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Entre estantes: Catálogo do 50º aniversário da Casa Allemã
Este catálogo da Casa Allemã é um dos livros presentes da seção de Obras Raras do acervo bibliográfico do Museu da Imigração. Ele foi uma das fontes de consulta que utilizamos ao desenvolver a curadoria e a expografia da exposição temporária “Da cabeça aos pés”.

A Casa Allemã foi uma loja de departamentos que funcionou em São Paulo – e depois em outras localidades – do final do século XIX até meados do século XX. Lançado em ocasião da comemoração do cinquentenário do estabelecimento, o catálogo apresenta a história da loja, suas filiais, inúmeras fotografias e ilustrações dos espaços e seus produtos, bem como o oferecimento uma série de descontos para seus clientes. Não possuímos informações de como ele chegou até a biblioteca do Museu, mas sua aparência desgastada sugere que já foi bastante folheado ao longo do tempo.
Apesar da grande influência francesa vivenciada pelo comércio paulistano no final do século XIX, a Casa Allemã foi a principal casa comercial de sua época, tendo como fundador Daniel Heydenreich, e outros imigrantes alemães – um dos grupos fortemente presente nas diversas áreas do comércio paulistano de então – como proprietários, sócios e funcionários. Os produtos apresentados na loja eram também, em grande parte, de origem alemã. Assim como os padrões estéticos, técnicas e modismos, os materiais mais cobiçados também vinham de fora. Assim, a loja se alinhava com as tendências cosmopolitas que marcaram o centro de São Paulo no período, se afirmando como modelo das grandes lojas de departamento que se se encontravam espalhadas pela Europa e Estados Unidos. Testemunhavam a circulação de bens de consumo, sua inserção na vida urbana e a ascensão econômica da cidade que, em 1910, passa pela primeira vez à frente do Rio de Janeiro. (1)
Não é de se estranhar que o material de divulgação – como este catálogo ricamente ilustrado – acompanhasse a voga cosmopolita, assim como o próprio espaço das lojas e suas vitrines. São inúmeras as expressões em língua estrangeira: Manteaux de seda e de lã; Vestidos para Soirée; Peignoir, além das fotos representando o modelo típico de um Grand Magasin.


Vendendo, a princípio, peças de tecido e vestuário feminino, a loja passou, com o tempo, a incorporar também itens do universo masculino e infantil, como podemos perceber pelos anúncios deste catálogo. Pequenas notas são dirigidas também a seus clientes, como agradecimento ao sucesso desses cinquenta anos:
“Às senhoras, devemo-lhes, em grande parte, a prosperidade em que hoje nos encontramos. Dotadas de requintado gosto e com uma intuição perfeita do que constitue realmente a beleza em suas múltiplas formas, ellas souberam compreender o esforço que empregamos em fornecer-lhes artigos finos impecavelmente bem confeccionados e vieram por isso ao nosso encontro, tornando-se como clientes assíduas, preciosos factores do progresso da Casa Allemã”. E também:
“A nossa casa deve também aos distinctos cavalheiros o muito do que ella vale hoje como estabelecimento de artigos finos, confeccionados com a preocupação de aliar o útil ao belo. Comprehenderam esse nosso escopo e, inteligentes, com aquella finura de bom gosto de caracteriza a aristocracia da elegância, constituíram-se elementos decisivos do progresso de nossa casa, dando-lhe preferencia em suas compras”.
A frequente separação entre o universo feminino e masculino ainda hoje tem seu lugar no mundo da moda. No início do século XX, era ainda mais marcante a divisão de papéis sociais, associando os homens ao útil e ao intelecto, enquanto a perfeição, delicadeza e intuição eram legadas às mulheres.
A mulher leitora era então vista como uma mulher consumidora em potencial; além de estimular a compra, esses catálogos difundiam um estilo de vida ligado à crescente urbanização e a busca por um repertório europeu do luxo e bem-estar, associado ao progresso e à modernidade. Sendo anterior à própria consolidação de uma estrutura produtiva, o modo de vida burguês desempenhava um importante papel disciplinador que acompanhava as mudanças nas formas de trabalho e a formação de uma nova configuração social. (2)
Conhecidas como principal clientela do mercado da moda, não podemos deixar de lado, no entanto, outros papéis desempenhados pelas mulheres nos circuitos da indústria e comércio, principalmente a partir do século XIX, após a Revolução Industrial. Neste mesmo período – aquele abarcado pelo nosso catálogo do cinquentenário da Casa Alemã – a perspectiva da vida das mulheres sofreu inúmeras alterações, com mudanças estruturais como por exemplo a inserção no mercado de trabalho assalariado, abrindo a possibilidade de rompimento dos laços de dependência econômica e simbólica em relação aos homens. Sabemos, no entanto, que o processo ali iniciado não terminou e há ainda um longo caminho que se descortina à nossa frente; nas palavras da historiadora Michelle Perrot “o trabalho das mulheres é tanto o lugar de uma sobre-exploração como o de uma emancipação” (p.10). O universo das grandes lojas de departamento reflete essa ambiguidade: o mundo do luxo, do status social e das aparências convive com o âmbito da subsistência e da prática de um ofício também pelas mulheres. (3)

Ao lado dos croquis de moda representando corpos femininos em uma exibição quase coreográfica e dos artigos de luxo dirigidos às mulheres, algumas das fotografias presentes no catálogo apresentam uma série de trabalhadoras nas dependências da loja realizando tarefas que eram tradicionalmente associadas ao ambiente doméstico feminino mas que passam a conquistar também o mercado, tais como bordado, corte e costura.
Em pleno mês de março (mês que abriga o Dia Internacional da Mulher) de 2018, nos parece que essas questões estão mais próximas de nós do que poderia supor uma rápida olhadela pelo catálogo de uma extinta loja de departamentos da primeira metade do século XX paulistano. Mais uma vez, no entanto, a história ilustra, transcende o tempo e ensina – para aqueles querem enxergar e, ao enxergar, rever.
(1) BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição. Comércio e cosmopolitismo em São Paulo – 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.
(2) CARVALHO, Vânia Carneiro. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008
(3) PERROT, Michelle; DUBY, George. História das mulheres – o século XIX. Porto: Edições Afrontamento, 1991.