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Hospedaria em Quarentena: Hospedaria do Brás em tempos do cólera
Os espaços de acolhida para migrantes estrangeiros e as epidemias
No final do ano de 1892, uma grave epidemia de cólera irrompeu na Europa. Em abril do ano seguinte, o Brasil começou a se preparar para controlar a entrada de navios, provenientes de regiões infestadas pela doença, especialmente nos portos de Santos e Rio de Janeiro. Algumas medidas radicais foram sugeridas pelas autoridades sanitárias brasileiras, como o chamado “torna-viagem”, ou seja, proibir navios com a presença da moléstia de atracarem em qualquer porto e, além disso, ordenar o retorno imediato da embarcação para seu local de origem. A situação só voltou ao normal no início de 1894.[1] Nesse artigo, apresentamos a relação entre esse contexto epidêmico e o desenvolvimento, ao longo do século XIX, dos locais de acolhida para migrantes estrangeiros no Brasil, culminando em uma instituição modelar para o isolamento: a Hospedaria de Imigrantes do Brás.
Desde as primeiras tentativas para introduzir mão de obra estrangeira no Brasil, um grande desafio se impôs para o governo: onde acolher os migrantes recém-chegados?
Naturalmente, eles precisavam descansar, comer, passar por processos alfandegários, ter acesso a médicos, entre outros. Em 1818, por exemplo, ainda sob o governo de D. João VI, alguns suíços que desembarcaram no Rio de Janeiro e se destinavam à colônia de Nova Friburgo tiveram que dormir em redes no navio em que viajaram e, depois, em tendas, por cinco dias, improvisadas em um povoado no litoral fluminense[2].
Há registros da década de 1830 e 1840, tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro, de depósitos utilizados como dormitório, refeitório e enfermaria para migrantes. Esses deviam aguardar no navio a inspeção médica e os trâmites burocráticos, como o exame dos passaportes. Armazéns eram alugados para a instalação de hospitais; ou seja: o acolhimento aos recém-chegados era feito, essencialmente, na base da improvisação[3]. Em meados do século XIX, os números de entradas de estrangeiros no Brasil aumentaram. Ao mesmo tempo, recorrentes epidemias de febre amarela afligiram diversas cidades litorâneas. Isso fez com que os migrantes fossem associados, de certa forma, com possíveis doenças infectocontagiosas. Nesse contexto, a acolhida aos migrantes foi repensada e a partir da instalação do Lazareto da Jurujuba, no Rio de Janeiro (1851), e as ilhas se tornaram os locais ideais para a recepção dos recém-chegados.[4] A Jurujuba, depois Hospital Marítimo de Santa Isabel, tinha como principal função atender viajantes diagnosticados com doenças contagiosas. Já em 1855, por exemplo, foi preciso instalar uma enfermaria especial para os doentes de cólera. Em 1857, outra ilha foi escolhida para também tratar dos novos colonos, a Ilha do Bom Jesus.[5]
Essas experiências podem ter influência na criação das hospedarias de imigrantes, construídas principalmente a partir da penúltima década do século XIX. No Rio de Janeiro, existiram diversas delas, as mais relevantes foram a Hospedaria em Pinheiro (1896) e a Ilha das Flores; em São Paulo, as maiores hospedarias foram a do Bom Retiro (1882) e Brás (1887); em Minas Gerais, a hospedaria de Horta Barbosa, em Juiz de Fora (1887); no estado do Pará, a hospedaria do Outeiro, em Belém (1895), e muitas outras espalhadas por diversas regiões do país, em ilhas, no litoral ou no interior. Mesmo as hospedarias que não foram instaladas em ilhas possuíam características para promover um isolamento eficiente. A Hospedaria do Brás, por exemplo, foi construída afastada da cidade, próxima ao entroncamento das principais ferroviais do estado de São Paulo, com muros altos, regras rígidas relacionadas às entradas e saídas de migrantes estrangeiros. Ou seja, a ideia era que os recém-chegados tivessem, a princípio, o mínimo de contato com a população residente na cidade.
