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Brasileiros na Hospedaria: Ocupação, trabalho e gênero
Hoje daremos continuidade ao texto, apresentado na semana passada, sobre trajetórias e formas de trabalho dos migrantes nacionais acolhidos pela Hospedaria de Imigrantes do Brás. Sobre o tema, é necessário fazer uma distinção com relação às políticas de trabalho para homens e mulheres. A pesquisa histórica sobre essa mobilidade acabou colocando, muitas vezes, a mulher apenas como uma companheira do homem, sem autonomia, focando sempre mais atenciosamente na laboração masculina. Isso se deu, em primeiro lugar, pela característica majoritariamente masculina destes fluxos migratórios para o São Paulo e, em segundo lugar, pelas políticas adotadas pela Hospedaria (ou ausência delas) de direcionamento de postos de trabalho diversificados para mulheres.
A Hospedaria serviu de dependência, a partir de 1967, para a Secretaria de Promoção Social; havia prestação de atendimento médico-social, alojamento e colocação de trabalhadores. Além disso, possuiu também atividades que visavam o desenvolvimento e melhoria das condições sociais desses indivíduos. Em 1971, o antigo Departamento de Imigração e Colonização passou a se chamar Departamento de Amparo e Integração Social, abrangendo tais atividades mencionadas, além de triagem e encaminhamento para emprego. Os auxílios prestados eram: curso profissionalizante, capacitação profissional, recepção, auxílio-transporte, atendimento médico, orientação psicossocial e encaminhamento para postos de trabalho. A Secretaria da Promoção Social foi extinta em 1993. Abaixo, podemos observar duas imagens do Arquivo Público do Estado de São Paulo: uma ficha de matrícula de um migrante mineiro no curso de torneiro mecânico e um recibo, do ano de 1969, de um trabalhador que recebeu dinheiro para condução em transporte público e providenciar documentos.
Em pesquisa nos documentos da Secretaria de Promoção Social/Departamento de Amparo e Integração Social do Arquivo Público do Estado de São Paulo, não encontramos fichas de matrículas de mulheres nos cursos de capacitação profissional. Com relação ao encaminhamento de trabalho, havia algumas: todas encaminhadas para o serviço doméstico. Esse é um tema que precisa ser estudado e pesquisado com mais profundidade antes de se estabelecer alguma conclusão, mas, mesmo de início, são dados que chamam a atenção.
Diferentes estudos realizados entre as décadas de 1930 e 1960 mostram que a porcentagem de mulheres que se deslocava era cerca de um terço menor do que de homens. Segundo dados do IBGE, em 1953, na cidade de São Paulo, 70% dos migrantes nacionais eram homens. Dados da AVIM – Associação Voluntária pela Integração dos Imigrantes, uma entidade particular apoiada pela Igreja –, 20% dos assistidos em 1953 eram mulheres.[1] De fato, os homens formavam a maioria dos migrantes e isso, como consequência, alterou a estrutura demográfica de seus locais de origem. Em períodos de intensa saída, a proporção de homens nesses municípios era de inferioridade numérica, na maioria dos casos. Em contrapartida, nos municípios paulistas, o sexo masculino representava superioridade numérica, o que bem representa o desamparo em que muitas famílias eram deixadas com a mudança:
"Já pelo abandono do lar pelo trabalhador, que, enleado pelas seduções da cidade, o esquece, quando separado dos seus, já pelas condições da família abandonada, sujeita à dissolução."[2]
Mas há também outras variáveis. A primeira delas depende da distância: quanto menor o deslocamento, maior o número de mulheres presentes nos fluxos migratórios. A segunda se relaciona com o recenseamento do estado civil: nos êxodos que arrebanhavam famílias inteiras e não indivíduos isolados, havia, habitualmente, maior presença de mulheres. Isso ocorreu entre 1947 e 1949, quando 67% dos migrantes nacionais estavam reunidos em famílias. A vantagem dessa derivação é a menor modificação das estruturas demográficas das cidades onde houve êxodos.
