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Peça a Peça: Entre as teclas de outros tempos

Estamos, atualmente, bastante familiarizados com a escrita por meio das teclas. Passamos grande parte de nosso dia a dia em frente a telas de computadores ou digitando em tablets e smartphones. A escrita é mediada por uma máquina, que interpreta nossos sinais, transferindo-os para a tela. Não refletimos muito sobre o que acontece entre os gestos de nossos dedos e a palavra que surge diante de nossos olhos; assim, a escrita em si torna-se um ato quase automático.
Apresentamos, nesta edição do “Peça a Peça”, quatro itens de nosso acervo museológicos que nos ajudam a entender um pouco melhor essa história e como chegamos até aqui. São máquinas de escrever, de diferentes períodos e procedências. A representatividade dessa tipologia em nosso acervo pode evidenciar a importância desses objetos de registro na experiência migrante. Algumas – em geral as maiores, de escritórios – pertenceram à Hospedaria de Imigrantes do Brás, e foram responsáveis por desempenhar, portanto, tarefas mais burocráticas. Já as que separamos para esta pesquisa fazem parte do grupo doações por imigrantes e descentes; são todas de pequeno porte ou portáteis, fáceis de transportar (um fator importante quanto pensamos nos deslocamentos humanos) e seus usos podem ter tido as finalidades mais diversas, desde utilitários até exercícios de subjetividade.
As máquinas de escrever foram consideradas revolucionárias no momento em que foram criadas, ainda no final do século XIX; sua popularização foi rápida nas décadas seguintes, bem como as expansões dos modelos e tamanhos, se tornando um objeto indispensável no mundo dos negócios, mas presente também na casa de muitos dos amantes da escrita e alterando as mais diferentes formas da comunicação. A própria profissão de datilógrafo foi uma das que mais contribuiu para a inserção da mulher no mercado de trabalho, em meados do século XX. A conformação de um teclado organizado tal qual conhecemos hoje, os gestos a ele associados, os sons característicos... são muitas as heranças das máquinas de escrever! Algumas distinções, no entanto, nos saltam aos olhos: não era possível, por exemplo, apagar, copiar e colar com a facilidade de hoje ao usar os softwares de texto nos computadores; são questões aparentemente pequenas, mas que mudam significativamente a relação que estabelecemos com aquilo que escrevemos.
A primeira destas máquinas aqui apresentadas é do modelo Diana, fabricado na Alemanha pela Royal Typewriter Company durante a década de 1950. Foi doada por Lydia Dniprovey, da comunidade ucraniana, juntamente com outros itens. Segundo o processo de doação, esta máquina pertenceu ao Pe. José Skulski da Paróquia da Imaculada Conceição de Vila Bela, a qual a comunidade ucraniana católica era bastante ligada.

A segunda, por sua vez, é uma Adler, marca também de origem alemã, modelo Junior - E. Doada por Tamara Kalinin, pertenceu a Maria Zotz, juntamente com uma máquina de costura e outros itens. Seu manual de instruções também se encontra em nosso acervo bem como uma entrevista de História Oral concedida ao Museu pela própria Maria Zotz, onde ela conta sua história e sua trajetória da antiga Iugoslávia para o Brasil, após ter sido prisioneira em um campo de concentração na Áustria durante a Segunda Guerra Mundial.

Já a terceira, embora bastante curiosa do ponto de vista material – é a mais antiga delas, datada de 1926 – não possui muitas informações em nossos registros; apenas que pertenceu ao Sr. João Lenate Filho, pai do doador. A Remington Hand, empresa estadunidense responsável pela sua fabricação, foi também pioneira no lançamento do primeiro computador comercial do mundo, o Univac. As marcas do tempo são aqui mais evidentes, embora todas as máquinas apresentadas possuam um bom estado de conservação. Esta veio também com dois cartuchos de fita.

Por fim, um caso curioso: uma máquina que não foi possível abrir, pois, em algum momento, a chave de sua embalagem se perdeu. Sabemos que ela nem sempre esteve trancada pois em nossos registros constam algumas informações sobre seu interior: "A máquina possui letras húngaras no lado das linhas 1, 2 e 4 do lado do teclado". Da marca Erika[1], foi fabricada por Seidel & Naumann, doada por Ildiko Suto, de origem húngara, que era, por sua vez, tradutora. Alguns livros traduzidos por ela e também de sua autoria constam em nossa biblioteca. Ildiko também doou uma frasqueira de viagem e uma fotografia emoldurada, tirada no navio, na viagem para o Brasil. Devido à natureza da profissão de sua doadora, a importância desta peça em sua história e trajetória é evidente. Assim como muitos dos registros feitos por imigrantes por meio de ferramentas como estas, o interior desta peça permanece privado para nós – ao menos por enquanto.

[1] Para saciar um pouco nossa curiosidade, podemos conferir algumas fotos da máquina Erika em acervos de outros museus: https://collections.museumvictoria.com.au/items/396303
https://americanhistory.si.edu/collections/search/object/nmah_856499