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Brasileiros na Hospedaria: Cearenses em São Paulo no século XIX
"Moleque fugido:
Desde quinta-feira, 11 do corrente, anda fugido o escravo Silvestre, natural do Ceará, de 15 a 16 annos de idade, côr fula, cabello à escovinha, com falta de um dente na frente, (...) de corpo; levou calça esbranquiçada e camisa de chita de quadrados largos.
Costuma dar-se por livre, mudar de nome e alugar-se por qualquer serviço; outras vezes diz que é captivo de diversas pessoas, sem declarar quem é seu senhor, tendo contrahido dívida em nome deste; anda quase sempre pelos arrabaldes, tinge-se muito humilde para iludir quando é surpreendido, para tornar a fugir.
Consta estar acoutado pelos emigrados cearenses, que lhe deram um chapéu de couro, com o qual se disfarça, pelo que pede-se às autoridades competentes que evitem o engajamento do dito escravo: protesta-se usar todo o rigor da lei contra quem o acoutar e gratifica-se quem o entregar na rua da Constituição, n. 72."[1]
A notícia acima foi publicada no jornal Correio Paulistano, em 1878. Ela nos revela a face de um Brasil ainda escravista, mas também indica informações que, em um primeiro momento, podem surpreender alguns. Silvestre era um escravizado no estado de São Paulo e foi acobertado por "emigrados cearenses", seus conterrâneos, como diz o informe. A migração nordestina para o Sudeste do país é mais notória a partir da década de 1930. A própria série "Brasileiros na Hospedaria" já discorreu sobre o tema em alguns artigos. Por outro lado, a presença de nordestinos em solo paulista, no século XIX, resultado de um fluxo migratório organizado, ainda é menos conhecida, apesar de ser alvo de estudos acadêmicos.
Em São Paulo, o desenvolvimento da economia cafeeira, especialmente na década de 1870, intensificou o problema da falta de mão de obra. Em zonas de cultivo mais antigas, como o Vale do Paraíba, os fazendeiros ainda utilizavam o trabalho escravo nas lavouras. No entanto, o aumento do preço dos escravizados, aliado à abertura de novas zonas para a plantação de café (Oeste Paulista), fez com que o estado recorresse a alternativas, como o emprego de trabalhadores estrangeiros e trabalhadores nacionais livres.[2]
Na década de 1870, chegam a São Paulo os primeiros grupos de migrantes cearenses, fugindo das secas e em busca de uma colocação na lavoura. A "grande seca" de 1877-1879 expulsou milhares de cearenses para outras partes do país, principalmente para a região amazônica.[3] Segundo Denise A. Soares de Moura, essa não era a única razão pela qual o cearense era obrigado a migrar: "a condição de penúria, a exclusão do acesso a terras férteis e o teor violento do convívio com os proprietários rurais do interior cearense (...) também contribuíram para reforçar o conteúdo errante da vida do sertanejo"[4]. Em 1878, as primeiras famílias de cearenses que chegaram em São Paulo foram direcionadas para fazendas nos municípios de Guaratinguetá, Limeira, Rio Claro, Amparo e Casa Branca.[5] Na fazenda São Paulo das Cachoeiras, em Amparo, um relatório (1880) apresentava as atividades desenvolvidas pelos retirantes:
"Os cafesaes teem sido plantados por empreiteiros cearenses e paulistas, os quaes tomão de empreitada o plantio e o tracto do café por 4 annos, á razão de 400 reis por pé, e teem direito de plantarem no intervalo dos pés de café todos os cereais necessários ao seu sustento, e são obrigados a conservarem as plantações no limpo, e no caso de mora, sempre que lhes for exigido."[6]
