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Brasileiros na Hospedaria: Percursos, ocupação e trabalho
Nesta série, "Brasileiros na Hospedaria", buscamos refletir sobre a migração dos trabalhadores nacionais, o grupo que passou em maior quantidade pela antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. Sua presença na cidade fez parte de um quadro complexo de mudanças na economia do país.
O movimento migratório dos nordestinos para o Sudeste, em especial São Paulo, teve seu pico nos anos 1950 e começou a diminuir a partir da década de 70, com oscilações no fluxo entre as regiões. Devido à diminuição da entrada de estrangeiros no país e à expansão da estrutura agrária paulista, a mão de obra na lavoura tornou-se insuficiente. Em 1935, a Secretaria de Agricultura promulgou uma política de estímulo à migração de trabalhadores nacionais em direção à agricultura paulista, especialmente no cultivo de algodão e café. Esses trabalhadores deslocavam-se por meio de contratos, tendo sua passagem subsidiada pelo governo do Estado. A Hospedaria de Imigrantes foi o local que recepcionou parte desses imigrantes. Nosso acervo documenta as políticas públicas em torno da tentativa de alojamento e organização de mão de obra barata. Nessa instituição, os nordestinos pernoitavam por alguns dias e passavam por uma triagem para terem seus documentos verificados, bem como suas condições de saúde. Entre os anos 1920 e 1950, São Paulo recebeu mais de 1 milhão de migrantes nacionais.
"A Hospedaria dos Imigrantes – amplo e bem administrado estabelecimento – constituía, a bem dizer, a amostra do que poderiam ser para o trabalhador as condições de vida numa região economicamente adiantada. Sem o requinte de instalações luxuosas, mas com a sóbria modéstia de serviços que funcionavam eficazmente, encontravam-se ali todas as modalidades de amparo do poder público que o imigrante nacional reclamava em suas terras e cuja falta serviu, precisamente, de motivo para a sua evasão. (...) Logo que matriculados, os imigrantes eram submetidos a inspeção médica e vacinados. Os doentes iam para as enfermarias ou recebiam medicamentos. Alojados e alimentados, os que tinham permissão para viajar examinavam as ofertas de trabalho encaminhadas pelos fazendeiros à Hospedaria, e livremente escolhiam o seu destino, aceitando aquelas ofertas ou preferindo dirigir-se para as zonas onde acreditavam encontrar ocupação conveniente. 24 ou 36 horas depois da chegada, embarcavam no trem, rumo ao interior, cada um deles levando um farnel para a viagem."[1]
Segundo Jorge Calmon, essa assistência oferecida ao trabalhador nacional – não só nordestino, mas também ao mineiro –, contribuiu para estimular a transferência destas famílias para São Paulo. O auxílio que recebiam ao chegar da Hospedaria era mencionado em mensagens posteriores aos parentes e colegas de origem, incentivando-os também a migrarem. De acordo com um censo apresentado pelo autor em seu estudo, nos anos 1920 residiam em todo o estado de São Paulo um pouco mais de 7 mil brasileiros provenientes de outros locais do país. Em 1950, esse número ultrapassa 1 milhão.
Em 1939, o Estado cria o Departamento de Imigração e Colonização, vinculado à Secretaria de Indústria e Comércio, com a intenção de conduzir esse número de migrantes nacionais para o interior, nas fazendas de café. A Companhia Paulista de Estradas de Ferro os transportava gratuitamente para o interior. Com a restrição da entrada de estrangeiros pela Constituição de 16 de julho de 1934, um regime de quotas foi estabelecido, assegurando passagens e diárias àqueles que quisessem se transferir do seu estado para trabalhar nas lavouras paulistas entre 1934 a 1937.
Entre as décadas de 1930 e 1940, a Hospedaria passou por várias transformações. O edifício deu lugar a um presídio político, a um quartel e, depois, a uma Escola da Aeronáutica. Nesse ínterim, um armazém de café localizado no Campo Limpo teria sido adaptado para receber os migrantes. O músico Luiz Gonzaga teria se tornado um porta-voz da defesa de um local para a realização dessa recepção, tendo feito um apelo para a construção de uma Hospedaria do Trabalhador Nordestino, no ano de 1950. Ainda durante o período de ocupação do espaço pela Escola Técnica de Aviação, o jornal Correio Paulistano, em dia 19 de agosto de 1950, trouxe uma nota sobre um projeto de lei de autoria de Arimondi Falconi, sobre o pedido de um crédito de 5 milhões de cruzeiros, destinado à construção da Hospedaria do Imigrantes Nacional. Em 27 de março de 1951, foi capa do mesmo jornal:
Não há hospedagem decente para os imigrantes nordestinos em S. Paulo. Há dias em que desembarcam na Estação Presidente Roosevelt mais de setecentos nordestinos – apenas dois hoteizinhos de quinta classe para hospedar numerosas famílias de retirantes – cearenses, pernambucanos e sergipanos englobados com a mesma denominação de "baianos". De manhã cedo podem ser vistos quase todos os dias grupos de homens, mulheres e crianças vestidos de brim, encardidos, sujos, sentados em cima de trouxas e malas. São retirantes nordestinos (...) os empregados da estrada não os chamados de nordestinos. Para sua compreensão simples são "baianos". "Baianos" de Minas, de Piauí, do Ceará, da Bahia também. (...) Aqui, muitos deles verão pela primeira vez um tubinho de vacina contra a varíola.
