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As três edições do Programa de Residência Artística do Museu da Imigração (2019 – 2023)
Thiago Haruo Santos – Coordenador de pesquisa
As residências artísticas, com sua diversidade de formas e intenções, são espaços estratégicos de criação e de reflexão artística na contemporaneidade. No Museu da Imigração, essa estratégia tem aberto novas oportunidades de fomento da produção cultural, e de reconhecimento da arte como uma ferramenta crucial para a sensibilização sobre as migrações.
Neste texto, apresentaremos as três edições do Programa de Residência Artística do Museu da Imigração realizadas até o momento. O Programa vem se consolidando como um laboratório de experimentação e produção de conhecimento, no qual a arte não apenas reflete, mas também interage e transforma os entendimentos sobre a mobilidade humana.
Residência Artística
A difícil tarefa de encontrar definições únicas parece ainda mais complicada quando consideramos as residências artísticas. Práticas promovidas por instituições e outros agentes da cultura, as residências são diretamente impactadas pelo contexto sociopolítico no qual se inserem. Nesse sentido, importa a missão institucional, as temáticas assumidas por esses agentes, o tamanho, as funções, objetivos e métodos adotados por essas instituições. São esses elementos que determinarão as condições oferecidas aos residentes.
Seria possível dizer, dessa maneira, que em cada contexto são geradas experiências particulares, que articulam condições próprias, gerando dinâmicas e resultados únicos. Apesar dessa grande variabilidade, as residências continuam sendo fortemente marcadas pelo perfil dos agentes promotores. Assumindo uma perspectiva institucional, Packer [1] divide as residências artísticas entre: 1) aquelas promovidas por instituições especializadas nessa prática; 2) as que são incorporadas em ações de instituições com outras finalidades e; 3) realizadas a partir de convites a um (a) criador (a) para determinado projeto. As residências realizadas em museus, no geral, costumam se enquadrar dentre os dois últimos tipos.
Apesar desse caráter bastante variável, um elemento importante das residências artísticas é a garantia das condições de pesquisa e de produção dos artistas. Traçando os possíveis antecedentes dessa prática, autores como Moraes [2] têm relembrado a importância de instituições formais do século XVII em instaurar prêmios importantes para a formação artística. A Academia Real de Pintura e Escultura de Paris, por exemplo, garantia com esses subsídios a permanência de jovens artistas em Roma. Para o caso brasileiro, Luz [3] [4] [10] mostra a importância dos chamados Prêmios de Viagem, instaurados por Felix Émile Taunay, diretor da Academia Imperial de Belas Artes em meados do XIX, em oferecer recursos para o estudo artístico no Brasil e na Europa.
O termo residência tem forte vínculo com a dimensão espacial dessas práticas. No contexto europeu e norte-americano, até inícios do século XX, as colônias de artistas se disseminaram, respondendo a uma necessidade dos artistas por lugares retirados, longe das agitações de uma sociedade cada vez mais industrializada. Alguns exemplos mais conhecidos são os da chamada Escola de Barbizon na França, e o da Península de Monterrey nos Estados Unidos. Moraes [2] interpreta esse tipo de fenômeno de busca de proximidade da natureza e fuga do “burburinho urbano” como um índice da construção de condições especiais para produzir fora das cidades. Nessa chave, o aspecto cotidiano nesses espaços ganhava relevância, associado a convivência possibilitada pelas comunidades formadas nesses locais. O autor parece sugerir que com esses lugares se criasse a noção mesma de que é necessário garantir localidades retiradas e apropriadas para a emergência de obras e movimentos artísticos.
A partir da década de 1990, as residências artísticas assumiram feições mais parecidas com as que conhecemos atualmente. É nesse período em que a intensificação da mobilidade de pessoas e mercadorias acresce de camadas a própria ideia de localidade. Menos porque são capazes de garantir a “fuga” dos grandes centros urbanos, as localidades passam a importar principalmente por configurarem fontes de insumos e estímulos “únicos” à prática artística, acessíveis apenas em uma determinada coordenada mundial. O espaço então é retomado como elemento fundamental para acionar novas perspectivas e possibilidades de experimentação [5].
Não mais apenas enquanto comunidades retiradas, as residências artísticas pelo mundo habilitam relações de troca únicas entre artistas, agentes promotores e terceiros (outros artistas, público etc). Para essas trocas ocorrerem, as atividades são organizadas dentro de programas, esquemas e agendas. Essa institucionalidade, em muitos casos, passa a servir de indício para o reconhecimento mesmo de uma determinada prática enquanto residência artística [5].
Nessa breve incursão sobre as residências artísticas, encontramos alguns aportes com os quais pensar as experiências do Programa de Residência Artística do Museu da Imigração. Nessa chave, apesar das diferentes de configurações assumidas por essa prática, residências artísticas apareceram como criadoras de “uma condição de espaço-tempo específico, destinado à criação e produção” [2]. Na contemporaneidade, essas condições surgem atreladas à possibilidade de criar determinadas relações de troca. Trocas essas vistas como únicas e fundantes de experimentações e produtoras de novas perspectivas.
