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Brasileiros na Hospedaria: Os caminhos passam por Minas
Na publicação anterior desta série, discorremos sobre as dificuldades enfrentadas pela cidade de São Paulo na acolhida de migrantes nacionais entre o final da década de 1940 e início da década de 1950. Além da falta de planejamento adequado, a situação se agravou em razão do edifício da Hospedaria de Imigrantes do Brás estar inapto para a recepção de pessoas, já que estava cedido à Aeronáutica. Em um cenário de aumento considerável dos fluxos migratórios e inércia do poder público no desenvolvimento de uma malha ferroviária mais eficiente, as soluções promovidas na capital paulista não escaparam a uma série de improvisações. Se a cidade São Paulo, já bem desenvolvida com estruturas para hospedagem e costume de receber migrantes (estrangeiros ou nacionais), teve que enfrentar esses obstáculos, o que ocorria no meio do caminho? Como os migrantes, especialmente nordestinos, chegavam a São Paulo e em quais condições? Onde eles descansavam? Por onde eles passavam?
De maneira geral, não existia saída agradável para o migrante que se dirigia a São Paulo e ao Rio de Janeiro. A viagem era realizada na terceira classe de um navio, em um vagão de trem lotado na segunda classe ou em um pau-de-arara inseguro. As opções terrestres eram as mais utilizadas porque, via de regra, eram as mais baratas. Partindo do sertão nordestino, muitas vezes a pé, o migrante procurava chegar em boas condições na fronteira do estado da Bahia com Minas Gerais, que concentravam os transportes para as terras paulistas. Nesse trajeto, algumas cidades mineiras se destacavam: além da capital, Belo Horizonte, Montes Claros, Monte Azul, Pirapora e Corinto eram importantes em razão da presença das ferrovias e, portanto, concentravam uma parcela significativa dos migrantes em trânsito.
Com poucas exceções, como um grupo de piauienses que viajou a pé de São Raimundo Nonato até a Serra do Mar, em São Paulo[1], ou aqueles que viajavam por mar, o caminho escolhido pelo nordestino exigia que fosse para o sul da Bahia e, depois, adentrasse o estado de Minas Gerais. Sabendo disso, as pessoas se planejavam logisticamente e financeiramente para empreender a viagem. Os baianos, por exemplo, contavam 100 cruzeiros para o trajeto inicial de caminhão, mais 94 cruzeiros e uns trocados para a passagem de Monte Azul até a capital paulista.[2] No entanto, esse planejamento era frequentemente prejudicado porque não havia trens suficientes para transportar as pessoas que chegavam em Monte Azul. Esses meios de transporte partiam diariamente e com os vagões apinhados de gente. Em alguns dias da semana, havia um expresso noturno, inclusive, porém não era o bastante para a quantidade de migrantes que esperavam um embarque imediato.[3] Portanto, muitos precisavam aguardar vários dias na cidade até que conseguissem uma vaga. Isso, evidentemente, fazia com que suas economias esvaíssem, pagando um alojamento, alimentação, entre outros. Ou seja, não era incomum as pessoas viverem em uma espécie de limbo. Sem dinheiro para seguir viagem e sem dinheiro para voltar para a terra de origem, era necessário arranjar empregos temporários, muitas vezes em condições desumanas. Estavam desesperadas e – em virtude disso também –eram frequentemente exploradas.
