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Colecionando Histórias Orais: Mulheres em movimento - migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo
Na semana passada abordamos, em nosso texto "Colecionando Histórias Orais: Uma introdução", algumas questões de caráter mais teórico sobre a metodologia da História Oral. Analisamos seus processos de trabalho e contextualizamos a formação do acervo do Museu da Imigração referente a esse tema. Hoje daremos início à apresentação dos nossos atuais projetos. Começaremos por "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo", que já conta com quatorze entrevistas realizadas com mulheres de diferentes nacionalistas (América do Sul, América do Norte e África) e vem sendo desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração desde 2015.
Nos últimos anos, a atuação de mulheres migrantes tem ganhado destaque no cenário migratório paulistano. Há uma miríade de novos coletivos e projetos marcando uma participação ativa e transformadora na luta por direitos e representatividade.
Em 2014, em São Paulo, ocorreu a 8ª Marcha dos Imigrantes, cuja bandeira principal clamava: "Basta de violência contra @s imigrantes!". Na marcha esteve presente, pela primeira vez, a Frente de Mulheres Imigrantes, coletivo de mulheres que buscam se mobilizar por uma maior equidade de gênero no contexto migratório. No dia 8 de março de 2015, Dia Internacional da Mulher, mais um bloco de mulheres migrantes marchou junto a outros grupos pela cidade de São Paulo, denunciando a xenofobia e a violência institucional, doméstica, obstétrica, e reafirmando valores culturais das mais diversas nacionalidades. O Museu da Imigração foi um dos espaços utilizados para reuniões prévias ao ato, assim como a Praça Kantuta e o CIC Imigrante. A Frente de Mulheres Imigrantes, agora chamada Frente de Mulheres Imigrantes e Refugiadas, também teve participação ativa no Fórum Social Mundial das Migrações, realizado em julho de 2016 na cidade de São Paulo, inserindo questões de gênero na agenda do evento.[1]
Acompanhando esses processos, o Museu da Imigração vem se aproximando da atuação e mobilização de mulheres migrantes e refugiadas, explorando o tema em diversas ações e processos internos do Núcleo de Pesquisa. Partindo também da necessidade de compreender os movimentos migratórios da cidade de São Paulo nos últimos anos, a crescente mobilização da sociedade civil e seu diálogo com o poder público mostrou-se um assunto incontornável. Transformando-se, então, em alguns projetos de História Oral, integrando a proposta de atualizar o acervo a partir de pontos centrais do cenário migratório atual, dando especial atenção à trajetória das pessoas envolvidas. O protagonismo feminino nos espaços de luta e busca por direitos resultou, por fim, na elaboração do projeto "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo".
O objetivo geral é documentar a ação dessas figuras tão importantes no cenário migratório atual, refletindo sobre o momento presente e produzindo registros sobre a migração contemporânea. Com objetivos específicos, buscamos traçar um perfil da mulher migrante hoje; refletir sobre o processo de migração como projeto de vida familiar ou individual; compreender as relações sociais estabelecidas em nossa sociedade; registrar as conquistas de espaços por parte das mulheres migrantes, o seu crescente envolvimento no movimento social de migrantes e estratégias de mobilização; verificar pertencimento e identificação como mulher e migrante – como elas se manifestam e se sentem – e conhecer projetos liderados por mulheres.
Para o desenvolvimento e aplicação do projeto, foi realizada uma pesquisa documental prévia, bem como a elaboração de um roteiro de perguntas para o momento do encontro.[2] O início do roteiro é mais centrado na trajetória dessas mulheres, incluindo questões sobre país de origem, infância, processo de migração, estranhamentos, dificuldades, sociabilidade e impressões gerais. Em seguida, adentramos propriamente no tema da mobilização política e social e sobre a experiência do deslocamento a partir da perspectiva feminina e dos estudos de gênero. As mulheres entrevistadas foram contatadas por meio da aproximação da equipe do Museu com as ações expostas cima. A seleção foi feita com base no interesse de cada uma em participar. As entrevistadas são, ainda, questionadas sobre outras mulheres que poderiam se interessar pelo projeto, de maneira a ampliar a rede de contatos.
