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Mobilidade Humana e Coronavírus: Abrindo um diálogo
Antes do primeiro caso brasileiro de infecção por COVID-19 ser noticiado no dia 25 de fevereiro, conhecemos a história das 34 pessoas trazidas de Wuhan pelo exército brasileiro[1]. Tiradas do, então, epicentro de disseminação do vírus, adultos e crianças foram mantidos por 14 dias numa base aérea de Anápolis (GO), naquela que seria a primeira situação de isolamento ocorrida por aqui. A preocupação no momento era a de garantir o retorno daquelas pessoas, sem comprometer a saúde dos demais no local de chegada. Na construção recente de um mundo que depende da intensa circulação - aquele chamado “globalizado” -, o episódio surgiu como mais um inocente capítulo na história da mobilidade humana.
Em meados de março, porém, essa imagem se encontra significativamente modificada. Companhias aéreas cancelaram voos, inúmeros países do continente sul-americano e outros decretaram medidas de restrição de circulação de pessoas pelas fronteiras e proliferam discussões entre especialistas e agentes da saúde sobre o “permanecer em casa” como atitude mais indicada para a contenção da escalada vertiginosa da disseminação do vírus. Apesar de sabermos que a mobilidade humana sempre foi um “direito mal distribuído”[2], na medida em que nunca deixaram de existir aqueles mantidos na imobilidade, a pandemia impôs novas dinâmicas para a mobilidade, sendo necessário repensar alguns paradigmas que nos trouxeram até aqui. Em suma, observamos nesses intensos dias uma rápida transformação do que pode significar mobilidade humana e estamos em tempo de começar esse debate.
Ao cruzar fronteiras, migrantes sempre efetuaram deslocamentos que são mais que mudanças de coordenada geográfica. Acessaram segmentos específicos do mercado de trabalho no local de chegada, perderam alguns direitos (notadamente, o político já que o voto imigrante é realidade em poucos países), lutaram por outros e tiveram que lidar com dinâmicas de gênero e de raça encontradas no caminho. Nesses deslocamentos, passavam a enfrentar outros tipos de fronteiras sociais que vão além das nacionais. A partir de sua capacidade de agencia e mobilização, esses sujeitos não deixavam de estressar os limites dessas fronteiras sociais, em busca de melhores condições de trabalho, moradia e saúde. Mover-se pelo social, então, é uma faceta importante do que contemporaneamente entendemos também por mobilidade.
Se o vírus não discrimina, acometendo todas e todos, compartilhamos da possibilidade de adoecer. Apesar dessa condição em comum, não é pelo surgimento da pandemia que as hierarquizações e inequidades já existentes deixam de atuar, por vezes inclusive sendo reforçadas nesses momentos de crise. O surgimento de casos de racismo e de xenofobia são sinais óbvios dessas hierarquizações, mas outras demandas geradas pela própria pandemia revelam com mais força as persistências das desigualdades existentes. Como manter a quarentena quando se depende da saída diária para conseguir o sustento? Como obter informação em um idioma que você não domina? Como se isolar em uma casa que não oferece as condições para tal? Essas e outras perguntas vêm sendo postas com urgência em nosso cotidiano, revelando o desafio de produzir algumas imobilidades necessárias no momento atual.
Buscando acompanhar a veloz mudança que parece se impor sobre o que pode significar mobilidade e também imobilidade humana, o Museu da Imigração do Estado de São Paulo inaugura a série “Mobilidade Humana e Coronavírus”. Nele, buscamos em análises de pesquisadorxs e depoimento de migrantes abrir um novo debate sobre o que está sendo e o que poderá ser da mobilidade humana daqui em diante. Publicaremos uma série de artigos e entrevistas em que serão tratados temas como migração internacional, saúde pública, saúde global, desigualdades sociais, trabalho, relações de gênero, xenofobia e racismo. Frente aos desafios urgentes que a pandemia nos impõe, buscamos desde o Museu da Imigração contribuir para a compreensão do mundo que nos cerca, propondo que imaginemos juntos o que será da mobilidade humana a partir de agora.
Referências bibliográficas
[2] VENTURA, Deisy; YUJRA, Veronica. Saúde de migrantes e refugiados – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019.