Como mencionado no início do texto, o Brasil precisou agir quando soube da epidemia de cólera na Europa, em 1893. O Serviço Sanitário do Rio de Janeiro avaliou que a Hospedaria de Ilha das Flores e os Lazaretos da Ilha Grande e Jurujuba não era suficientes para acolher e tratar da quantidade de migrantes provenientes de portos europeus.[6] Nesse sentido, uma das ações tomadas foi a ordem do "torna-viagem", que de fato ocorreu. Essa medida extrema foi adotada para quatro navios italianos com um número considerado excessivo de doentes, os vapores Remo, Andrea Doria, Vincenzo Florio e Carlo R. Esse último chegou no atracadouro do Lazareto de Ilha Grande com mais de cem mortos a bordo. Cerca de seis mil pessoas, majoritariamente migrantes estrangeiros, foram proibidos de desembarcar no Brasil no segundo semestre de 1893. Na viagem de volta, evidentemente, a cólera fez muitas outras vítimas fatais.[7]
Em setembro de 1893, o Brazil Médico, uma revista semanal de medicina e cirurgia, publicou um artigo sobre a epidemia de cólera. O texto tratava do aparecimento de casos suspeitos da doença na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Segundo o jornal Correio Paulistano, o “isolamento absoluto” e a “desinfecção rigorosa” extinguiram, em pouco tempo, a possibilidade da disseminação da moléstia.[8] Ora, se rigorosas precauções eram tomadas no porto do Rio de Janeiro, como a cólera se infiltrou no território brasileiro?
A resposta, segundo a própria revista, foi um vapor que passou despercebido pelas autoridades sanitárias cariocas. O Re Umberto atracou no Brasil antes que as notícias sobre a epidemia fossem disseminadas e as enérgicas medidas praticadas, além disso a inspeção médica na embarcação não apurou nada suspeito. Os passageiros do Re Umberto foram transportados até a Hospedaria dos Imigrantes em Pinheiro, no Rio de Janeiro. Permaneceram por lá entre cinco e doze dias e depois rumaram para diversos destinos, como o próprio estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e o interior de São Paulo. Em todos esses locais não foram registrados, a princípio, casos de cólera. A única exceção ocorreu, justamente, para aqueles que se deslocaram da Hospedaria em Pinheiro para a Hospedaria do Brás.[9] Mas por quê?
Para o Brazil Médico, a explicação estava nas bagagens. Tanto nos navios quanto na Hospedaria do Rio de Janeiro, os migrantes não tinham contato com as bagagens despachadas. Essas, depois de um tempo razoável, eram enviadas para seus respectivos destinos. Para a Hospedaria do Brás, provavelmente, foram destinados volumes com a presença das bactérias maliciosas. Depois de abertas, espalharam a doença.[10]
Pelo Re Umberto ou por outro navio, a cólera, efetivamente, desembarcou no Rio de Janeiro e chegou a atingir o Vale do Paraíba paulista em 1894. O tráfego ferroviário entre os dois estados foi interrompido temporariamente e não se podia sair de São Paulo sem um passaporte sanitário. Mais de cinquenta pessoas faleceram na capital paulista em razão dessa epidemia. Se aventou, diante desse contexto, a possibilidade da construção de uma hospedaria em Santos, para impedir a disseminação de novas doenças no estado. A hospedaria foi construída, porém, em São Bernardo do Campo. Durou pouco tempo. A Hospedaria de Imigrantes do Brás, nesse caso, havia passado no teste.[11]
Desde os primeiros migrantes estrangeiros que aportaram no Brasil houve discussões acerca de sua acolhida e a relação com possíveis epidemias. As hospedarias, em diferentes espaços geográficos, foram o resultado de dezenas de anos de experiência nesse sentido; se modernizaram e propiciaram instalações e funcionários para, na medida do possível, controlar surtos epidêmicos. A Hospedaria de Imigrantes do Brás foi, talvez, o maior exemplo disso.
Referências bibliográficas
[1] Rebelo, Fernanda; Maio, Marcos C.; Hochman, Gilberto. O princípio do fim: o “torna-viagem”, a imigração e a saúde público no Porto do Rio de Janeiro em tempos de cólera. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/3273. Acesso em 08.06.2020
[2] Chrysostomo, Maria Isabel; Vidal, Laurente. Do depósito à hospedaria de imigrantes: gênese de um “território de espera” no caminho da emigração para o Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v21n1/0104-5970-hcsm-2014005000008.pdf. Acesso em 08.06.2020
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Idem.
[6] Rebelo, Fernanda; Maio, Marcos C.; Hochman, Gilberto. O princípio do fim: o “torna-viagem”, a imigração e a saúde público no Porto do Rio de Janeiro em tempos de cólera. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/3273. Acesso em 08.06.2020
[7] Idem.
[8] Jornal Correio Paulistano, 15.09.1893.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Telarolli, Rodolpho Jr. Imigração e Epidemias no Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v3n2/v3n2a04.pdf. Acesso em 09.06.2020.
Foto da chamada: imigrantes japoneses preparando bagagens para reembarque na Hospedaria do Brás.