Uma das questões colocadas no momento da entrevista diz respeito às especificidades de ser mulher imigrante no Brasil. Nesse caso, as dificuldades de ser migrante somam-se às dificuldades de ser mulher, muitas vezes resultando em um processo de invisibilização, como afirmou Andrea Carabantes:
"É engraçado porque cada vez mais, mesmo que a gente está aparecendo mais, fica mais evidente que a mulher imigrante é invisível, assim, invisível. A imigração já é invisibilizada (...) a mulher, então, não existe." [3]
Verônica Yujra, por sua vez, afirma que começou a compreender as diferenças de gênero existentes na migração a partir de sua atuação na área da saúde:
"Na medida em que eu fui me aproximando tanto do movimento de imigrações como do movimento de saúde, principalmente, eu comecei a perceber que realmente não é igual. Existem coisas que não foram preparadas para atender mulheres, por exemplo. E que a vontade, às vezes, da gente, de nós mulheres, não é respeitada. Junto com isso, o movimento de imigração me trouxe muito forte a questão da violência." [4]
A questão da violência sofrida por mulheres é um ponto presente na grande maioria das entrevistas do projeto. Violência profissional, doméstica, obstétrica:
"Se uma mulher que já é brasileira fica vulnerável a essa violência e, apesar de todo o conhecimento da liberdade e da autonomia que ela tem aqui, às vezes não procura ajuda, comecei a perceber de como a mulher imigrante fica vinte vezes mais vulnerável. Porque além de ela não ter autonomia, ela não ter liberdade de procurar ajuda, ela tem toda a dificuldade de se achar totalmente dependente do homem dentro da casa. Porque é o homem que tem outros contatos no trabalho, é o homem que faz toda a organização das contas, é o homem que representa aquela família no país. Então aí eu comecei a perceber como, apesar de velado – naquela época para mim estava velado – como é difícil ser mulher imigrante em outro país."[5]
A questão do parto, por exemplo, é muito forte para as mulheres andinas, que possuem, nesse âmbito, uma cultura bastante diferente da brasileira. À violência obstétrica, que já existe no sistema de saúde brasileiro, somam-se outras formas de violências e dificuldades específicas da condição migrante. Segundo Andrea Carabantes:
"A gente está focando muito no tema do parto porque a gente sente que isso toca um ponto bem central das mulheres. Quando a gente fala, parece assim, eu mesma já ouvi assim: ‘ah, com as brasileiras é o mesmo...’. Mas tipo assim, tem violência domésticas das brasileiras, tem violência no parto, tem violência no atendimento público, tem. Mas quando é mulher imigrante além disso tem xenofobia, tem maus tratos, tem racismo por ser imigrante."[6]
No entanto, a ideia de um acúmulo vivido pela mulher migrante não deve ser entendida somente de forma negativa. Algumas entrevistadas ressaltam os aspectos positivos e enriquecedores dessa condição:
"E ser mulher imigrante eu acho que é cumulativo. Mas é um cumulativo cultural também, sabe? É um cumulativo de que você também está ali para provocar alguma coisa em outras pessoas que não conhecem ou que não sabem. E também se reconhecer em relação aos outros, sabe? Então isso é bem massa."[7]
Assim como a questão em torno do parto, a temática da maternidade encontra-se bastante presente nas entrevistas do projeto. Além das adversidades, Jobana Moya ressaltou seu aspecto de empoderamento, reconhecimento e construção de redes de apoio.
"Então, pensei ‘por que não fazer algo com mulheres imigrantes e visibilizar um pouco essa parte da maternidade, da discriminação’? Porque, claro, as mulheres desde el rol de mãe, trabalhadora, poucas vezes você encontra espaços onde possa ir com seus filhos e ter uma participação política. Nós sempre estamos acompanhando os esposos pero sem ter nenhum protagonismo aunque façamos tanto quanto eles. (...) Nadie levava o filho na reunião, mas eu comecei a levar porque era como: ‘ninguém vai negar a minha participação porque é um espaço político e eu posso ir com minha filha’. Acho que a partir daí foi muito forte para mim, sentir uma mulher imigrante e sentir que, sim, isso sou eu e a partir daqui posso avançar e mostrar outras coisas."[8]
A partir do reconhecimento do feminismo, muitas mulheres migrantes se sentiram empoderadas e encorajadas em seus processos individuais e coletivos de busca por reconhecimento e conquista de espaço – tanto político quando social e cultural:
"Ser mulher imigrante é ser, acima de tudo, forte, corajosa. É ser uma mulher Anynmaga, que eu coloquei no nome da minha empresa, que quer dizer uma mulher guerreira, ousada, desafiadora. Então por isso que eu acho que Anynmaga é o nome que descreve uma mulher imigrante. Porque a gente sempre está transgredindo no modo certo, não no modo transgressão da lei. Transgredindo a natureza, os limites que nos são colocados. A gente está sempre pulando, sempre superando todos os dias. E isso é ser mulher imigrante."[9]
Em consonância com essas vozes, o Museu da Imigração se coloca como mais um agente e um espaço de representatividade das mulheres migrantes em toda sua potência. Em setembro de 2016, inauguramos a exposição "Direitos Migrantes: nenhum a menos", um importante exemplo de ação que derivou desse projeto, contando com inúmeras imagens, sons e textos – muitos baseados nas entrevistas de História Oral – que põem em evidência diversas vozes e experiências de migrantes, em que as mulheres tiveram um espaço de destaque e protagonismo. O projeto "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina da cidade de São Paulo" segue em andamento, bem como as múltiplas ações que dele reverberam.
A Coleção de História Oral é disponibilizada ao público interessado e aos pesquisadores, que podem ter acesso ao seu conteúdo por meio do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência (CPPR) do Museu da Imigração, tanto na forma de transcrição da entrevista para documento escrito quanto por meio do vídeo já editado.
Referências bibliográficas
[1] Waldman, Tatiana Chang; Morales, M. Angélica Beghini. Mulheres em Movimento: registrando memórias migrantes, Travessia (São Paulo), V. ano XXIX, p. 65-78, 2016; Waldman, Tatiana Chang; Morales, M. Angélica Beghini. “Entre trajetórias e memórias: mulheres migrantes e a luta por direitos na coleção de História Oral do Museu da Imigração de São Paulo.” In: 13º Mundos de Mulheres - Fazendo Gênero, 2017, Florianópolis. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress, 2017.
[2] Seguimos, entre outras, a metodologia proposta por Meihy, J. C. S. Manual de História Oral, 2005 e Holanda, F. História Oral: como pensar e como fazer, 2009.
[3] Soto, Andrea Carabantes. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2015.
[4] Yujra, Veronica Quispe. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2016.
[5] Ibid.
[6] Soto, Andrea Carabantes. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2015.
[7] Torrez, Patrícia. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2015.
[8] Moya, Jobana. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2016.
[9] Ferreira, Nadia. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, São Paulo, 2016.
Foto da chamada: Patrícia Torrez em entrevista para a coleção de História Oral do Museu da Imigração.