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Mobilidade Humana e Coronavírus: "Eu sempre me sinto acampando aqui"
Ao marcar a entrevista com a Janice Satico, de 52 anos, foi necessário considerar a grande diferença de horário que nos separava. O relógio japonês está doze horas avançado comparado ao do Brasil. Por sorte, ela já domina esses cálculos e nos propõe falar no período da manhã no Brasil e de noite no Japão, quando já se encontraria em casa depois da jornada de trabalho.
Janice conversa conosco de uma cidade do interior do Japão, chamada Hamamatsu, lugar onde mora desde que decidiu migrar. Conta que viajou de São Paulo, sua cidade natal, para o Japão quando tinha 23 anos e era mãe de seu primeiro filho, que não viajou com ela. O motivo do deslocamento, detalha, foi a situação econômica que se apresentava mais vantajosa no Japão. Ela explica que sua intenção inicial era juntar dinheiro e retornar para seguir o negócio da família, todos feirantes.
Na minha época, ao contrário da época dos meus filhos, meus tios falavam assim: "Para que estudar? Não precisa estudar". Porque os meus pais eram feirantes e meus tios, meus cunhados, todo mundo comprava casa, vivia bem de feira. Toda minha família, minha mãe, meus tios, vivia bem da feira, todos eram feirantes de batata, não faltava nada. Na verdade, eu vou contar para você um segredo, eu vim pro Japão só pra juntar dinheiro para comprar uma perua.
Foi através das tias dela, que já haviam migrado para o Japão, que o deslocamento foi possível. A entrevistada explica que a ajuda da família foi fundamental para estabelecer contatos e conhecer detalhes importantes do trajeto. Além disso, ela era jovem e não falava a língua, apesar de ser descendente de japoneses.
Eu não sabia falar nada em japonês. Na verdade, eu sou uma descendente que eu não sabia da cultura. Eu tinha um avô, maravilhoso, que nasceu aqui [no Japão], e eu não tinha a menor noção. Eu era uma descendente, mas só uma descendente, eu não tinha noção de nada. Minhas tias deviam ter 38-40 anos, no caso eu tinha 23... Então, passou uma segurança, né, pela família estar indo.
Trazendo a situação que ela viveu para os dias de hoje, a entrevistada observa que, talvez, a condição em que migrou seria considerada irregular atualmente. Apesar de ter sua descendência japonesa comprovada, não teve acesso à documentação.
Pensando hoje, a gente, na verdade, entrava ilegal aqui, sabe. A nossa descendência era comprovada, só que a gente vinha com visto de turista para se transformar em visto de trabalho depois.
Sua chegada foi acertada com uma empreiteira, que recebeu as mulheres da família no aeroporto, cuidou da documentação, acertou o novo emprego na fábrica que iria receber as trabalhadoras e cuidou da hospedagem. Refletindo desde os dias atuais, Janice avalia o risco que corriam por estar indo para um lugar totalmente novo, em mãos de pessoas desconhecidas.
Eles começavam a providenciar os documentos, a fábrica, no caso, [providenciava] o trabalho. Eu acho que a parte de embarque, foi toda assim... Foi tudo bem feito. Porque, assim, é difícil para quem nunca viajou, naquela época. Eu acho que eu tive bastante assistência até... E as empreiteiras ganhavam muito dinheiro, mas era muito dinheiro.
Eu lembro que cheguei em Tókyo e, quando desci com minha tia, eu olhei e vi um monte de gente com cartazes, assim, com nome da empresa e o nome da pessoa. Imagina, uma pessoa que nunca saiu nem da cidade de São Paulo, você ir para um outro mundo. Eu acho que pela idade, a gente é corajosa, sei lá... Quando a moça pegou a gente já entrou no carro com ela, poderia na verdade ser tudo mentira e ter levado para outros lugares, né....
Por sorte, deu tudo certo. No caminho a Hamamatsu, Janice começou a se deparar com o país novo e foi se surpreendendo com elementos que nunca tinha visto. Ficou impressionada com o trem bala, chamado Shinkansen, onde ela e as tias embarcaram em Tókyo. Ao chegar no destino final, ficou encantada com a casa, que já veio toda equipada.