Sabe-se que foram encaminhadas para Guaratinguetá – mais especificamente para a fazenda do Dr. Rafael Brotero –, em maio de 1878, cinco famílias de cearenses, perfazendo o total de 33 pessoas. No mês seguinte, pelo menos outros 21 migrantes, também oriundos do Ceará, foram destinados para essa fazenda.[7] Os fluxos migratórios continuaram nos meses subsequentes. Nunca em números exorbitantes, mas se caracterizavam pela composição familiar. Em 1884, por exemplo, foi matriculada na Hospedaria de Imigrantes do Bom Retiro uma família cearense cujo "chefe" era Manoel Cordeiro de Souza (34 anos). Viajou em companhia da mulher, Rosa (34) e filhos e filhas: Marco (14), Candido (13), Guilherme (11), Henrique (9), Maria (7), Olímpia (5), Manoel (2) e Marsunilia (7 meses). O registro não indica o nome do vapor, o que pode sugerir um roteiro terrestre ou a passagem deles por alguma hospedaria no Rio de Janeiro, o que também era comum, e o desconhecimento por parte dos funcionários da hospedaria paulista a respeito dos meios de locomoção da família. O documento assinala que foram direcionados para a cidade de Rio Claro, uma região que recebeu muitos migrantes nacionais no período.[8]
Entre novembro de 1888 e janeiro de 1889 passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Brás três famílias, anotadas como cearenses no campo "nacionalidade" do registro de matrícula. Eram, mais uma vez numerosas. José de Souza Rodrigues (51 anos) migrou com a esposa, filhos, primos e agregados. No total, eram treze pessoas. A seca dos "três oitos" (1888)[9] pode ter sido um dos fatores para a decisão de migrar. Além disso, pode ter tido papel importante nesse incentivo à migração para São Paulo o governo do paulista Antonio Caio da Silva Prado, que assumiu a presidência da província do Ceará em abril de 1888.[10] Segundo Edgar Braga Neto, em seu livro Emigração cearense entre 1888 e 1915: sentidos, controle e configuração social dos migrantes:
"Não é de se estranhar que Caio Prado enviasse os sertanejos para o Sul, pois ele era sobrinho do Conselheiro Antonio Prado, que, na época, além de grande cafeicultor e ministro da Agricultura, considerava o envio de retirantes para os cafezais como melhor combate à seca. Se o passamento de Caio Prado não ocorresse durante essa seca, os campos do Ceará ficariam, sem dúvida, mais desabitados."[11]
Alguns registros indicam que no primeiro semestre de 1889, algo como 1.909 migrantes deixaram o porto de Fortaleza rumo a São Paulo. Para o Rio de Janeiro, esse número é ainda maior: mais de 5.800.[12] É possível que esses dados estejam subestimados, mas, de qualquer forma, evidenciam a presença de nordestinos em São Paulo muito antes das décadas de 1930, 1950 e 1960, quando esses migrantes se transformaram em centenas de milhares. Ainda que, no final do século XIX e principalmente após a abolição da escravatura (1888), os migrantes internacionais tenham predominado como mão de obra nas lavouras e indústrias paulistas, essa história nos mostra que qualquer ideia que evoque um pioneirismo estrangeiro na construção de São Paulo está equivocada. Os migrantes brasileiros, da mesma forma que os estrangeiros, vêm trabalhando em São Paulo há muito tempo.
Referências bibliográficas
[1] Jornal Correio Paulistano, 25 de abril de 1878.
[2] GONÇALVES, C. Paulo. Procuram-se braços para a lavoura. Imigrantes e retirantes na economia cafeeira paulista no final do Oitocentos.
[3] LIMA, Viviane. Agenciamento e agenciadores da emigração: a inserção dos trabalhadores cearenses na lavoura cafeeira. Revista Arquivo Público do Estado de São Paulo, abril de 2010. Ed. 41. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao41/materia04/.
[4] DE MOURA, Ap. S. Denise. Andantes de Novos Rumos: A vinda de migrantes cearenses para fazendas de café paulistas em 1878.
[5] Idem, p. 294.
[6] Idem, p. 294.
[7] LIMA, Viviane. Agenciamento e agenciadores da emigração: a inserção dos trabalhadores cearenses na lavoura cafeeira. Revista Arquivo Público do Estado de São Paulo, abril de 2010. Ed. 41. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao41/materia04/.
[8] Idem.
[9] DE OLIVEIRA, I. B. José. Mãos para São Paulo: Emigração Cearense no Governo Caio Prado (1888-1889). P. 3.
[10] Idem, p. 2.
[11] Idem, p. 11.
[12] Idem, p. 5.
Foto da chamada: família de Antonio Moreira, vinda do Ceará.