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Gestão de Acervos: os desafios da salvaguarda em museus históricos
Por Otávio Balaguer
A formação dos museus é marcada pelo exercício de poderes dominantes em seus contextos de criação, entre os séculos XVIII e XIX. A instituição nasce no bojo da consolidação dos Estados Nacionais, estruturados pelo colonialismo e pela expansão da exploração dos recursos humanos, naturais e materiais dos povos. À época, estabeleceram-se novos fluxos comerciais, que impulsionaram a industrialização, ocasionando uma profunda transformação no modo de vida ocidental; em suma, os museus são parte da história do capitalismo.
Nesse sentido, operavam e operam como tecnologia a serviço de um poder e instrumento de controle do mundo, onde se descreve, classifica, pesquisa e exibe tudo o que é conhecido. Mas como assim? É simples; segundo a socióloga Amy Sodaro, "museus são o lugar onde a sociedade pode se apresentar e representar como gostaria de ser vista"[1]. Porém, entre a sociedade, que será representada, e o museu, espaço de representação, há intermediadores e interessados, que comumente são mantenedores, curadores e demais envolvidos, como conselheiros e gestores públicos ou privados. Portanto, é no emaranhado de tais relações que o exercício do poder acontece.
A principal operação que denota autoridade é a seleção, ou seja, a realização de "escolhas", a decisão daquilo que será musealizado – ação discutida adiante – e daquilo que não será. Atualmente, o processo é norteado por uma série de documentos institucionais, sobretudo a Política de Acervo, pela atuação de Conselhos de Orientação, compostos por especialistas e representantes de núcleos da sociedade interessados na função social do museu. Contudo, até a consolidação dos instrumentos de Gestão Museológica, estabelecidos no Brasil pela Lei Federal nº 11.904/09, que institui o Estatuto de Museus, tal operação era feita ao gosto dos agentes museais e políticos – quando cabível – atuantes à época. A antropóloga Regina Abreu nos alerta em "A fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil", publicação de 1996, que tais agentes objetivavam sacralizar determinados atores e suas perspectivas da História Nacional[2].
Isto é, em última instância, a coleta de acervos não se orientava por Procedimentos Operacionais Padrão, Políticas de Aquisição e Descarte, e os próprios museus não possuíam em seus documentos fundantes – tais como o Ato de Criação e o Plano Museológico – missão, visão, valores e objetivos claramente expressos. Hoje, compreendemos que a ausência desses elementos fragiliza o desempenho das ações de salvaguarda, pesquisa e comunicação do patrimônio museológico, porém, ainda lidamos com as escolhas do passado, o que, na verdade, é normal na história das instituições.
Não é difícil imaginar que a ausência dessas balizas acarreta pendências curatoriais, dissociação e lacunas de informações que justifiquem o próprio processo de salvaguarda das coleções. A solução desses problemas se dá no ciclo curatorial, já que, em se tratando de Museologia, a curadoria é o conjunto de ações e cuidados desenvolvidos nas coleções de um museu, que se completam na Comunicação Museológica, ou seja, nas exposições e na ação educativa. Porém, o termo "curadoria" ganhou uma série de empregos – sobretudo no mundo da arte – e se confunde, hoje, com a simples organização e produção de exposições. Entretanto, isso é tema para um artigo próprio.
Como vimos, a trajetória dos museus, especialmente dos museus históricos, é marcada pelas pendências gerenciais em relação aos acervos, pois esses se compuseram de coletas desnorteadas, provocando, muitas vezes, um rápido "acúmulo" de tudo aquilo que é produto dos saberes e fazeres humanos e resistiu à passagem do tempo. A matemática orientadora desse processo é simples: tudo que é ou se tornará "antigo" pode-se considerar "histórico", já que é um registro de sua época e de seu núcleo de circulação social. Nessa lógica, a possibilidade de musealização é infinita e a coleta interminável, porque tudo é passível de ser salvaguardado.