A gente pegou o Shinkansen, que é o trem-bala, e meu impacto de ver as pessoas comendo dentro do trem-bala foi muito grande. Eu levei um susto porque eu nunca vi isso no Brasil, comendo comida dentro de um trem bala, em um lugar tão sofisticado. Isso aí foi uma coisa que me marcou muito.
Quando a gente chegou no apartamento, eu fiquei encantada. Tudo muito lindo... Sabe, o Brasil é concreto, tudo grande, e aqui na primeira vez que eu cheguei era tudo bonitinho, parecia casa de boneca. Eu fiquei encantada! E, aí, cuidaram bem da gente, já veio tudo equipado, com panela de arroz... A própria primeira compra a empreiteira fez pra gente.
Um dos aspectos mais diferentes e desafiadores encontrado por Janice, segundo ela, foi a língua. Com a convivência na fábrica onde começou a trabalhar, junto com o apoio de algumas pessoas, conseguiu se comunicar aos poucos. Apesar disso, comenta também que a maior e mais importante ajuda veio de seu filho, que com três anos deixou o Brasil para encontrar a mãe no Japão, e aprendeu – desde cedo e sem dificuldade – a língua japonesa.
Olha, meu filho me ensinou muito... Porque eu fui obrigada a aprender. Ele veio pra cá quando tinha três anos e, para eu poder trabalhar, entrou na creche japonesa. Na época que a gente chegou não tinha tradutora, não tinha nada. Eu tinha que me virar e aprender... Então, foi devagar mesmo. Às vezes, a moça da empreiteira ajudava, alguma japonesa ajudava, sempre tem alguém que quer te ajudar. Quando você tem esse contato direto com o japonês, você é obrigado a aprender, não tem como.
Eu li uma matéria que aqui em Hamamatsu tem muita gente [brasileiros] que ainda não sabe o japonês e realmente... A gente vem tão assim, para vir trabalhar e ganhar dinheiro, que essa parte de conhecimento... “Pra que que eu vou estudar japonês? Eu não vou usar”: essa era a mentalidade. E, aí, você vem com filhos e, na verdade, é uma ilusão, você acaba ficando a vida inteira.

Nossa entrevistada não achava que fosse ficar tanto tempo no Japão. No entanto, a decisão de permanecer não foi simplesmente tomada um dia; diversos elementos do seu contexto fizeram – e ainda fazem – com que valha mais a pena viver no Japão. Ao que parece, apesar das vantagens que o Japão oferece em termos de estabilidade financeira, estar longe do Brasil é difícil.
Minha intenção sempre foi voltar para o Brasil. Desde que eu cheguei aqui tenho sempre uma frase para os meus filhos... Eu tô já há trinta anos, mas eu sempre me sinto acampando aqui, sabe, eu tô sempre acampando. Eu não consigo montar minha casa, comprar coisas novas porque eu não tenho a vontade de ficar aqui. Mas é, devido várias coisas, o financeiro no caso, a estabilidade, o encaminhamento dos filhos... E aqui não é um país ruim, é um país bom, mas eu não sei... Apesar do meu país ser tão difícil, eu tenho umas lembranças tão boas que eu prefiro estar no Brasil.
Janice explica que ela tentou se fixar novamente no Brasil em duas ocasiões, em 1995 e 2015. Depois de passar cerca de dois anos na sua terra natal, não conseguiu ficar e voltou para o Japão. Sobre isso, reflete acerca do quanto a migração demanda apoios institucionais, sem os quais enfrentam-se dificuldades, situação que é realidade para muitos migrantes atualmente.
[Ainda] com informações, não é fácil, o Brasil não é fácil... Então, imagina as pessoas que não têm tanta informação, não tem uma assistência... Então, fica difícil. Eu vejo muito aí no Brasil, né, que é a ajuda para os imigrantes que chegam aí. Que tem alguém se movendo por eles, [assim como] teve alguém se movendo pela gente aqui. Porque no começo tudo era difícil, não tinha nenhuma informação, nada... Então, eu falo que é muito importante, graças a Deus, tem alguém se preocupando para melhorar.
