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Colecionando Histórias Orais: Outros projetos e usos de entrevistas
Chegamos ao último texto da nossa série "Colecionando Histórias Orais". Nos textos anteriores, apresentamos alguns de nossos projetos e seus depoimentos: "Mulheres em Movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo"; "Conselheiros Extraordinários Migrantes nos Conselhos Participativos Municipais"; "Hospedaria de Histórias"; "Conte sua História", e "Diálogos Criativos: migração no circuito da cultura e das artes". Comentamos também sobre a existência de quase 500 entrevistas coletadas na gestão anterior do Museu da Imigração, iniciadas em 1993, com o objetivo de registrar trajetórias de vida que perpassaram a história das migrações no Brasil. São conversas realizadas com migrantes e descendentes de diversas comunidades, alguns dos quais passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Brás.
Como já foi dito, a coleção continua sendo ampliada, principalmente por meio de projetos voltados ao contexto contemporâneo e às temáticas que possuem pouca representatividade no acervo do Museu, como a migração nacional e a relação da Hospedaria com seus funcionários. No entanto, a metodologia das entrevistas também foi utilizada pela equipe para a realização de alguns projetos específicos – como a curadoria de exposições temporárias.
Esse foi o caso do projeto "Histórias de Hospedarias", que fez parte da curadoria da exposição temporária "Sinta-se em casa". Essa exposição tratou da temática da moradia migrante, desde o período de abertura da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás até a atualidade. No projeto, foram realizadas entrevistas com dirigentes de seis casas de acolhida que existem atualmente na cidade de São Paulo e que abrigam, em sua maioria, migrantes internacionais. O roteiro de perguntas buscava abarcar a história da instituição, suas principais características estruturais, serviços e cotidiano dos abrigados, bem como a relação dos mesmos com os funcionários. A partir desse material, foi possível compor um mapa da cidade de São Paulo, no passado e no presente, apresentando as mudanças na cidade e sua relação com a acolhida de migrantes. Esse mapa compôs o primeiro eixo da exposição "Sinta-se em casa" e dialogou com itens do acervo, bem como com trechos de entrevistas mais antigas que tratavam da relação dos migrantes com a noção de casa e acolhida.
Dessa forma, foram obtidos dados muito importantes para uma compreensão da relação entre poder público, organizações religiosas e sociedade civil na condução de questões migratórias na capital; mas, para além disso, as entrevistas são repletas de histórias, como narrou José Roberto Mariano, gerente da Casa de Passagem Terra Nova, inaugurada em outubro de 2014 na cidade de São Paulo e que acolhe refugiados, solicitantes de refúgio e vítimas de tráfico de pessoas:
"Você sabe que sempre tem muitas histórias, né? Sempre tem muitas histórias, mas eu acho que as mais emocionantes são quando, realmente, quando as mães conseguem reunir os filhos. Como no caso de uma engenheira que teve que sair muito rapidamente do país por questões políticas, conflitos políticos, teve que largar o marido e os filhos. Quando ela descobriu... quando tinham colocado ela no avião e ela veio para o Brasil, ela só foi saber que estava no Brasil quando chegou aqui. Engenheira, e ainda o passaporte que deram a ela veio com a data de nascimento errada. Ela queria resolver aquilo, ao mesmo tempo não podia ser através do consulado. A gente teve que fazer todo um... e aí, claro que nessas situações, a gente sempre, além do apoio emocional, do apoio psicológico, tudo, o acolhimento humanitário, a gente também tem que se servir dos recursos que a rede oferece."[1]

Esse projeto também foi responsável pelo registro da história do Arsenal da Esperança, instituição tão importante para o Museu da Imigração, com a qual dividimos o edifício – e todo o complexo – da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. O entrevistado foi Gianfranco Mellino, que faz parte do Serviço Missionário Jovem (SERMIG) e desenvolve o projeto da casa, que desde 1996 acolhe diariamente 1.200 homens em situação de rua, sejam brasileiros ou estrangeiros. Dentre muitos detalhes sobre o funcionamento da instituição, Mellino contou:
