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Hospedaria em Quarentena: Imigrantes “mortos-vivos”
No artigo anterior da série “Hospedaria em Quarentena”, discorremos sobre alguns dos aspectos gerais da gripe espanhola em São Paulo e o papel exercido pela Hospedaria de Imigrantes do Brás durante a epidemia (se você ainda não leu, sugerimos que comece a leitura pelo artigo anterior a partir deste link).
Em 1918, uma parcela significativa da população que habitava a cidade de São Paulo era formada por imigrantes. Eram operários, comerciantes, grandes e pequenos empresários, gente pobre e gente rica. Criaram clubes, associações, hospitais, jornais, entre outros. Os imigrantes ajudavam a construir e a transformar a capital paulista, que se desenvolvia em uma velocidade extraordinária.
Naturalmente, os imigrantes e instituições ligadas a eles foram personagens presentes, por vezes protagonistas, da crise de 1918, ocasionada pela epidemia de gripe espanhola na cidade. Nesse breve texto compartilhamos algumas histórias relacionadas a eles, retiradas da obra A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918: Epidemia e Sociedade, de Cláudio Bertolli Filho.
Havia um grande medo da população em se internar nos hospitais durante a epidemia, fruto de diversos boatos que corriam pela cidade. Mas, evidentemente, não havia muita alternativa para quem era atingido pela doença com mais intensidade.
Esse foi o caso de um português, de nome desconhecido, que vivia na casa do, também português, José Carlos de Carvalho. Os doze moradores da habitação foram atacados pela influenza, porém o imigrante anônimo era o mais adoentado. Depois de uma série de obstáculos para conseguir vaga em alguma enfermaria, o homem gripado foi internado justamente no hospital instalado na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Como a demanda por vagas era enorme e muita gente aparentava estados mais graves da doença, o português recebeu alta dois depois da sua internação, ainda que apresentasse sintomas. Nenhum dos seus colegas foi avisado para buscá-lo e, sem dinheiro, precisou ir andando até o centro da cidade. Enfraquecido pela espanhola, não aguentou o esforço da caminhada, ficou pela rua e, infelizmente, faleceu algumas horas depois.[1]
É possível que, antes de ser recebido na Hospedaria, o português houvesse procurado o Hospital São Joaquim, mantido pela Sociedade de Beneficência Portuguesa, na rua Brigadeiro Tobias. Hospitais de sociedades de apoio aos imigrantes eram privados e comuns na capital paulista, como o Umberto I, na Bela Vista (que, vinculado à colônia italiana, se recusou a receber os suspeitos da gripe em seu edifício, atendendo esses pacientes em um posto de socorro improvisado em uma escola na Rua Piratininga, no bairro do Brás); o Hospital Alemão, no Paraíso; o Hospital Santa Catarina, na Avenida Paulista, criado por uma congregação de freiras de origem alemã, e o Hospital Samaritano, ligado à comunidade protestante, com muitas enfermeiras descendentes de norte-americanos. Todas essas instituições atuaram de maneira significativa durante a epidemia e, certamente, foram procuradas, com maior frequência, pelas respectivas comunidades de imigrantes na cidade a que se vinculavam.
Entretanto, pelo menos duas situações inusitadas que não ocorreram nesses locais merecem ser citadas. Uma delas teve como cenário o hospital improvisado no Colégio Diocesano, na época localizado Avenida Tiradentes, no bairro da Luz, onde João Antonio Jorge, um sírio, conhecido no Bom Retiro como João Turco, que morava nos fundos de um prédio na Rua Barra do Tibagi, número 70 foi internado após contrair a gripe espanhola. Alegando não suportar as refeições servidas ali, fugiu e voltou para casa. Contudo, seu estado de saúde piorou e, no dia 9 de novembro, precisou retornar ao hospital. No mesmo dia foi dado como morto e levado ao necrotério. Algumas horas depois, pouco antes de ser transportado ao cemitério, ele acordou, pediu água e escapou de ser enterrado vivo[2]. Era inaugurada a boataria dos “mortos-vivos” em São Paulo.
Outra história, que se tornou ainda mais famosa que a de João Turco, ocorreu no final do mês de novembro e teve como protagonista o italiano Eugenio Bezzana e chegou a ser capa de jornal. Eugenio era pedreiro e, na época da gripe espanhola, trabalhava em uma obra na Avenida Brigadeiro Luís Antonio. Recém viúvo em razão da doença, Eugenio teria se entregado ao consumo exagerado de álcool. No dia 23 de novembro, voltando do trabalho, o italiano resolveu parar num boteco, na Rua Augusta (um outro jornalista cita a Rua Major Diogo), e depois de beber algumas doses de cachaça, tomou novamente o caminho de casa, embora já não estivesse sóbrio. Próximo à praça da República teve um ataque epiléptico e permaneceu desfalecido na rua até passar um carro funerário. O motorista, achando se tratar de mais um cadáver, resolveu transportar Eugenio até o Cemitério do Araçá. Como chovia torrencialmente na cidade, os coveiros interromperam os trabalhos durante o início da madrugada. Cerca de 4 horas da manhã, Bezzana acordou, obviamente estranhou onde estava e resolveu fugir dali. Chegou em casa quase 12 horas depois, na Rua Anhaia (Bom Retiro), todo molhado e coberto de lama.[3] Imigrantes “mortos-vivos”, eis o que a epidemia produziu na capital paulista.
Os casos com imigrantes se multiplicaram pela cidade, nem todos tão tragicômicos como os dos “mortos-vivos”. A notícia relacionada à família alemã Schonardt chocou a população. Todos foram acometidos pela influenza, se recuperaram e puderam voltar para o bairro de Indianópolis, onde moravam. Em uma história que envolve um possível transtorno mental, acusação de possessão demoníaca, dentre outros elementos inusitados, a esposa e um dos filhos de Ernst Schonardt o sufocaram enquanto dormia, depois decapitaram o cadáver.
Por outro lado, é importante citar a mobilização de pessoas e instituições para os cuidados com o próximo. O Posto de Socorro Sírio foi um dos que se organizou para distribuir mantimentos aos pobres e doentes e Adama Jafet, proprietária de diversas indústrias na cidade, publicou nos jornais um anúncio para que os interessados se dirigissem à mansão dos Jafet, no bairro do Ipiranga, onde seriam distribuídos alguns vales para trocas de alimentos.[4]
O Palestra Itália “além de ceder suas instalações para o estabelecimento de um hospital provisório, custeou os trabalhos de dois médicos, doou mais de 500 mil réis aos órgãos de auxílio e também criou grupos de socorros voluntários (...)”.[5] A Cristaleria Italia, e muitas outras instituições, criaram postos de socorro e farmácias para seus funcionários, o jornal da colônia italiana, Fanfulla, se juntou à uma campanha para arrecadação de fundos em prol da população carente[6].
Como observamos, a gripe espanhola transformou São Paulo, deixou marcas e memórias para a cidade. Eis o poder de uma epidemia dessa magnitude.
Referências bibliográficas
[1] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 279.
[2] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 283.
[3] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 285, 286, 287.
[4] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 240.
[5] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 181.
[6] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 179.
Foto da chamada: Sala de curativos na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Acervo Museu da Imigração/APESP