Esse problema não era exclusivo de Monte Azul. Em Belo Horizonte, os albergues da cidade não davam conta de abrigar muita gente. O pátio da estação ferroviária se transformava em hospedaria provisória. Na reportagem de Álvares da Silva, publicada na revista O Cruzeiro, de 21 de abril de 1951, cujo título é "A tragédia dos deslocados nacionais – sertanejos no asfalto", ele comenta sobre o cenário citado acima. O trecho está na dissertação de mestrado de Monia de Melo Ferrari, A migração nordestina para São Paulo no Segundo Governo Vargas (1951-1954) – Seca e Desigualdades Regionais:
"Na plataforma (estação Central do Brasil, em Belo Horizonte) havia uma galeria de fantasmas. Eram os deslocados – homens, mulheres e crianças – enrolados em lençóis, em panos brancos, tentando conciliar o sono, no ladrilho, no cimento, nos bancos, tendo malas e sacos por travesseiro...Um funcionário ferroviário chegou e disse: - ‘Isso que está aí é apenas uma parte. Isto é, a parte que não teve sorte. No albergue não cabe todo mundo. De maneira que mais da metade tem de dormir aqui...Agora, além de padecerem na viagem, e tem gente que está viajando há mais de vinte dias, chegam aqui e às vezes não encontram lugar para dormir...E sabe o que aconteceu aqui uma vez? Os trens andavam atrasados e a concentração foi ficando muito grande. Então o prefeito de Belo Horizonte mandou vir aqui uma ‘vaca leiteira’ e distribuiu leite para todo mundo. Pois olhe, quase todos os retirantes adoeceram..."[4]
Para tentar solucionar o problema da acolhida, na cidade de Corinto se fez uma Hospedaria de Migrantes, aparentemente desativada em 1954. Segundo o projeto nº 4.019-1954, a Câmara dos Deputados "autoriza o Poder Executivo a transformar em Hospital Regional a atual Hospedaria de Imigrantes do Ministério do Trabalho, sediada em Corinto, Estado de Minas Gerais". A justificativa para tal ação segue no documento:
"A cidade de Corinto, grande centro ferroviário da Central do Brasil, na região centro-norte de Minas Gerais, é o ponto de tangência de três linhas férreas que procedem de Pirapora, Montes Claros e Diamantina...Acontece, entretanto, que a cidade de Corinto não é o ponto indicado para tal iniciativa (ter uma Hospedaria de Imigrantes), pois, os retirantes oriundos do Nordeste, ficam, geralmente, em Monte Azul, Montes Claros e Pirapora, aguardando embarque para outros centros do país. Corinto representa apenas uma cidade intermediária, ponto de passagem dos imigrantes..."[5]
Mas a saga do migrante não era só encontrar um lugar para repousar e tentar economizar seu dinheiro ao máximo. Os trens lotados não ofereciam um mínimo conforto para as pessoas. Um ou outro migrante, uma ou outra família, que possuía uma condição financeira um pouco melhor, conseguia lugar em um vagão de primeira classe.[6] Mas essa não era a realidade da maioria. Além do cansaço físico e da fome – a alimentação consistia em farinha e rapadura, de modo geral[7] –, a viagem também causava um desgaste emocional enorme. Na exposição temporária "Hospedaria 130", realizada no Museu da Imigração em 2017, mencionou-se o caso do suicídio de um potiguar na Hospedaria. Isso, pesarosamente, também ocorria durante o trajeto, como podemos ver no depoimento do ferroviário Jaime Soares Mota, presente na obra Os Sampauleiros: cotidiano e representações, de Ely Souza Estrela:
"Uma mulé estava assim numa cadeira sentada assim junta comigo. Num instantim, ela se levantou, assim como coisa que tava dormindo, e foi se meter pela janela, né? Aí, o home levantou e ainda pegou ela pela perna, ainda puxou, ainda cortou assim no vidro na classe. Se joga assim de repentim."[8]
Um problema levava a outro ou mesmo intensificava o outro. A fuga da seca e miséria, a necessidade de caminhar sob sol escaldante, a luta para conseguir um transporte para Minas Gerais, ter a sorte de – nesse local – embarcar rápido ou conseguir um local adequado para descansar, cuidar para não gastar todo o dinheiro, enfrentar vagões lotados, passar fome e estar mais vulnerável às doenças. O migrante desembarcava em São Paulo e, muitas vezes, passava pela Hospedaria absolutamente desgastado. Infelizmente, os obstáculos para sua sobrevivência não acabavam com a chegada ao destino.
Referências bibliográficas
[1] FERRARI, d. M. Monia. A migração nordestina para São Paulo no Segundo Governo Vargas (1951-1954) – Seca e Desigualdades Regionais. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 2005. p. 106.
[2] Idem, p. 105.
[3] Idem, p. 102.
[4] Idem, p. 106.
[5] Projeto nº 4019, de 1954. Câmara dos Deputados, Congresso Nacional.
[6] FERRARI, d. M. Monia. A migração nordestina para São Paulo no Segundo Governo Vargas (1951-1954) – Seca e Desigualdades Regionais. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, 2005. p. 103.
[7] Idem, p. 103.
[8] Idem, p. 104.
Foto da chamada: crianças nortistas vindas por Pirapora, em Minas Gerais.