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Mobilidade Humana e Coronavírus: "Unir a mulherada porque só a gente sabe a importância de ter uma rede de apoio no exterior"
O que você sabe da migração brasileira para os Estados Unidos? No começo desse mês, entrevistamos Luciana Kornalewski, que vive há 20 anos por lá. Quando terminamos nossa vídeo-chamada, a ativista e produtora cultural, nascida no Rio de Janeiro, quis agregar à sua rica contribuição uma mensagem bastante direta a nós, que vivemos no Brasil.
Então, eu gostaria muito que as pessoas entendessem essa onda migratória do brasileiro no exterior, que, em sua maioria, não é elite indo curtir a vida, tendo o privilégio de viver no outro país e tá só curtindo. Não é bem isso.
Luciana é uma liderança local e acompanha de perto os desdobramentos da COVID-19 na vida dos migrantes brasileiros na cidade de Nova York. Essa história, porém, começou lá em 2001. Nesse ano, ela – que é neta de família polonesa por uma parte e, de outra, de migrantes pernambucanos – deixou a cidade maravilhosa.
Eu decidi vir para cá em 15 dias. Eu lembro bem. A minha amiga veio para cá em dezembro. Nós éramos melhores amigas. Viajávamos o Brasil também, fazendo mochilão. Aí, imagina a experiência de vida? A gente [pensava que poderia] alugar um apartamentinho [nos Estados Unidos]...
O embarque nesta jornada não contava com garantia. À princípio, tentariam viver com o trabalho que encontrassem e aprender o que pudessem dessa experiência. Os primeiros passos, então, foram dados seguindo as dicas da sua amiga. Foi assim que chegou à cidade de Charlotte, no estado da Carolina do Norte.
Eu tinha vinte e um anos. Vim viver essa experiência com minha melhor amiga naquela época. Fomos, na verdade, pra Carolina do Norte. A gente viveu lá cerca de sete meses, mas a gente não se adaptou. Muito do que nos chocou foi a segregação, né? Porque, obviamente, que no Brasil nós temos o racismo estrutural, mas lá era muito evidente. Eu sou suburbana no Brasil, minha mãe é negra, convivia [com a dinâmica do racismo].
Chegando a Carolina do Norte, eu via que é um estado totalmente segregado. Negros vivem de um lado, geralmente na periferia mesmo, e os brancos ali, predominantemente, na cidade onde a gente morava. E tinham bairros designados "negros" e transporte público ["de negros"]. E, pra me locomover, eu pegava ônibus e só via negros nos ônibus, tinha shopping mall só pra negros. Aquilo me chocou muito.
A curta estada em Charlotte, porém, lhe renderia uma nova amizade com outra brasileira que vivera anos antes em Newark, cidade do estado de Nova Jersey, que conta com a histórica presença de comunidades portuguesas e brasileiras. Encontrar essa comunidade em Newark seria marcante para Luciana forjar sua imagem das brasileiras e brasileiros no exterior, aquela mesma que pediu, no começo deste texto, para levarmos em conta no contexto da pandemia:
A gente tá falando daquela pessoa que veio tentar a vida mesmo. Não fala a língua. Geralmente, em Newark, as pessoas são do interior. Interior de Minas Gerais, Governador Valadares, Ipatinga, Goiás e vem dos interiores. Então, se sentem confortáveis ali porque é mais fácil conseguir emprego. [No início], não tem networking, aí conhece um e conhece outro que te ajuda a navegar ali na sociedade.
São, portanto, essas redes de contato, cuidado mútuo e confiança que fazem a diferença no processo de estabelecimento, segundo a nossa entrevistada.
Muitas pessoas caem em golpe por conta disso. Quando você não conhece ninguém e você não fala a língua, você fica muito vulnerável de ser abusado, ser explorado. Pessoas que tem um trabalho, te oferecem um trabalho, te explorando e pagando super pouco. E você se vê nas mãos daquela pessoa.
Imersa nessa vida em rede, apoiando e se apoiando nos demais, Luciana nos relata que aproveitou seus anos em Newark para prosseguir com o que tinha planejado fazer nos EUA desde o início: "viver uma experiência de vida". Para isso, a proximidade desta cidade com Nova York parecia estratégica.
