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Brasileiros na Hospedaria: Identidade nordestina e união em São Paulo
A cidade de São Paulo é frequentemente lembrada pela sua multiculturalidade, herança de diversos fluxos migratórios do passado e do presente que trouxeram consigo inúmeros elementos formadores da cidade. Sem nos esquecer das diferentes realidades vivenciadas pelos migrantes ao longo dos séculos XX e XXI, podemos dizer que o local de destino é um elemento importante na reconstrução das identidades. Continuando nossa série "Brasileiros na Hospedaria", pretendemos, neste texto, analisar a construção de uma identidade nordestina e reconhecer sua importância e contribuição para a cidade de São Paulo, além de pontuar as vivências e experiências em sua manutenção e constante reinvenção nesse local.
Muitos estudos mostram que no momento de chegada à São Paulo ocorre um processo de aproximação entre migrantes que vivenciaram as mesmas situações de marginalização. Desse fato deriva, por exemplo, a tentativa de manter coletivamente muitos costumes do lugar de origem, como culinária, religião, formas de lazer, entre outros, sendo bastante comum que isso ocorra entre familiares ou pessoas da mesma cidade. A família funciona, por sua vez, como o cerne da sobrevivência, tanto pela luta por melhores condições financeiras como pela construção de uma identidade – e, até mesmo, como representação da própria motivação de migrar. Quando não está perto da família, o migrante procura manter viva sua cultura e seus valores junto daqueles com quem convive. As relações de compadrio e reciprocidade, bem como os vínculos com a origem em comum, são preservadas nos bairros, onde se reconhecem e se constroem os laços de identidade a partir dos mesmos referenciais.
A ideia de "cultura nordestina" remete ao início dos anos 1930, quando os próprios termos Norte e Nordeste – no sentido regional, histórico, geográfico, político e cultural – eram usados como sinônimos, mostrando que a própria ideia de Nordeste ainda estava em construção.[1] Sua conceitualização como espaço geográfico surgiu no período do Estado Novo, quando houve a divisão do território nacional em cinco regiões. Esse governo se caracterizou ainda por uma intensa propaganda política de construção da identidade da nação a partir da valorização das diferentes regiões do país e do trabalhador nacional – elementos já discutidos em textos anteriores dessa série. Em 1930 surge o Movimento Regionalista, que contou com o apoio de muitas personalidades culturais conhecidas, como Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Foi dotado de um intenso sentimento de identidade e tornou-se referência para outras produções culturais, promovendo o romance também como uma forma de denúncia social e de fortalecimento da ideia de unidade dos estados do Nordeste.
Em sua dissertação, Selma Borges explica que não existe uma só cultura nordestina:
"(...) cada Estado tem as suas particularidades culturais. A Bahia, por exemplo, se diferencia dos demais estados do Nordeste, tendo como um dos fatores relevantes a presença marcante dos negros escravos que trouxeram da África elementos culturais que deram origem a especificidades locais, a exemplo da culinária afro-baiana (acarajé, vatapá, caruru, etc), da capoeira, e de uma musicalidade característica que se expressou especificamente no aspecto rítmico. (...) De uma maneira geral, os estudos das identidades têm ressaltado a importância de se observar não apenas a representação que um grupo faz de si, mas também a que deles fazem os outros. Acreditamos que existe uma profunda interação entre estes dois aspectos da questão da identidade, na medida em que a representação que o grupo faz de si é afetada pela que deles fazem os outros." [2]
Contudo, essa generalização pode ser lida também como uma forma de unidade, uma aproximação em nome de um fortalecimento de sua cultura. Essa é a identidade que, de certa forma, surgiu a partir do sentimento de ser um estranho na cidade, lutando pela manutenção de sua cultura de origem. Uma dessas representações de unidade é a literatura oral que, ao compartilhar histórias regionais com mitos indígenas e narrativas africanas, expressa ideias e modos de vida, assim como acontece também com a literatura de cordel. Com textos escritos em forma de verso, esse gênero é simples, poético e dá sentido aos valores culturais. Com o tempo, essa poesia rítmica passou a ser impressa em folhetos e recitados nas festas populares.
