansando toda a noite.
No dia seguinte, estender a massa em forma de minhoca e cortar pedaços do tamanho de uma amêndoa, aperte com o dedo sobre a mesa e forme pequenas bolinhas. Coloque numa forma plana para forno.
Deixe no forno a 200 graus de 10 a 15 minutos até que estejam douradas.