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Obra “Cúmulo”: reflexões sobre acúmulos e acervos de museus
A instalação “Cúmulo”, da artista Emilia Estrada, montada no Museu da Imigração entre os meses de agosto e novembro de 2019, fruto do projeto desenvolvido dentro do Programa de Residência Artística, colocou em exposição um grande volume de itens da coleção institucional promovendo questionamentos acerca da construção do patrimônio da migração, das intencionalidades nas ações de preservação e da valorização da herança cultural de grupos migrantes, aspectos que impactam os possíveis desdobramentos para a construção de identidades coletivas.[1] Se por um lado o título da obra nos apresenta, por definição, a ideia de “coisas amontoadas ou sobrepostas”, refletindo a provocação inerente ao trabalho da artista sobre as camadas de significados resultantes dessa seleção, por outro, nos remete à dimensão física ocupada por esse patrimônio ao evidenciar seu “volume” e ao consequente impacto da manutenção desses acervos aos museus.
Ao pensarmos sobre esse segundo aspecto, devemos lembrar que nem todas as coleções de um museu permanecem fisicamente acessíveis ao público por meio de exposições ou eventuais ações institucionais. Sua maior parte permanece em espaços dedicados ao armazenamento que devem atender aos requisitos de conservação, segurança e acessibilidade do acervo para promover sua preservação em longo prazo, as chamadas reservas técnicas. De acordo com o ICCROM (International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property)[2], a taxa estimada de objetos em reservas técnicas é de 95%, considerando o universo aproximado de 55.000 museus existem no mundo. Portanto, os museus exibem apenas uma fração de suas coleções, o que faz das reservas técnicas áreas chave para indicar a capacidade de um museu em usar as coleções para o benefício da sociedade por meio de aprendizado, interpretação, exposições e pesquisas.
A mesma pesquisa conduzida pelo ICCROM_UNESCO em 2011, forneceu um panorama dos problemas que impactam a conservação, o tratamento e acesso às coleções: 1 em cada 4 museus estavam com o sistema de documentação incompletos e dificuldade de circulação nas áreas de guarda, 1 em cada 3 museus não tinham clareza sobre quem seria responsável pela área de reserva, e 1 em cada 2 museus não possuíam unidades de armazenamento suficientes para atender às necessidades de suas coleções. Nesse contexto, qualificar suas reservas para promover boas condições de conservação dos acervos considerando também o cenário de desenvolvimento das coleções no médio e longo prazo demanda recursos financeiro, infraestruturais e humanos ajustados a esse fim. O estudo citado aponta que apesar desses recursos existirem na atualidade, são insuficiente frente à progressão demandada, impactando diretamente na gestão dos acervos.
Para conduzirmos nossa reflexão a respeito da formação e manutenção dessas coleções, qual perspectiva adotamos? A nossa compreensão dos museus e das histórias que eles codificam fornece uma leitura diferente quando entendemos essas instituições a partir da ótica exclusiva do acervo que eles expõem. Um foco direcionado às exposições ignora a grande dimensão dos objetos armazenados em reservas técnicas, os quais continuam a serem pesquisados, processados e conservados e que muitas vezes, nunca estiveram presentes em alguma exposição. Entendidos dessa forma, os museus se apresentam como espaços organizados e estáveis, sendo as exposições o encerramento visível das ações museológicas, sem favorecer uma visão das lógicas para as aquisições dos acervos construídos ao longo das trajetórias institucionais e as questões subjacentes[3]. Como resultado, aspectos físicos, históricos, legais e da própria construção do conhecimento nos museus não aparecem diretamente para o público geral.
Uma discussão sensível decorrente desses processos ainda caminha a passos lentos: a desincorporação das obras de uma coleção museológica. Em um paralelo ilustrativo, a desincorporação apresenta uma lógica a qual estamos familiarizados por meio dos métodos e filosofias de arrumação que chegam ao Brasil em séries, livros e programas de televisão. Nos anos 1990, tínhamos inspiração do sistema chinês de feng-shui, baseado na organização pela harmonização energética. Já o método mais recente foi trazido pela especialista em organização pessoal Marie Kondo e consiste em fazer uma análise de todos os objetos da casa, avaliando se aquilo "te traz alegria". Em caso negativo, é hora de agradecer ao objeto pelo "serviço prestado", doar ou jogar fora e assim reduzir o acúmulo. Mas o que isso tem a ver com os museus?
De maneira geral, vimos de acordo com a pesquisa do ICCROM-UNESCO que até os museus precisam “arrumar a casa”. Nesse sentido, essas duas entidades em parceria com o Canadian Conservation Institute disponibilizaram um método para planejamento e implantação de melhorias nas áreas de armazenamento, o método RE-ORG[4]. Essa abordagem por meio da reorganização física busca qualificar o acesso e a conservação dos itens em reserva, utilizando os recursos institucionais disponíveis e articulando soluções viáveis e sistemáticas, sem remoção de itens dos acervos.
Outra perspectiva consiste na reavaliação e desincorporação das coleções de museus, refletida na proliferação recente de métodos de revisão e racionalização como o Reviewing Significance 3.0[5], por exemplo. No entanto, as questões que envolvem as desincorporações nos museus e os caminhos para condução desses processos são tensas, configurando-se um desafio. Nesse processo é fundamental reavaliar os valores (culturais, históricos, científicos e técnicos) e a força das coleções para elencar os itens com potencial para serem retirados das coleções, bem como os impactos nas relações com doadores, públicos, as questões jurídicas, administrativas e custos. Embora haja razões teóricas e práticas para evitar esse processo, a reavaliação do acervo para esses fins pode ajudar a ajustar e reforçar as missões dos museus promovendo um melhor funcionamento das instituições.
Assim, a obra “Cúmulo” instiga uma reflexão importante sobre o papel dos acervos nos museus, que permanece além do período em que ficou montada. Colocando em exposição alguns itens e dinâmicas “velados” ao público, trouxe à tona dilemas reais da memória e do esquecimento, da visibilidade e do apagamento, que desejamos enfrentar com o auxílio não só dos métodos aqui apresentados, mas também das comunidades migrantes e demais públicos do Museu da Imigração.
[1] Electronic Document Format(APA)
Paiva, Odair da Cruz. (2015). Imigração, patrimônio cultural e turismo no Brasil. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, 23(2), 211-237. https://dx.doi.org/10.1590/1982-02672015v23n0208
[2] https://www.iccrom.org/section/preventive-conservation/re-org
[3] Por exemplo, os itens de uma coleção estão sujeitos a mudanças de prioridades ao longo do tempo, como gostos, restrições econômicas, pedidos de repatriamento, entre outros aspectos, podendo não se ajustar aos objetivos e necessidades de um museu em um outro momento.
[4] https://www.iccrom.org/themes/preventive-conservation/re-org/resources
[5] https://collectionstrust.org.uk/resource/reviewing-significance-3-0/