O resultado disso é visível nas áreas de guarda e nas salas de exposição mundo afora. Quem nunca entrou em um pequeno (ou grande) museu histórico e se viu dentro de cômodos abarrotados de objetos do chão ao teto? Verdadeiros "gabinetes de curiosidades". Isso ocorre, pois, há um excesso de itens considerados acervo, que não estão adequadamente processados, acondicionados e alocados em área de guarda. O resultado disso é a exposição de, praticamente, a totalidade deles, sem um cuidado comunicativo. Quando se acumula muito, sem preservar os valores específicos que dirigem o processo de coleta, perde-se o valor intrínseco a cada item e a confusão do todo ocupa excessivamente os trabalhos técnicos. Cabe ressaltar, contudo, que não fazemos aqui nenhum juízo de valor das instituições que assim funcionam.
No Museu da Imigração, essa reflexão já foi provocada pela instalação "Cúmulo", obra da artista Emilia Estrada, executada no escopo do Programa de Residência Artística praticado pela instituição. A proposta é discutida no texto 'Obra ‘Cúmulo': reflexões sobre acúmulos e acervos de museus, de autoria da conservadora Juliana Batista, publicado nesse blog na categoria "Bastidores"[2]. A proposta da intervenção foi pensar o processo de construção do patrimônio da imigração e perceber o volume de acervo gerado por ele.
Mas, para entender melhor a Gestão de Acervos e a sua importância, é preciso conhecer um pouco do conceito de "musealização". Segundo Marília Xavier Cury, apoiada nas reflexões de Cristina Bruno, a musealização é um processo que tem seu clímax na comunicação:
entende-se o processo de musealização como uma série de ações sobre os objetos, quais sejam: aquisição, pesquisa, conservação e documentação. O processo inicia-se ao selecionar um objeto de seu contexto e completa-se ao apresentá-lo publicamente por meio de exposições, de atividades educativas e de outras formas. Compreende, ainda, as atividades administrativas como pano de fundo desse processo (CURY, 2005, p.26)[4]
A autora avança e propõe uma representação gráfica (fig. 1) bastante oportuna para visualizar os processos, que são concomitantes e devem acontecer continuamente – caso a instituição esteja realizando aquisições – a fim de evitar dissociação:
Identifica-se que tal processo, factualmente, não se desenvolveu com tranquilidade em museus históricos, devido à ausência de documentação institucional robusta e às instabilidades nas equipes técnicas, sobretudo em equipamentos ligados à administração direta – no fundo, um desafio comum a todas as organizações. Mas, isso quer dizer que o processamento técnico dos acervos não acompanhou o fluxo de aquisição. Esta acontece de diferentes formas, como compra, doação, permuta, entre outros, ainda que a realidade nos mostre que as entradas no acervo por meio de doações são, de longe, as mais volumosas.
A ausência dos procedimentos acima descritos ocasiona a chamada "dissociação", que conforme a "Lista de Terminologias do Cadastro Estadual de Museus de São Paulo" explica, é
um agente de deterioração do acervo museológico gerado a partir da desorganização dos procedimentos de gestão de uma instituição museológica, resultado na perda de objetos da coleção ou de suas respectivas informações. (SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA; SISEM-SP; ACAM PORTINARI, 2019, p.10)[5]
Quando um acervo passa por dissociação física, ou seja, a perda material de componentes, fica muito claro que há um obstáculo em seu processamento. Contudo, quando há perda informacional, o vazio que se abre é ainda maior, já que gera dificuldade em se entender a intencionalidade da aquisição, dados intrínsecos e, na maioria das vezes, extrínsecos ao objeto, que, entretanto, oferecem subsídios essenciais para a justificação da salvaguarda e comunicação museológica. O resultado disso é a ampliação das pendências gerenciais do acervo e a sobrecarga do trabalho dos técnicos, pois se abrem lacunas na etapa de documentação museológica.