Programa de Residência Artística do Museu da Imigração
O Programa de Residência Artística do Museu da Imigração foi criado em 2019, e tem como horizonte o fomento da produção cultural e do reconhecendo da arte como uma forma privilegiada de explorar e sensibilizar aspectos cruciais para a compreensão das migrações.
Uma das características fundamentais que diferencia o programa de outras experiências é a sua realização dentro de um museu público [6]. Isso permite que, durante a residência, os artistas desenvolvam uma compreensão própria do funcionamento de um museu público, com suas missões e condições específicas, moldada principalmente pela convivência com as equipes de pesquisa, preservação, educação, comunicação, administração e manutenção. Outro aspecto significativo é o fato de o MI estar situado em um edifício histórico que abrigou a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. Esse contexto histórico adiciona uma dimensão extra ao tempo-espaço mencionado anteriormente, oferecendo novas vias para a manifestação e o fluxo da criatividade artística.
O Programa de Residência Artística tem como objetivos: (1) o fomento da produção artística sobre as migrações, (2) o estimulo à pesquisa e a reflexão crítica sobre os temas vinculados às migrações, e (3) a promoção da arte como mediador da experiência vinculada ao conceito gerador. Apesar dessas intenções mais amplas, ele possui outra finalidade, importante do ponto de vista do desenvolvimento do conceito gerador.
Segundo a Política de Acervo do MI [7],
Desde 2011, o Museu vem apostando na história oral como metodologia principal para o colecionismo do contemporâneo e por suas características mais brandas de gestão, o leque de questões abordadas pode ser mais amplo, tomando São Paulo não só como ponto de chegada e de permanência, mas também de saída e passagem, realidade que caracteriza nosso tempo, marcado por experiências mais fluidas e menos estanques ou definitivas [negrito do próprio texto].
Embora a história oral funcione como uma metodologia central para o colecionismo do contemporâneo, o papel incontornável da materialidade como mediadora das interpretações de mundo em museus levou o MI a explorar novas abordagens para esse colecionismo. Nesse contexto, as formas, texturas, materiais, dimensões, em suma, a estética desenvolvida por diferentes artistas tornam-se elementos essenciais nas novas formas de colecionar o contemporâneo no museu.
Até o momento, ocorreram três edições do Programa, realizado bienalmente. Em cada edição, foi escolhida uma temática específica, abordando diferentes dimensões do fenômeno humano das migrações.
Na primeira edição, realizada em 2019, a temática escolhida foi a da “Acolhida”, sendo selecionados os artistas Emilia Estrada e Nicolas Llanos.
A instalação “Cúmulo”, de Emília, foi montada na sala Hospedaria em Movimento, espaço utilizado para exposições temporárias. Nela, a artista posicionou mais de 80 objetos museológicos, escolhendo principalmente aqueles mais volumosos. Na entrada da obra, o visitante encontrava algumas perguntas em espanhol como “Como descolonizar um acervo?”, “Qual imigração esses objetos representam?” e questionamentos diretamente dirigidos àquele aglomerado de móveis. Como constava no texto da curadora Marilúcia Bottallo, tratava-se de uma obra que problematizava “os próprios processos do museu em uma investigação que indaga as coleções e o sistema de ações museológicas [...] levando a ponderar sobre os processos de construção de memórias individuais e coletivas e, por que não, de novos mitos”.
A instalação “Chegar é nunca chegar”, de Nicolás, ocupou o salão que antecede o acesso aos módulos da exposição de longa duração. O grande espaço vazio, além de passagem obrigatória para qualquer visitante, é o lugar de recepção de quem acaba de chegar. Nesse local, o artista colocou uma série de nove portas brancas idênticas, diferenciadas entre si apenas pela posição e número de maçanetas. Abrindo e fechando essas portas, o participante-visitante colocava a si mesmo nesses entrepostos da passagem. O gesto de abrir e se colocar entre as portas gerava uma determinada experiência corporal, acionando as múltiplas camadas envolvidas no ato de acolher e de ser acolhido.
A segunda edição do Programa ocorreu em 2021, com a temática “As migrações e os tijolos do racismo estrutural no Brasil”, tendo sido Paulo Chavonga o artista selecionado.
