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Patrimônios do Migrar: reflexões a partir da Jornada do Patrimônio 2025
Thiago Haruo Santos – Coordenador de pesquisa
Como se pode pensar em patrimônio quando tratamos de migração, um fenômeno humano marcado justamente pela constante transformação? O que seria patrimônio para pessoas em movimento? Como refletir sobre essa questão a partir de diferentes experiências sociais, comunitárias, de tempos históricos distintos, e posições desiguais?
Busquei desenvolver algumas dessas questões na oficina “Patrimônios do Migrar”, realizada no último dia 16 de agosto, dentro da programação da Jornada do Patrimônio 2025, realizada conjuntamente com Cristina Branco e Marci Pereira, pesquisadoras do museu.
A atividade buscou refletir sobre como o patrimônio pode ser pensado a partir das migrações, compreendidas não como episódios isolados, mas como processos de deslocamento, pertencimento e transformação. Partindo da premissa de que o patrimônio não é fixo, mas se constitui em fluxo, atravessado por disputas, temporalidades múltiplas e pontos de vista diversos, tratamos de conceitos, exemplos de outros museus e das reflexões curatoriais do Museu da Imigração.
Da exposição “Migrar” ao módulo “Patrimônios do Migrar”
A oficina dialoga com o processo de concepção da Nova Exposição de Longa Duração do Museu da Imigração, em especial o módulo 9, intitulado “Patrimônios do Migrar”. Esse percurso não começa do zero: ele se apoia nas experiências e aprendizados da mostra anterior, “Migrar: experiências, memórias e identidades”, que contou com a consultoria de pesquisa de Eduardo Góes Neves e José Guilherme Magnani.
No módulo 6 da antiga exposição, intitulado “São Paulo Cosmopolita”, a curadoria explorou a formação da cidade como espaço plural, destacando a importância de olhar com atenção para os bairros e suas especificidades. A pesquisa apontava duas ideias centrais que se aproximam da noção de patrimônio. A primeira, ligada à presença migrante nos espaços urbanos, aparece em trechos como este:
“Mesmo nessas circunstâncias, não ocorreu o isolamento; o padrão de ocupação não foi o do gueto étnico: se atualmente o Brás é caracterizado pela presença de nordestinos, já foi um bairro predominantemente italiano e também abriga libaneses; os judeus, que se transferiram para Higienópolis, deixaram o Bom Retiro, hoje ocupado principalmente por coreanos e bolivianos; já no Bexiga ainda hoje convivem negros (com a conhecida escola de samba Vai-vai) e descendentes de italianos, com sua tradicional festa de Nossa Senhora de Achiropita. (Relatório de Gestão, V – RELAÇÃO DE ANEXOS TÉCNICOS, março de 2011)”
A segunda ideia dizia respeito ao cosmopolitismo como ethos da cidade, apresentado como contraponto à visão unilateral, muito calcada apenas nos desafios colocados pela vida urbana paulistana:
“Desta forma, diferentemente de uma visão muito em voga sobre São Paulo – marcada pela violência, problemas sociais, trânsito caótico etc. – pode-se também apreciá-la a partir de outro ângulo. É desta maneira que se constitui e se consolida o ethos cosmopolita da cidade.”

Essas proposições são fundamentais para compreender a intenção da curadoria daquele módulo. No entanto, a própria exposição, ao longo dos dez anos em cartaz, suscitou novas leituras críticas, sobretudo a partir da atuação da equipe educativa. Muitas vezes, apontou-se que a composição fotográfica organizada em torno das categorias lazer, alimentação e religião poderia sugerir uma convivência harmônica entre grupos, apagando as tensões e as violências da experiência migratória. Essa interpretação ressoa a critica feita pelo pesquisador Odair da Cruz Paiva [1] sobre o caráter inóspito e sem conflitos da mostra, mesmo que no caso desse autor a observação estivesse voltada mais especificamente a como a Hospedaria de Imigrantes do Brás era representada.
Outra crítica dizia respeito às ausências. Em um depoimento recolhido no “Projeto 8 anos depois de “Migrar: experiências, memórias e identidades”, um pesquisador da área destacou:
“Então, eu acho que são questões que têm que ser pensadas. E no final da exposição, quando coloca os bairros, bairros de migrantes, acho que também é outra questão que dá uma outra discussão. Porque os bairros hoje que são ditos de imigrantes, a Liberdade, que hoje é um bairro oriental, japonês, é um bairro negro, o movimento negro está lá para reivindicar a sua presença, que foi apagada (Gravação feita no Museu da Imigração, no dia 24 de junho de 2022, com Comunidade acadêmica e ativistas).”
Essas críticas ajudaram a abrir espaço para que, no processo curatorial iniciado em 2022, novas abordagens fossem experimentadas.
Patrimônio como processo e o papel do museu
A partir dessa trajetória, duas ideias se consolidaram como centrais para a concepção do módulo “Patrimônios do Migrar”. A primeira é que o patrimônio das migrações deve ser entendido como um processo, e só pode ser abordado em diálogo com os sujeitos que o vivenciam. A segunda é que o museu precisa assumir-se como agente ativo nesse debate, reconhecendo que suas escolhas são recortes e que poderiam ser feitas de outras maneiras.
Nesse caminho, a exposição temporária “O Caminho das Coisas” foi decisiva. Fruto do projeto “Encontros com o Acervo”, ela trouxe para o público histórias de peças da coleção a partir do diálogo com comunidades e antigos doadores. A mostra questionava a ideia de que um objeto teria valor museológico apenas por estar ligado a uma trajetória migrante, o que foi chamado de “toque de Midas migrante”. Em vez disso, convidava a olhar para os objetos em suas múltiplas dimensões, destacando os encontros, as histórias e os significados que carregam.
Esse aprendizado se desdobrou em uma prática de diálogo com comunidades migrantes. Em dezembro de 2023, o Museu da Imigração reuniu articuladores de 21 comunidades para discutir o que entendem como “patrimônios do migrar”. Durante um mês, foram recolhidas contribuições que mostraram a diversidade de olhares e experiências, reforçando a ideia de que não se trata de alcançar exaustividade — o que seria impossível —, mas de assumir o museu como espaço detonador de debates e seleções críticas.
O diálogo como patrimônio das migrações
A oficina realizada durante a Jornada do Patrimônio constituiu uma oportunidade para dialogar sobre reflexões que vêm sendo elaboradas ao longo da experiência museológica do Museu da Imigração nos últimos dez anos. Partindo da noção de cidade cosmopolita — que, apesar dos desafios impostos pelo caos e pelas violências urbanas, constrói sociabilidades, lugares e práticas vinculadas à memória das migrações —, a nova exposição de longa duração aposta em um debate aberto sobre o patrimônio como campo de possibilidades.
Em vez de propor um recorte espacial voltado à construção de um discurso de reconhecimento das presenças e das múltiplas contribuições, a proposta curatorial busca convocar o público ao diálogo. O museu reafirma, assim, a convicção de que o melhor caminho é refletir junto às comunidades, criando espaços de encontro e de reflexão coletiva.
Foto de abertura Exposição o “O Caminho das Coisas (2016)”/ Crédito: Museu da Imigração
Referência
[1] Paiva, O. da C. “MIGRAR: experiências, memórias e identidades”. Análise da exposição de longa duração do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Anais do Simpósio da ANPUH, 2019, 16 p. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548945018_35e2ca1002e3a756f78d54128856c91d.pdf. Acesso em: 26 ago. 2025.