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Hospedaria de Imigrantes do Brás: o que os documentos ainda têm a nos contar?
Nicole Alexsandra - Analista de Pesquisa Jr.
O projeto Uma Nova História da Hospedaria de Imigrantes tem como principal objetivo pesquisar e analisar os registros históricos preservados da instituição e que estão sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Para isso, a equipe do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência do Museu da Imigração tem se dedicado ao estudo da documentação administrativa da antiga Hospedaria, fotografando e examinando cuidadosamente os materiais disponíveis. Esse trabalho de pesquisa e sistematização das informações é essencial para a reconstrução de aspectos ainda pouco explorados e conhecidos sobre os últimos anos de funcionamento da Hospedaria.
Esse acervo está disponível exclusivamente para consultas presenciais, mediante agendamento, no Arquivo Público do Estado de São Paulo. O foco da pesquisa tem sido os registros produzidos entre as décadas de 1960 e 1970, período que marca as fases finais da instituição, quando seu papel já passava por transformações [1] e as dinâmicas migratórias no Brasil sofriam mudanças significativas [2]. A análise desse material possibilita uma compreensão mais aprofundada do funcionamento da Hospedaria, dos processos burocráticos de acolhimento dos migrantes e do impacto das políticas migratórias da época na gestão da instituição.
Compreender esse acervo exige reconhecer que o documento histórico não é apenas um vestígio do passado, mas um produto da sociedade que o criou, refletindo as relações de poder vigentes no momento de sua produção [3]. Isso significa que cada registro carrega não só informações objetivas, mas também indícios das condições sociais, econômicas e políticas que influenciaram sua elaboração. [4]
Dessa forma, estudar a história da Hospedaria implica também refletir sobre as estratégias adotadas pelo Estado brasileiro para gerenciar os fluxos migratórios ao longo do tempo. Registros aparentemente banais — como protocolos para a entrega de correspondências [5], anotações de imigrantes em busca de conhecidos [6], episódios de conflitos [7] ou até mesmo registros de ocorrências policiais [8] — revelam aspectos do cotidiano institucional e das interações sociais ali estabelecidas. Esses documentos não apenas expõem as normas e procedimentos da Hospedaria, mas também as dificuldades enfrentadas pelos migrantes e as estratégias por eles desenvolvidas para se adaptar à nova realidade. Nesse sentido, o estudo do acervo contribui para uma visão mais ampla dos desafios da migração e do papel da Hospedaria nesse processo.
Além do acervo físico do Arquivo Público do Estado de São Paulo, outra fonte valiosa tem sido a Hemeroteca Digital, vinculada à Biblioteca Nacional, que reúne jornais e revistas de diferentes épocas. Essas publicações não se limitam a relatar acontecimentos, mas também expressam percepções, discursos e representações sociais sobre a migração, tanto nacional quanto internacional. Como destaca Renée Barata Zicman, “os jornais são ‘arquivos do quotidiano’, registrando a memória do dia-a-dia, e este acompanhamento diário permite estabelecer a cronologia dos fatos históricos” [9]. A análise desses periódicos possibilita compreender como a migração era noticiada, quais aspectos eram enfatizados e de que forma os migrantes se inseriam no cotidiano urbano e nas transformações sociais da época.
Embora seja necessário considerar a parcialidade dessas fontes e adotar metodologias críticas para sua análise enquanto fonte histórica [10], os jornais podem oferecer contribuições significativas para os estudos migratórios. Como exemplo, é possível encontrar reportagens que mencionam a Hospedaria ao noticiar a realização de um estudo genético com migrantes nacionais hospedados na década de 1960 [11], o acolhimento de guerrilheiros paraguaios exilados do Movimento 14 de Maio [12], ou ainda a curiosa história de dois jovens gaúchos que planejavam ir a pé de Porto Alegre (RS) ao Panamá, mas foram abrigados na Hospedaria do Brás após desistirem da jornada, chegando apenas até Brasília [13].
