
A fresta
Por Maha Mamo,
Ex-apátrida, ex-refugiada, cidadã brasileira desde 2018.
(texto escrito por Darcio Oliveira).
Da pequena janela que meu pai criou
no quarto improvisado da minha querida Bourj Hammoud
Havia a fresta para o mundo
Via de minha cama, por essa fenda pequenina e providencial,
os aviões cruzarem o céu do Líbano
Sonhava estar em um deles, no meio das estrelas...
No teto de meu quarto também havia estrelas
De plástico, que eu mesma havia improvisado para tornar aquele meu espaço mais amplo
Era o meu infinito particular
Mas eu queria o céu de verdade, a possibilidade de voar dali,
Deixar o Líbano era a única forma de buscar o que eu mais sonhava na vida: existir oficialmente
Eu, que não tinha pátria, precisava buscar uma
Com uma pátria, viriam os documentos, o registro, a cidadania
Os direitos humanos mais básicos, que eu nunca tive
Não era pedir muito. Era?
Me disseram que se eu pegasse mil aviões, num gesto imaginário,
ali mesmo da fresta do meu quarto, olhando minhas estrelas de plástico,
O sonho se tornaria realidade e um dia eu estaria cruzando os céus
Ah, como eu queria voar.
Não havia noite em que eu não esticasse a mão para trazer
Os aviões para o meu quarto
Até que houve a noite abençoada, em setembro de 2014
Eu me vi sentada em uma poltrona, afivelando o cinto de segurança,
a profecia realizada: depois de mais de mil aviões imaginários eu estava, finalmente, em um deles.
Espremi os olhos na hora de decolagem, vi o céu da minha nova fresta, a janelinha de plástico da aeronave
Vi as nuvens ao meu lado, vi a noite chegar, o breu, as estrelas, o monitor do avião mostrando que estávamos cruzando o Atlântico
Então, ouvi o comandante anunciar a aterrissagem e a temperatura no Brasil
Calor lá fora, ele dizia. E calor aqui dentro, no meu coração ansioso pela nova vida.
Pensei no Brasil, a única nação, entre tantas que procurei, a me dar a chance de voar e de buscar os meus direitos
Era aqui que a vida nova começava. O renascimento.
Até que veio o dia abençoado: 4 de outubro de 2018, quando eu me tornei oficialmente brasileira. Sim... porque, no fundo, acho que eu sempre fui brasileira.
Só precisava de uma fresta para o destino me trazer até aqui.