A música, por sua vez, é outro elemento muito marcante na formação da identidade cultural nordestina. Seu maior representante é Luiz Gonzaga, que começou a cantar e divulgar sua música no rádio dos anos 1940. Foi o primeiro nordestino a se destacar nesses veículos dos grandes centros urbanos, utilizando uma linguagem que aproximava a população migrante do Nordeste, trazendo familiaridade e identificação por meio de voz, expressões, sotaque e narrativas sobre causos, histórias e memórias de uma vida que seus conterrâneos conheciam bem. Ele passou a apresentar o programa "No mundo do Baião" na Rádio Record, em São Paulo, e na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Usando uma roupa de cangaceiro para se apresentar em público, Luiz Gonzaga tornou-se o artista "capaz de atender à necessidade do migrante em escutar os seus sons e mirar as imagens que lembravam a sua terra, formando, assim, o espaço da saudade, em meio ao estranho mundo urbano".[3] Esse artista abriu caminho para cantores e compositores muito aclamados como Alceu Valença, Zé Ramalho, Dominguinhos e diversos outros, que também compartilham desse mesmo universo de influências. Se Graciliano Ramos e Guimarães Rosa narraram o cenário nordestino, a vida árida do homem sertanejo por meio de suas palavras, esses cantores inspiravam a memória nacional narrando suas trajetórias por meio de melodias e riquezas rítmicas próprias:
Quando eu vim do sertão
Seu môço, do meu Bodocó
A malota era um saco
E o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei
Eu penei, mas aqui cheguei
Trouxe um triângulo, no matolão
Trouxe um gonguê, no matolão
Trouxe um zabumba dentro do matolão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matolão.[4]
A culinária é outro elemento muito conhecido da cultura nordestina. Gilberto Freyre escreveu sobre a culinária regional, constituindo uma bibliografia praticamente inexistente até então, incentivando seu consumo fora do âmbito doméstico. Os estudos do antropólogo Câmara Cascudo e seu livro "História da Alimentação do Brasil" também constituem uma literatura muito importante sobre o assunto. Em novecentas páginas, o autor percorre a gastronomia brasileira minunciosamente, passando pelas tradições, receitas e ingredientes tão apreciados na culinária nacional, por meio de entrevistas e relatos de viagens. A publicação inspirou, inclusive, uma série de mesmo nome no streaming da Amazon Brasil, contanto com 13 episódios.
E não seria São Paulo a maior cidade nordestina fora do país, onde se encontra o maior contingente migratório originário do Nordeste "que vive na cidade e dela participa como mão-de-obra no processo de desenvolvimento urbano e industrial trazendo sua cultura típica daquelas regiões"?[5] Nesse espaço urbano, eles recriaram uma unidade por meio de suas lojas de produtos típicos, a famosa "Casa do Norte", e seus salões de convivência, sociabilidade e lazer. Um grande exemplo disto é o CTN, Centro de Tradições Nordestinas, localizado no bairro do Limão, um dos maiores pontos de encontro desses brasileiros em São Paulo. O espaço busca recriar a atmosfera interiorana e oferece comida típica, música, atividades infantis, entre outros.
Se a formação de uma identidade nordestina forjou-se juntamente a um projeto de identidade nacional, a cultura nordestina continuou a se desenvolver e se transformar no palco da cena urbana, criando uma unidade de sociabilidade, convivência, experiências, lazer, vida e modo de viver.
Referências bibliográficas
[1] Borges, Selma Santos. O nordestino em São Paulo: desconstrução e reconstrução de uma identidade. Dissertação (Mestrado em História Social). PUC, São Paulo, 2007.
[2] Op. Cit.
[3] Galhardo, Soledad. Os conterrâneos nordestinos na metrópole de São Paulo: seus símbolos, sua memória e seus mitos. Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os dias 23 a 25 de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.
[4] Música Pau de Arara, composição de Luiz Gonzaga
[5] Borges, Selma Santos. O nordestino em São Paulo: desconstrução e reconstrução de uma identidade. Dissertação (Mestrado em História Social). PUC, São Paulo, 2007.