A exposição resultante, “Rostos invisíveis da imigração no Brasil”, trouxe para o espaço Hospedaria em Movimento três imensos retratos de pessoas migrantes, vindas de Ghana e de Senegal. Como o próprio artista as descreveu, “São obras em tamanhos monumentais que obriga as pessoas a levantar a cabeça para vê-las” [8]. Elas eram acompanhadas de um áudio, com as histórias de cada uma das personagens, além de um espaço destinado ao público para conhecer o processo criativo do artista. A mostra refletiu sobre as novas dinâmicas nas relações raciais no país, que historicamente se basearam na exploração da mão de obra africana durante a colonização e em ideais de mestiçagem que não se concretizaram em igualdade. Os rostos trazidos para a visibilidade lançaram uma luz sobre as diversas experiências e desafios desses migrantes, vindos de diversos países do continente africano, levando o público a olhar para as lutas travadas por esses sujeitos, e reivindicações de suas organizações políticas, que se reúnem em torno de nacionalidades, identidades culturais e étnicas.
A terceira edição do Programa ocorreu entre fim de 2023 e primeiro semestre de 2024. A temática escolhida foi “Deslocamentos indígenas e negros no Brasil”, sendo a artista selecionada Adriane Kariú. Um texto publicado pelo perfil do Museu de Artes Murilo Mendes apresenta a artista da seguinte maneira [9]:
Adriane Kariú é uma artista do povo Kariú-Kariri, nascida no Gama/DF. É tecnóloga em Design de Moda pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e licenciada em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (UnB). Sua pesquisa artística é uma profunda investigação da experiência do corpo físico sob o metafísico e o onírico, voltando a atenção para as coisas vivas. Ela explora temas como desterritorialização, diáspora, fluxos migratórios e memória familiar.
Suas criações também abordam temáticas que atravessam geracionalidade, identidade e contra colonialidade no contexto urbano da periferia. Adriane utiliza, em seu trabalho, uma variedade de linguagens artísticas, incluindo pintura, arte digital, desenho, tatuagem, arte urbana, fotografia, colagem, gravura, animação e escultura.
Uma particularidade desta edição foi o fato de ter ocorrido durante o processo de renovação da exposição de longa duração do museu, um desafio central enfrentado pela instituição no momento. Adriane, atualmente residente em Brasília, realizou sua residência artística em formato híbrido, entre março e maio deste ano, com uma imersão presencial em São Paulo no mês de abril, onde se integrou às atividades e rotinas da instituição. O resultado desse processo será incorporado em um dos módulos da nova exposição de longa duração, com foco especial nos deslocamentos de povos indígenas e negros.
Para acompanhar como a artista desenvolveu essas questões, convidamos todos a seguirem as atualizações sobre a nova exposição de longa duração que em breve estará disponível!
Fechamento
Ao longo das três edições do Programa de Residência Artística do Museu da Imigração, realizadas entre 2019 e 2023, foi possível observar como a arte, inserida em um contexto museológico, atua como uma poderosa ferramenta de reflexão e transformação dos entendimentos sobre as migrações. Cada edição trouxe à tona perspectivas únicas sobre o fenômeno migratório, destacando a capacidade da arte de interagir com o passado, presente e futuro das migrações. Através dessas residências, o Museu da Imigração reafirma seu compromisso com a produção de conhecimento e a sensibilização do público sobre questões cruciais, utilizando a arte como um meio privilegiado para explorar as complexidades das migrações e fomentar diálogos para a compreensão do mundo contemporâneo.
Referências
[1] PACKER, A. (2014). Resiliências artísticas. In: VASCONCELOS, A., & BEZERRA, A. (orgs.). Mapeamento de residências artísticas no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, p. 27-40.
[2] MORAES, M. J. S. (2014). Residência artística: especificidades da pesquisa/produção. In: VASCONCELOS, A., & BEZERRA, A. (orgs.). Mapeamento de residências artísticas no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, p. 41-51.
[3] LUZ, A. A. Uma breve história dos salões de arte – da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama, 2005.
[4] LUZ, A. A. Salões oficiais de arte no Brasil – um tema em questão. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 13, 2006.
[5] VASCONCELOS, A.; BEZERRA, A. (2014). Mapeamento de residências artísticas no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte.
[6] RODRIGUES, C. J. S.; PEREIRA, M. S.; OLIVEIRA, R. S.; BEZERRA, S. (2023). Residências artísticas em artes visuais na cidade de São Paulo: um mapeamento. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo sob a orientação do Pesquisador Dr. Gustavo Torrezan como um dos requisitos para certificação no Curso Sesc de Gestão Cultural. SESC São Paulo - Centro de Pesquisa e Formação, São Paulo.
[7] Política de acervo do Museu da Imigração. Disponível em https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/acervo_e_pesquisa/documentos_de_gestao/2018-politica-acervo-mi-final-08-02-2020-16-09.pdf.
[8] https://portalvozes.com/dna/rostos-visiveis-de-pessoas-invisiveis/.
[9] https://www.instagram.com/mamm.ufjf/p/CxaiW8XrNXk/?img_index=1.
[10] MARCONDES, G. (2020). Deslocamento, formação e legitimação: uma análise de programas de residência artística no Brasil. Caderno CRH, 32, 561-576.