Nossa entrevistada aponta que essa ajuda ao migrar também foi importante no caso dos seus filhos, que viveram com ela no Japão, e mais tarde se deslocaram para o Brasil. A universidade pública se tornou uma oportunidade para estudar. Assim, o filho mais velho, seguido mais tarde pelos outros dois, fizeram o caminho contrário à mãe, situação que se mantém até hoje.
É nesse contexto, com Janice morando no Japão e os filhos em São Paulo, que o novo Coronavírus começou a se espalhar da China para o mundo. No final de janeiro de 2020, ela teve a primeira notícia sobre o vírus enquanto assistia o jornal no refeitório do trabalho. Foi noticiado que turistas vindos da China e da Coreia do Sul teriam sido veículos para a doença no Japão. Aquilo não se apresentava ainda como uma ameaça, parecia estar muito longe da sua realidade. Porém, um tempo após a chegada do vírus, Janice e suas amigas começaram a questionar o silêncio do Japão sobre o assunto.
A gente começava a ver notícias da Itália, que já tinha não sei quantos mil mortos, e, aí, não sei se os Estados Unidos, mas a gente começou a ficar muito assustada porque no Japão parecia que nada estava acontecendo.
Até que, aos poucos, o vírus estava ficando mais perto. Janice sentiu os sinais das consequências da pandemia na sua realidade cotidiana quando o papel higiênico começou a sumir das prateleiras dos mercados. Outro ponto foi quando, na fábrica, pediram para economizar álcool gel. Até que o país aplicou medidas mais drásticas.
E, aí, foi anunciado que as Olimpíadas iam ser canceladas e eu falei “nossa, é grave”. E, aí, começou todos os dias dando no noticiário, que “tá aumentando, que tá aumentando” e começou a dar um pânico. E, aí, começou as notícias que aqui perto teve um caso, já muito próximo, e eu comecei a ficar com bastante medo, procurar notícia no YouTube todos os dias, no jornal todos os dias, meio que virando uma coisa ruim. Eu me desliguei de tudo, só queria notícia disso para ver se eu tava muito, ali, dentro do perigo.
Quando senti que ficou feio mesmo, foi quando minha fábrica colocou caixas de papelão no refeitório, sabe assim, feito cabine, igual quando a gente vota, sabe? Tudo assim nas mesas, pra gente não ter contato com o outro, e começou a colocar também numeração para você procurar sentar sempre no mesmo lugar para eles poderem marcar. Então, deve ser tipo um rastreamento do contato. É bem controlado.
Apesar das medidas de controle e monitoramento, na cidade de Hamamatsu, não foi estabelecido lockdown, nem outras restrições proibitivas. A entrevistada atribui este fato a elementos da história do Japão, ao controle eficaz que o país fez da doença e à quarentena bem-sucedida dos cidadãos e cidadãs ao evitarem sair de suas casas.
Como não foi aumentando, na verdade foi diminuindo, as coisas começaram a baixar um pouco. Porque conforme vai aumentando, aumentando, seu desespero vai aumentando também. E, aí, foi abaixando, abaixando, abaixando, então, praticamente aqui em Hamamatsu, a gente já tá bem mais tranquilo. Lógico, só sai de máscara, é obrigatório trabalhar de máscara, álcool em gel, todos os mercados têm álcool na porta. Tudo funcionando, só que todo mundo tomando cuidado. E, pelo que me consta, não tem mais nenhum caso. Parece que em Tókyo teve 16 casos. Nesse ponto, então, eu acho que é bem controlado. Graças a Deus.
Ao falar da atitude dos japoneses na pandemia, de obediência às instruções dadas, Janice destaca diferenças importantes entre o país e o Brasil. Ela descreve onde está como um lugar muito seguro e fala sobre o cuidado que a sociedade tem com a saúde.
Olha, o Japão ele é maravilhoso porque é um país muito seguro, em questão de segurança, de ir de voltar. A gente nem pensa nisso na verdade, não existe aqui.