Eu queria absorver tudo. Eu não queria ficar segregada lá em Newark, sabe? Eu queria aprender inglês e queria praticar inglês. E Nova York é muito libertador porque você se sente muito livre aqui pra você ser quem você, pra você andar da maneira que você quiser andar, ninguém tá nem aí, sabe? Você sempre se encontra aqui. A gente fala: seja pro mal ou seja pro bem, você sempre encontra sua turma aqui.

Pandemia, latinxs, e migrantes brasileirxs
Há quase 15 anos, mudou-se definitivamente para Nova York, onde também fez seus estudos universitários em sociologia. Em todo esse período, nunca perdeu o contato com outras brasileiras e outros brasileiros, vendo de perto o endurecimento das políticas migratórias após o 11 de Setembro de 2001, o boom do turismo de brasileiros no início dos anos 2000, o retorno de muitos brasileiros – neste mesmo período de sustentado crescimento econômico brasileiro até a chegada da crise –, o período mais recente de recessão constante em nosso país e uma nova fuga de novos imigrantes.
É muita gente vindo para tentar a vida. Muitos brasileiros com criança pela fronteira, sendo presa por essa política desumana do Trump. Novos imigrantes para tentar a vida com família. Ou o pai vem primeiro, para conseguir uma casa, conseguir um trabalho e fica mandando dinheiro para ajudar a família.
O sonho dele é trazer a família. Daí, veio a pandemia e essas famílias se viram vulneráveis. Totalmente vulneráveis. É uma imigração nova aqui no país. Não tem network. Tá sem trabalho, e aí? Não tem nem dinheiro, nem para voltar ao Brasil. E muitos tem dívida no Brasil.
Somadas às outras nacionalidades, muitas destas pessoas se encontram em uma situação de irregularidade migratória e, segundo nossa entrevistada, sequer entram nas estatísticas oficiais, sendo atingidas em cheio pelos impactos econômicos gerados na pandemia.
Essas pessoas não são nem número. Eles estimam que sejam 13 milhões. Essas pessoas vivem à margem da sociedade. Então, como agora estão fazendo para viver e para pagar aluguel? Na sua grande maioria são trabalhos no terceiro setor, no subemprego. Perderam seus trabalhos. E como é que estão vivendo?
A maioria trabalha em restaurante porque aqui dá para fazer uma grana legal, você consegue viver dignamente, trabalhando nesse setor. Aqui, você trabalhando como baby-sitter, você consegue ter uma vida digna.
(...)
Uma casa de uma pessoa rica tem a house keeper, que cuida da organização; às vezes tem uma faxineira, que vai uma vez por semana; tem babás diárias, às vezes uma ou duas; tem a pessoa que anda com o teu cachorro; às vezes tem o motorista, e essas pessoas não tão sendo pagas! E é um setor muito grande!
E aí, como é que paga aluguel? Tá virando uma bola de neve. E, em sua maioria, são indocumentados aqui, não podem aplicar para um seguro desemprego e não tem benefício. Como estão vivendo essas pessoas? E muitos estão avisando para gente que estão sendo ameaçados pelos proprietários dos apartamentos.
Então, você vê esses imigrantes aqui numa situação, agora, totalmente vulnerável. Muitos que trabalham também em salão de cabeleireiro estão sem trabalho.

Na situação pandêmica, essas pressões econômicas se somam à questão migratória, impossibilitando o acesso dessas pessoas à saúde.
Porque essa população não tem acesso a saúde. Não tem saúde pública aqui. O latino, primeiro que ele não pode deixar de trabalhar. Enquanto podia trabalhar, ele estava trabalhando. Segundo: se ele está com sintomas, vai continuar trabalhando porque não pode parar de trabalhar. Terceiro: ele sabe que se for para o hospital, ele tem medo de ser deportado. Tem medo dessa questão imigratória e tem medo da conta, que vai chegar para ele.
É algo que a gente tá debatendo aqui. Como é que você controla uma epidemia com toda essa população que não pode se dar ao luxo de ficar em casa? E essa população, que mesmo com sintomas, não pode ficar em casa, que tem medo de ir ao hospital?
Sabe o que falavam muito? Os enfermeiros falando e tal... Muitos. Não só imigrantes, mas população de baixa renda em geral. Os enfermeiros contaram que [a pessoa doente] falava no leito da morte, entubada, "quem vai pagar essa conta? Como é que minha família vai fazer [para pagar essa conta]?". Isso é desumano.
