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Afinal, o que é o brasileiro? - O caráter nacional
Afinal, o que é o brasileiro? Se essa pergunta for direcionada a um estrangeiro, que tipo de resposta receberemos? Qual é a imagem que outras nações têm acerca do povo brasileiro?
Se tivéssemos que imaginar essa resposta, provavelmente, recairíamos na figura do brasileiro extrovertido e amante do samba e do futebol. Esse é um dos estereótipos mais enraizados sobre o Brasil.
Mas nós, como brasileiros, certamente conhecemos outros cidadãos do nosso país que não se encaixam nesse modelo. O mesmo vale para as características comuns que atribuímos aos povos de outras origens. Os estereótipos, portanto, caminham lado a lado com a definição de identidades nacionais.
Para compreender melhor o tema, precisamos discorrer um pouco sobre a ideia de caráter nacional. Nesse sentido, a obra de Dante Moreira Leite é uma referência basilar para uma discussão sob a perspectiva brasileira. "O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia"[1], publicado em 1969, é o desenvolvimento e amadurecimento das concepções do autor sobre essa questão, já que a sua tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, defendida em 1954, versava sobre o mesmo assunto.
O livro disserta sobre as raízes conceituais do caráter nacional, trata dos papeis do nacionalismo, racismo, etnocentrismo e autoritarismo, fala da sistematização do conceito desde os teóricos do século XIX e aponta críticas da antropologia, sociologia, genética e, ainda, a contribuição da psicanálise. Depois, busca, nas interpretações e visões de poetas, escritores e literatos brasileiros, aspectos voltados à definição de um caráter nacional. Em sua obra, aparecem autores como Pero Vaz de Caminha, Gregório de Matos, Silvio Romero, Afonso Celso, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
Em linhas gerais, o caráter nacional é uma tentativa de definir características homogêneas para o povo de uma determinada nação. Como exemplo, podemos citar a análise realizada por Dante Moreira Leite quando apresenta as ideias de Silvio Romero. Segundo ele, Romero rompe com a corrente otimista do nativismo e nacionalismo que, até então, permeava a literatura brasileira. A natureza do país não era um privilégio, mas causadora de males e o povo era inferior aos das nações industrializadas europeias. No final do capítulo, Leite condensa as imagens do brasileiro apontadas por Romero. Psicologicamente, o brasileiro seria apático, sem iniciativa, desanimado, imitador do estrangeiro (na vida intelectual), abatido (também sob o ponto de vista intelectual), com tendências para a irritabilidade, o nervosismo e o hepatismo, possuidor de talentos precoces, mas de rápida extenuação, com facilidade de aprender, desequilibrado, mais apto para queixar-se que para inventar, mais contemplativo do que pensador, mais lirista e mais amigo de sonhos e palavras retumbantes do que de ideias científicas e demonstradas. Já as qualidades da vida intelectual brasileiras seriam: sem filosofia, sem ciência, sem poesia impessoal, palavreada da carolice, mística ridícula do bactério enfermo e fanático, devaneios fúteis da impiedade impertinente e fútil e lirismo subjetivista, mórbido, inconsciente, vaporoso e nulo[2].
Em seguida, para continuarmos nos exemplos dos estereótipos, Leite comenta sobre a obra de Afonso Celso, "Por que me ufano do meu país", publicada em 1900. Celso discorre razoavelmente sobre as raças formadoras do país e a constituição do mestiço. Além disso, caracteriza os "nobres predicados do caráter nacional":
"Quanto ao tipo físico, o brasileiro não é um degenerado, notando-se muitos brasileiros altos e vigorosos. Quanto ao caráter, diz que "nem os piores dos detratores" podem negar ao brasileiro: 1) "sentimento de independência, levado até a indisciplina", 2) hospitalidade, pois no interior é comum que as pessoas abonadas tenham quarto de hóspedes, e que estes se demorem meses e até anos, 3) afeição à ordem, à paz, ao melhoramento, 4) paciência e resignação, 5) doçura, longanimidade, desinteresse, 6) escrúpulo para cumprir com obrigações contraídas, 7) caridade, 8) acessibilidade que degenera, às vezes em imitação ao estrangeiro, 9) tolerância, ausência de preconceitos de raça, religião, cor, posição, 10) honradez no desempenho de funções públicas ou particulares".[3]
Esses são dois casos na obra de Dante Moreira Leite que demonstram a construção de diversos estereótipos acerca do brasileiro. Não cabe aqui nos aprofundarmos no desenvolvimento dessas teses, mas é importante salientar como isso parece, ao menos em debates contemporâneos e mesmo na nossa percepção de identidades, como algo ultrapassado. Quais foram os processos de análise e observação desses autores para chegarem nessa conclusão? Quais as razões pelas quais eles e os outros personagens apresentados no livro possuem visões diferentes sobre o caráter do brasileiro? Euclides da Cunha, por exemplo, adota, como imagem central para a formação da nação ou constituição da raça brasileira, a figura do sertanejo. Estabelece, inclusive, um papel preponderante nas relações entre meio geográfico e raça.
Essas breves considerações indicam algumas possibilidades de pesquisa e reflexões sobre o desenvolvimento de identidades nacionais ao longo da história do Brasil. Reduzir um povo a definições generalizantes de características físicas, sociais e psicológicas resulta em contradições, visões estereotipadas e incitam preconceitos. Se inserem nesses debates as próprias políticas migratórias exercidas no Brasil Império e na República. O embranquecimento do Brasil seria uma forma de civilizar a nação, daí a necessidade de introduzir uma mão de obra especificamente europeia.
Será que é possível definir quem é o brasileiro ou a brasileira? Podemos imaginar que o que nos une é o idioma, um brasileiro compreende outro brasileiro. Mas, ainda assim, como nos diferir de outras nações cujo principal idioma é o português? Além disso, não incluímos nessa abordagem os falantes de línguas indígenas no Brasil ou mesmo as comunidades de descendentes de migrantes estrangeiros que conservam outros idiomas.
Existe um caráter nacional?
Referências
[1] LEITE, M. Dante. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2002.
[2] Ibid. 250.
[3] Ibid. 263.