No que se refere à ocupação dessas mulheres, um pequeno número delas afirmava ser costureira e, o restante, doméstica. Como opção de trabalho, o serviço doméstico representou uma saída. Nesse lugar, elas continuariam a desempenhar o papel de cuidadora do lar; é no âmbito doméstico das casas de famílias abastadas que lhes foi permitido reproduzir os papeis de mães e avós. Portanto, é o serviço doméstico um dos principais postos de trabalho adotados na trajetória de vida dessas mulheres, migrantes nacionais, ao buscar garantir a sobrevivência pessoal e de suas famílias. Sem estudos e sem conhecimento de trabalho especializado, essa posição significava não só vender a força de trabalho, mas representava um modo de vida, entendido também como uma responsabilidade da mulher, de um ponto de vista social:
"Esse trabalho dirigido para as atividades de consumo familiar, é um serviço pessoal para o qual cada mulher internaliza a ideologia de servir aos outros, maridos e filhos. O trabalho realizado para sua própria família é visto pela sociedade como uma situação natural, pois não tem remuneração e é condicionado por relações afetivas entre a mulher e os demais membros familiares, gratuito e fora do mercado."[3]
Em alguns lugares mais remotos ou sem oportunidades, o serviço doméstico se tornou uma oportunidade de "mudança" de vida e de possibilidades. É o que acontece com muitas garotas convidadas a serem domésticas ou apenas "ajudantes" na casa de algum conhecido, um certo tipo de "apadrinhamento" de famílias mais abastadas com a ideia – ou a desculpa, por assim dizer – de sustento ou de manutenção dos estudos. Para muitas garotas de áreas rurais, viajar para a cidade grande, trabalhar sem remuneração para famílias de classe média e alta em troca de sustento e estudos era, na verdade, uma expectativa ilusória.
Tendo como base a memória de filmes e novelas brasileiros, o estereótipo de trabalhadoras domésticas é quase sempre uma mulher migrante de cor parda ou preta. Quando não é doméstica, está exercendo serviços de limpeza de baixa remuneração, sempre sobre a mesma denominação genérica.
Esse é um trabalho que, por muitos anos, se realizou na informalidade. Mesmo após a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943, a profissão não foi considerada uma ocupação formal. Somente em 1972 foi reconhecido como profissão, com a promulgação da Lei 5859. A legislação afirma que o trabalho doméstico é aquele "realizado por pessoa maior de 16 anos que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas". Houve uma melhora nessas relações, mas seus direitos ainda foram negados pela Constituição Federal de 1988 que não assegurou a elas os mesmos direitos dos demais trabalhadores brasileiros[4].
Ainda hoje é importante fazer uma distinção das condições e políticas preparadas para receber esses e essas migrantes, bem como explorar o modo como o gênero incide sobre diferentes fatores e condições sociais. A desestruturação demográfica nos locais de origem, o abandono familiar, a ausência de políticas destinadas a melhoria de suas condições e a negação da sua posição como chefe de família são fatores dos quais as mulheres foram vítimas. O serviço doméstico se apresentou como uma saída, trazendo à tona a necessidade de uma reflexão sobre as relações de trabalho nas migrações.
Referências bibliográficas
[1] Calmon, Jorge. As estradas corriam para o sul. Migração nordestina para São Paulo. Salvador: EGBA, 1998.
[2] Castro Barreto. Conferência publicada no Boletim Geográfico, dez. 1946, p.1132.
[3] GOMES, Sueli de Castro. Uma inserção dos migrantes nordestinos em São Paulo: o comércio de retalhos. Imaginário, São Paulo, v. 12, n. 13, p. 143-169, dez. 2006.
[4] Melo, Hildete Pereira. O serviço doméstico remunerado no Brasil, de criadas a trabalhadoras. Rio de Janeiro: IPEA, 1998.