A notícia continuou denunciando a precariedade da viagem e o processo de seu acolhimento por dois hotéis na região, ambos com péssimas condições de salubridade. A Hospedaria continuava funcionando em algumas seções – inspeção sanitária, funções administrativas, refeitório e agência de trabalho –, mas sem oferecer a todos uma estada mais prolongada por conta de ter parte do seu pavilhão ocupado pela escola:
"O polonês ou o italiano tem sempre o maior conforto em sua viagem até o Brasil, mas o retirante nordestino viaja como um animal nas gaiolas que descem o S. Francisco. O nordestino que chega a São Paulo em busca de serviço, neste ano de 1951, sai de um vagão para entrar em outro."
As principais lavouras para onde iam esses trabalhadores eram as de algodão e café. Devido a diversos problemas – como improdutividade da terra e outras condições completamente desfavoráveis – observou-se o início de um processo de saída das regiões rurais para as capitais (ou para agricultura em outros estados, como no norte do Paraná), que se intensificou nas décadas seguintes. Houve também um massivo retorno dessas famílias para seus estados de origem. Os retirantes que se dirigiram à capital vão, majoritariamente, ocupar os trabalhos de construção civil ou no operariado de fábricas. Esse êxodo do interior foi bastante expressivo, dado a baixa produtividade dos setores da agropecuária ou determinado pela condição precária nas fazendas.
Cada prédio em São Paulo construído
Tem o sal do suor do nordestino
Se antes da grande imigração
Nordestina pra terra bandeirantes
São Paulo estava bem distante
De ser a potência da nação
O povo da nossa região
Fez São Paulo tomar outro destino
E agora em todo chão latino
Seu primeiro lugar é garantido
Cada prédio em São Paulo construído
Tem o sal do suor do nordestino.[2]
Já foi extensamente falado nos textos anteriores desta e de outras séries sobre as mudanças vivenciadas pelos habitantes da cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. A cidade foi local de uma imensa expansão urbana e industrial em pouco tempo, em acelerado desenvolvimento. O motor das migrações internas para as capitais foi a industrialização das regiões mais desenvolvidas[3]. A existência de ferrovias e rodovias acelerou e estimulou o fluxo inter-regional, além da política de cotas que desfavoreceu a entrada de estrangeiros, garantindo que um terço dos contratados das empresas e indústrias fossem brasileiros.
Esse foi um momento decisivo para que trabalhadores nacionais superassem o número de estrangeiros, bem como as reformas trabalhistas implementadas pelo governo de Getúlio Vargas, que regulamentavam, por exemplo, o salário mínimo. Segundo o sociólogo Uvanderson Vitor da Silva, esse foi o momento de formação de uma nova classe operária nacional. Os migrantes nacionais se tornavam, então, protagonistas importantes na sociedade urbano-industrial. Nas palavras do autor, essa nova classe operária compreendia "trabalhadores diferentes da ‘vanguarda operária’ do início do século XX, tinha seus contingentes recrutados nas áreas rurais do país"[4]. Os setores que mais representavam os contratantes dessa nova força de trabalho, naquele momento, era a indústria automobilística e, principalmente, a construção civil. De maneira geral, a entrada desses imigrantes no mercado de trabalho dentro do ambiente urbano foi, no caso dos homens, a construção civil e, no caso das mulheres, o trabalho doméstico.
A reflexão acerca dessa nova ocupação de trabalho e nova classe operária paulista, apresentada por Vitor da Silva, leva à conclusão de que a alocação de nordestinos para São Paulo foi um fenômeno social construído por diversos atores, entre os quais o poder público – tanto pelo entrave de entrada dos estrangeiros, quanto pelas políticas de cotas e subsídios. Contudo, a estrutura social foi ainda um fator determinante da sua dinâmica. O impacto sobre São Paulo, causado pela presença dos nordestinos, foi tão grande e importante quanto das outras nacionalidades conhecidas. Os migrantes foram capazes de criar redes de identidade e reconstruir sua comunidade e suas formas de sociabilidade.
Referências bibliográficas
[1] Calmon, Jorge. As estradas corriam para o sul. Migração nordestina para São Paulo. Salvador: EGBA, 1998.
[2] Música de Andorinha e Sebastião Marinho.
[3] Souza, Thiago Romeu. Lugar de origem, lugar de retorno: a construção dos territórios dos migrantes na Paraíba e São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.
[4] Silva, Uvanderson Vitor da. Velhos caminhos, novos destinos: migrante nordestino na Região Metropolitana de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Foto da chamada: família de migrantes nordestinos.