"Há uns dois anos passou uma pessoa, eu lembro, era uma pessoa que já vinha de outra casa de acolhida que foi transferida para cá, um senhor idoso, tinha 72 anos. Ele falava que não tinha ninguém, é como sempre falo, às vezes aqui na casa temos pessoas que falam (...) “ah, tenho ninguém! Não tenho mais ninguém, ninguém”, depois se descobre, aos poucos, que se tem pai, filho, espírito santo, como eu sempre falava. Esse senhor, ele tinha já uma certa idade, 72 anos, ele falava “não tenho ninguém”, só que no tempo que ficou aqui, ele soltou alguma coisa, soltava de vez em quando: “ah, eu sou aqui de Santo André”, ou São Bernardo, Santo André, acho que era. “Ah, mas tenho ninguém”, “ah, mas tenho um primo! ”. E nós: “como se chama? ”,“ah, não sei, não lembro”. Depois soltou o nome do primo. O serviço social falou: “espera aí, vamos atrás desse primo”, “onde mora o primo? ”, “ah, não sei”, “ah, mora em Santo André”. Então, o serviço foi atrás, tentou a telefônica, procurou o nome do primo, tinham quatro ou cinco nomes, tentou ligar, começou a ligar: “Não é, não conheço”, o quarto, a quarta pessoa “é meu primo! ” e eles “como é seu primo? ” e o senhor: “sim, é meu primo”. Aliás, tinha a mãe, que não quer morrer sem ver o filho. A mãe? Tinha 96 anos, a mãe. Eu assisti ao encontro, porque tinha filhos, esse senhor tinha duas filhas, tinha a Janete. Eu assisti ao encontro da filha com este senhor aqui embaixo, embaixo da estátua, ali embaixo. A filha falou depois que até uma certa idade ele sempre saía, mas sempre voltava, agora teve um problema de saúde, um pouco de Alzheimer e então fugiu, fugiu e não voltou mais, não sabia como voltar. Mas a mãe, 96 anos, estava desesperada para encontrar esse filho. Aí eu assisti a esse encontro de filha com o pai. De vez em quando essa filha liga ainda para saber aqui, não sei, estranho, mas sempre tem alguém que mantém esse vínculo conosco, né, para dizer, olha, é uma casa que foi muito importante..."[2]
Outros projetos, já trabalhados nos textos anteriores desta série, também compuseram parte da curadoria de nossas exposições temporárias. A metodologia da entrevista também foi utilizada em dois casos particulares, ainda que sem o rigor necessário para a elaboração de um projeto específico de História Oral: foram as pesquisas em torno de duas exposições participativas, "Migrações à Mesa" e "Da cabeça aos Pés", que contaram com objetos e histórias familiares. Nesses casos, foram realizadas entrevistas de forma bastante informal com as famílias participantes, com o objetivo de recolher material de pesquisa, compreender a trajetória da família e sua relação com os objetos emprestados ao Museu. Assim, essas entrevistas integram nosso arquivo institucional, como parte do dossiê dessas exposições, disponível para pesquisadores e interessados, mas não estão incluídas na coleção de História Oral, por não terem sido realizadas de acordo com a metodologia dessa disciplina.
Assim, de certa forma, voltamos ao início de nossa série e ao nosso primeiro texto, em que discutimos o que é História Oral e sua definição como um processo específico de trabalho, que possui seus próprios aportes teóricos e metodológicos. Esse discernimento conceitual sobre o tema é de extrema importância para sua valorização e utilização na construção do conhecimento histórico. Dessa forma, a História Oral transforma-se, no espaço do Museu, em uma ferramenta imprescindível na construção de narrativas e compreensão do tempo presente.
E agora, você continua achando que museu só é lugar de coisas velhas?
Referências bibliográficas
[1] José Roberto Mariano (Casa de Passagem Terra Nova). Entrevista de História Oral, 2017. Acervo Museu da Imigração.
[2] Gianfranco Mellino (Arsenal da Esperança). Entrevista de História Oral, 2017. Acervo Museu da Imigração.