Com isso, ficam claros quais são os desafios gerenciais dos acervos históricos: a realização da musealização em sua plenitude. O vácuo deixado pelas ausências enumeradas só é sanado com a implementação, aprofundamento ou atualização dos instrumentos gerenciais, dentre os quais está o inventário de acervo e a pesquisa. Esta alimenta o acervo com informações, e aquele é considerado o elemento mínimo de controle, identificação e localização dos itens em guarda pelas instituições museológicas, sejam eles de propriedade do ente mantenedor ou entradas temporárias na coleção.
Para Nicola Ladkin, professora adjunta da Texas Tech University, a gestão de acervo "é fundamental para que o acervo sustente a missão do museu" (BOYLAN, 2015)[6]. Podemos deduzir, então, que quando os processos museológicos e a musealização não são eficientes, outros elementos da vida cultural dos museus tomam o seu espaço e podem provocar o apagamento da missão institucional, em detrimento de atividades de outras ordens, pois, os interessados não conseguem ver de onde emana a "energia museal" de suas instituições. A fonte disso não é nada mais que o desconhecimento de seus acervos.
A reflexão nos conduziu para o entendimento de que os esforços técnicos de uma instituição museológica devem estar centrados em torno de seu acervo (museológico). A permissividade com as ditas pendências gerenciais leva à corrosão da pedra angular do museu, acarretando a insustentabilidade da instituição.
Portanto, reverter tal cenário deve ser preocupação central de uma gestão responsável, que, por sua vez, é incompatível com um acúmulo fetichista. O termo "fetiche" é aplicado em diversos campos do conhecimento; em museologia, podemos entendê-lo pelo ângulo do curador de arte Jens Hoffmann, que o descreve como uma "aberração, um objeto que possui uma importância de tamanho fora do comum na mente de um indivíduo ou de uma cultura" (HOFFMANN, 2017, p. 27)[7]. Isto é, um determinado contexto museológico pode privilegiar o acúmulo fora da normalidade, sendo que os museus históricos não têm a obrigação de tudo coletar, como vimos anteriormente. Ainda que fetiche, os museus e a história econômica da atualidade tenham tudo a ver com "acúmulo", a Museologia nos orienta em sentido contrário desde a Mesa Redonda de Santiago do Chile em 1972 – marco histórico da disciplina, que, nesse momento, comemora 50 anos.
Por fim, urge aceitar que as fragilidades institucionais não devem nos envergonhar ou assustar, porque são delas que saem as perguntas que resultam em Programas de Necessidades. Estes, por sua vez, impulsionam a implementação e qualificação dos processos museológicos, pois, "ser museu" é idealizar, implementar, executar, monitorar e avaliar processos, os quais consolidam o ciclo curatorial.
Referências
[1] SODARO, Amy. "History, Memory and Nostalgia in Berlin's Jewish Museum". International Journal of Politics, Culture and Society, Vol. 336, no. 1, Special Issue: Screen Memory, March 2013, p.77-91.
[2] ABREU, Regina. A fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
[3] BATISTA, Juliana. Obra "Cúmulo": reflexões sobre acúmulos e acervos de museus. Museu da Imigração do Estado de São Paulo, Blog, Bastidores, 31 jan. 2020. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/blog/bastidores/obra-cumulo-reflexoes-sobre-acumulos-e-acervos-de-museus.
[4] CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005.
[5] SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA; SISEM-SP; ACAM PORTINARI. Lista de Terminologias: Cadastro Estadual de Museus de São Paulo. Brodowski: Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari; São Paulo: Secretaria de Cultura e Economia Criativa, 2019. Disponível em: https://www.sisemsp.org.br/cadastro-estadual-de-museus/documentos-uteis/.
[6] BOYLAN, Patrick J. (Org.). Como gerir um museu: manual prático. Brodowski: Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari; São Paulo: Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.sisemsp.org.br/como-gerir-um-museu/.
[7] HOFFMANN, Jens. Curadoria de A a Z. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.