Nos próximos conteúdos, compartilharemos resultados das pesquisas em andamento, aprofundando a análise da documentação interna da Hospedaria. O objetivo é não apenas refletir sobre as condições e a burocracia envolvidas no acolhimento dos migrantes, mas também examinar os mecanismos de controle, as transformações nas políticas migratórias ao longo do tempo e os impactos dessas diretrizes no cotidiano institucional. Além disso, buscamos compreender como esses registros administrativos dialogam com outras fontes históricas, contribuindo para uma leitura mais ampla das migrações e das práticas institucionais adotadas para lidar com os fluxos migratórios naquele período.
Referências bibliográficas
[1] PAIVA, Odair da Cruz; MOURA, Soraya. Hospedaria de imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra. 2008. p. 29.
[2] BRITO, Fausto. Brasil, final do século: a transição para um novo padrão migratório. In: CARLEIAL, Adelita (org.). Transições migratórias. Fortaleza: Iplance, 2002.
[3] MERLO, Franciele; KONRAD, Glaucia Vieira Ramos. Documento, história e memória: a importância da preservação do patrimônio documental para o acesso à informação. Informação & Informação, Londrina, v. 20, n. 1, p. 26–42, 2015. DOI: https://doi.org/10.5433/1981-8920.2015v20n1p26. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/18705. Acesso em: 29 mar. 2025.
[4] LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Suzana Ferreira Borges, Bernardo Leitão e Irene Ferreira. Campinas: Unicamp, 1990. p. 545
[5] Informação disponível no fundo da Secretaria de Promoção Social. Código de referência: BR APESP 3S25, item 3.4.158 – Livro de Protocolo para entrega da correspondência da assessoria de revisão (1965–1969).
[6] Declaração da Sra. Maria Garcia Diaz, espanhola, que esteve no departamento nos dias 9 e 10 de outubro de 1974 tentando localizar a cliente Maria da Conceição Teixeira. Informação disponível no fundo da Secretaria de Promoção Social. Código de referência: BR APESP 3S25, item 3.4.114 – Livro Registro Protocolo (1973–1974).
[7] Em 11 nov. 1974, as assistidas Rita de Cássia Lima e Laura R. dos Santos envolveram-se em ocorrência de agressão. Informação disponível no fundo da Secretaria de Promoção Social. Código de referência: BR APESP 3S25, item 3.4.114 – Livro Registro Protocolo (1973–1974).
[8] Em 26 nov. 1974, há registro de ocorrência envolvendo policiais e o migrante Francisco M. Bezerra. Informação disponível no fundo da Secretaria de Promoção Social. Código de referência: BR APESP 3S25, item 3.4.114 – Livro Registro Protocolo (1973–1974).
[9] ZICMAN, Renée Barata. História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, [S. l.], v. 4, 2012. p. 90. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12410. Acesso em: 9 abr. 2025.
[10] LEITE, Carlos Henrique Ferreira. Teoria, metodologia e possibilidades: os jornais como fonte e objeto de pesquisa histórica. Revista Escritas, [S. l.], v. 7, n. 1, p. 03–17, 2015. DOI: 10.20873/vol7n1pp03-17. Disponível em: https://periodicos.ufnt.edu.br/index.php/escritas/article/view/1629. Acesso em: 9 abr. 2025.
[11] No início da década de 1960, um grupo de geneticistas e antropólogos da Universidade de São Paulo realizou um estudo sobre a diversidade genética das populações nordestinas hospedadas na Hospedaria de Imigrantes. A matéria completa está disponível em: Ciência & Cultura, v. 14, n. 2, p. 35–37, jun. 1962. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/003069/3809. Acesso em: 4 abr. 2025.
[12] Diário da Noite, n. 10.763, 7 mar. 1960, p. 5. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/093351/58076. Acesso em: 11 mar. 2025.
[13] Diário da Noite, n. 10.832, 26 mai. 1960, p. 5. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/093351/59294. Acesso em: 28 fev. 2025.