Mesmo em uma situação de "abertura lenta", na qual Nova Yok se encontrava quando fizemos a entrevista[1], as ansiedades pareciam somente se proliferar:
Aí, agora, a gente tá vivendo uma nova fase, outras ansiedades, porque a cidade já está abrindo. (...) Agora é medo de tudo, medo de pegar transporte público e de achar que você vai se contaminar a todo momento.

E, agora, é: a gente tem que se reinventar porque tudo está voltando, entre aspas, ao normal, e muita gente sem trabalho. Quem é artista tá sem trabalho. Estão indo para o subemprego. Sendo Uber, fazendo babysitting e indo para o subemprego. Você que já tinha conseguido, como imigrante, escalar uma posição, tá vendo regredir. Então, agora, são outras ansiedades que a gente tá vivendo. De ter que estar aberto a conseguir um emprego, seja no que for, às vezes ganhando menos.
Dessa forma, as ansiedades perpassam, inclusive, essa nova configuração do trabalho encontrado.
É muita coisa que a gente tem que lidar. Até mesmo as babás. Eu também faço babysitting, part time[2]. Os pais, agora, estão em casa, trabalhando de casa. Então, já é uma situação mais delicada de você trabalhar com os seus patrões em casa. E, também, das crianças estarem com os pais em casa, que a criança muda completamente. E você trabalhar em restaurante também, que agora você pode sentar do lado de fora do restaurante. Você tá fazendo menos dinheiro porque tem menos clientes, menos mesas. Mas é o que você tem. Então, aqui você vê, também, o imigrante trabalhando mais, ganhando menos e dando graças a Deus que tem trabalho.
Segundo nossa entrevistada, uma das fundadoras da rede internacional Rede de Mulheres na Resistência no Exterior[3], que mantêm contato com mulheres migrantes por todo o mundo, esses mesmos problemas se repetem em outros lugares, demonstrando uma situação de "muita necessidade mesmo que os imigrantes estão passando aí pelo mundo".
Frente a esse cenário, como produtora cultural, diz ter pensado que "não é momento da gente pensar em ganhos. É momento de dividir, de fortalecer nossa comunidade". E foi assim que surgiu, em parceria com outras organizações, uma campanha de arrecadação de fundos para projetos sociais no Brasil e distribuição de mais de 200 cestas básicas entre brasileiros residentes em Nova York.
Mais do que doar o alimento, a gente doava atenção, a gente doava carinho. A pessoa preenche o cadastro e a gente faz a ligação para cada uma dessas pessoas. Pergunta da situação: "você tá sozinha? Nós estamos com você. Como é que a gente pode te ajudar?". A pessoa, às vezes, precisa de uma informação, com relação ao trabalho, isso e aquilo. E, do tipo, tem uma senhora que entrou em contato. A gente já entregou cesta para ela. Ela [nos disse que] precisava de ajuda para preencher o seguro desemprego. Graças a Deus já é legalizada aqui. Ela falou que não sabe nem abrir o computador. Tá entendendo? Então, a gente conseguiu uma pessoa para ir na casa dela, que mora perto, para ajudar com isso.

É dessa trajetória pessoal, de amizades, encontros e apoios mútuos que Luciana, junto a outras muitas mulheres, se coloca como uma líder social. Frente a essa condição do ser migrante, ela vê nas mulheres a capacidade de dar respostas necessárias e praticar outras formas urgentes de política.
É ser essa plataforma, essa rede de apoio, de carinho, afeto também entre as brasileiras que moram no exterior. E, aí, eu digo que eu sou a assistente social da mulherada porque, aí, vem pra mim "Luciana, tô precisando... Luciana, você conhece alguém?". Isso me dá muita satisfação: unir a mulherada porque só a gente sabe a importância de ter uma rede de apoio no exterior. E a gente provê isso.
Referências
[1] A entrevista foi concedida no dia 02 de julho de 2020.
[2] Tipo de emprego que, em inglês, significa "meio período".
[3] Para mais informações sobre a rede, é possível acessar o site e a página do Facebook.
Foto da chamada: Kevin Walker via Unsplash.