O Japão ele é muito voltado à saúde, então tudo é acessível. As academias têm de tudo, é muitas aulas, é saunas, é ofurô[1], é tudo para você por um preço muito barato, qualquer pessoa pode.
Mas as diferenças não acabam aqui. Janice menciona traços de comportamento e valores da sociedade mais sutis. A importância que as pessoas dão a sua classe social parece ser menor do que aqui no Brasil, coisa que a entrevistada diz admirar.
Diferente do Brasil, [o] que eu admiro muito é que ninguém se importa com status aqui. Você olha e você não sabe se é um grande diretor de algum lugar ou se ele é, simplesmente, um operário. Não tem essa diferença.
A educação no Japão também é prioridade. Ela relata, por exemplo, a experiência da educação dos filhos no país e como o privilégio de ter podido acompanhar esses momentos faz diferença.
Aqui no Japão eles prezam muito pelo acompanhamento dos pais em tudo. As fábricas não podem reclamar de nada. Se for uma reunião para assistir eles [os filhos] na piscina, tá liberado, se for para ver eles comendo, tá liberado. Então, eu acompanhei muito eles.
Essa educação notável, juntamente com a segurança citada acima, resulta em situações e comportamentos que chamam a atenção da entrevistada. Ela exemplifica a questão falando da independência de crianças que, desde muito pequenas, vão para suas escolas sozinhas, situação bem rara no Brasil.
Eu fui trabalhar ontem e voltou as aulas aqui já. [Vi] uma criança de 6 anos, mas ela é muito pequeninha, andando sozinho. Até hoje eu fico admirada. Tamanha independência que, desde pequeno, essas crianças pegam.
Você vê que no Brasil, eu levava meus filhos grandes já até a porta da escola. E ia buscar. E aqui não tem nada disso. A criança tem que botar a mochilona nas costas mesmo e vai e volta caminhando. É incrível, é muito diferente.

Para Janice, essas diferenças são produto da educação e de aprendizados culturais e não vê esses elementos como algo intrínseco ou natural dos japoneses. Acredita que, com acesso à educação e como resultado da pressão social, as pessoas podem aprender novos jeitos de agir e se comportar, como ela mesma também vivenciou ao migrar para o Japão.
Você aprende porque você está aqui, entendeu? Porque você vai se sentir envergonhada de pegar um papel e jogar no chão. Você vai ver o chão tão limpinho, que você mesmo vai se envergonhar. Aqui você não vê ninguém fazendo. Então, você pode chegar aqui e fazer no primeiro ano [de residência no país], no segundo, mas, aí, a sociedade aqui acaba te transformando, você acaba virando uma pessoa igual. Porque se você faz ao contrário, você fica em destaque, entendeu? Todo mundo te olha e é ruim.
Você não pode condenar o Brasil porque coitadas das pessoas, não é o brasileiro que é o culpado. O culpado é quem não dá educação. A educação é lá de baixo. E quem que vai dar isso aí? O governo. Então, o pessoal fala, “ah, o Brasil não tem jeito. O Brasil é tudo mal-educado”. Mas eu fico brava, entendeu? Porque não é assim. A gente primeiro precisa aprender para depois fazer.
A conversa com a Janice nos ajuda a refletir sobre uma migração com diferentes camadas e processos, que perpassam várias gerações. E, também, acerca de porque migramos, ficamos ou voltamos, mostrando que, muitas vezes, não existe um só motivo e que muitos deles escapam ao nosso controle e vontade.
A entrevistada fechou nossa conversa com uma reflexão sobre o seu processo de migração, comparando ele com o dos seus filhos e de outros migrantes hoje em dia.
Eu, quando vim para cá, eu não tinha... Na verdade, são mundos diferentes né... Eu não pensava nada, entendeu? Na minha vida, vai acontecendo para você ir fazendo. Hoje em dia não, hoje em dia dá para você estudar para depois você ir fazendo. Para você ir trilhando os caminhos e você vendo se vai ou não sair um resultado bom ou não.
Referências
[1] Ofurô: banheiras utilizadas tanto privadamente nas residências no Japão, assim como publicamente em espaços compartilhados.