Blog
Compartilhe
O coronavírus em zonas de conflito - o perigo armado e o perigo invisível
Os conflitos armados ainda figuram como importante fator de influência nos deslocamentos humanos forçados. Além das razões ambientais, da grave e generalizada violação de direitos humanos e perseguições por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opiniões políticas, as guerras por vezes impõem a dura realidade de tornarem locais inabitáveis ou com tamanho risco que as pessoas são obrigadas a fugir por suas vidas.
Segundo a Escola de Cultura de Pau, vinculada à Universidade Autônoma de Barcelona, caracterizam-se como "conflitos armados" o enfrentamento protagonizado por grupos regulares ou irregulares que lançam mão do uso contínuo e organizado da violência de modo a provocar 100 vítimas fatais por ano ou de promover grave impacto no território, o que pode consistir em destruição de infraestrutura ou mesmo da natureza. Ainda, caracterizam os conflitos armados as ações com objetivos que diferem da delinquência comum e estão normalmente associadas a demandas de autodeterminação e autogoverno, aspirações identitárias, oposição ao sistema político, econômico ou social de um Estado ou à política interna ou internacional de um governo.[1]
Deste modo, segundo esta caracterização, a entidade calcula que existam 34 regiões com conflitos ativos no mundo, a maioria delas localizadas na Ásia e África, mas que também se estendem aos continentes americano e europeu.
A pandemia do coronavírus impôs seu protagonismo drenando as atenções das mídias e governos para si, o que não significa que as guerras e os problemas que delas decorrem tenham deixado de existir ou se amenizado. Contrariamente, na grande maioria dos casos eles só agravaram a sobrevivência das populações que vivem nessas regiões.
Há situações em que, mesmo diante do cenário caótico e ameaçador de saúde pública, os conflitos estão em escalada, como é caso da Líbia, Sudão do Sul, Afeganistão[2] e Moçambique[3]. Entretanto, na contramão desse acirramento, temos também exemplos de zonas de guerra em que cessar-fogos vêm sendo decretados, na linha dos apelos recentes feitos por autoridades internacionais, como o Papa Francisco e o Secretário-Geral da ONU, António Guterres.[4]
O Iêmen e a Síria ilustram bem esta situação de trégua. O primeiro, enfrenta a maior crise humanitária da atualidade. É um país cuja economia já era bastante frágil e pequena antes da eclosão do conflito e agora está em vias de se tornar o país mais pobre do mundo, segundo estudo do PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento[5]. A nação iemenita vem, desde 2014, sendo fortemente impactada por uma guerra civil inflada por interesses internacionais e na qual rivalizam como apoiadores externos o Irã e uma coalizão liderada pela Arábia Saudita, ambos os lados dando suporte material e logístico aos grupos que disputam o poder local e, no caso saudita, também fazendo investidas diretas com bombardeios que, por vezes atingem além de alvos militares, populações civis e até mesmo hospitais[6].
Cumpre apontar que, segundo dados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, aproximadamente de 90% da população do iemenita carece de acesso à rede pública de eletricidade e mais da metade não dispõe de quantidades adequadas de água segura e serviços de saneamento. O sistema público de saúde, antes mesmo da pandemia, já estava colapsado, com falta de profissionais, medicamentos e equipamentos, e enfrentando epidemias de cólera e difteria, além dos feridos e das doenças decorrentes da guerra. Vale ainda ressaltar que 22 milhões de pessoas dependem de ajuda humanitária para sobreviver, de um total de 29 milhões que habita o país[7].
Diante desse cenário já caótico e tendo em vista o avanço do coronavírus, a coalizão liderada pela Arábia Saudita anunciou um cessar-fogo temporário[8]. A medida foi vista como um grande alívio, não só por permitir um breve intervalo para uma singela reorganização das estruturas internas de saúde, mas também por facilitar a chegada de ajuda humanitária, da qual a população tanto depende. Ironicamente, observamos que está ocorrendo uma retração da presença das organizações que fazem esse provimento, não só pelo fato da COVID-19 ter drenado seus recursos, mas também por medidas de preservação das equipes que em grande parte se isolaram.
No Iêmen, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, já há transmissão comunitária do coronavírus e o já colapsado sistema de saúde não só tende a se sobrecarregar ainda mais, como em alguns casos há até hospitais que estão sendo fechados por medo dos efeitos que o vírus pode trazer e por falta de profissionais e EPIs - Equipamentos de Proteção Individual[9]. De todo modo, a trégua é positiva e tem sido apontada também como terreno propício para que os dois lados negociem soluções de paz duradouras.
Na Síria, a situação também é bastante delicada. O país vem sendo assolado por uma dos maiores conflitos armados do século, que está em vias de completar uma década de existência e coleciona cifras enormes: são mais de 400 mil mortos e 15 milhões de deslocados forçados, sendo 6,7 milhões destes refugiados em outros países. Hoje a maior disputa ocorre ao norte e noroeste do país, onde grupos rebeldes apoiados pela Turquia lutam contra a retomada do governo sírio liderado por Bashar Al Assad e que conta com apoio russo.
A região de Idlib, no noroeste sírio, é um dos últimos redutos rebeldes e atualmente a mais afetada pelo conflito. Ofensivas recentes causaram a morte de soldados turcos, sírios e civis[10], além do desalojamento de aproximadamente 1 milhões de pessoas, quase um terço da população da região e o maior número contabilizado em um só deslocamento desde o início da guerra. Essas populações acabam se refugiando em abrigos coletivos e acampamentos cuja infraestrutura é precária e medidas de higiene e auto isolamento por vezes não são possíveis.
Vale ressaltar que, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, apenas em 2020 mais de 80 hospitais ficaram fora de serviço em decorrência de ataques[11] e que, mesmo naqueles que ainda estão operantes, há uma grande carência de profissionais da saúde, visto que 60% dos que a Síria detinha foram perdidos, ou por estarem refugiados fora do país, ou por terem sido vítimas fatais desses ataques. Essas perdas tomam uma dimensão ainda maior quando somadas ao fato de que 35% dos pacientes atendidos nas clínicas móveis da organização já sofrem de infecções respiratórias.
Diante do delicado cenário e somados os desafios que a pandemia impõe mesmo em regiões que não estão em guerra, no início de abril de 2020 o presidente russo Vladmir Putin e o turco Tayyip Erdogan firmaram um cessar-fogo informando que apenas patrulhas seriam mantidas na região. Ainda que se ouça trocas de tiros nas proximidades das zonas mais tensas do conflito, as ofensivas massivas foram, por hora, suspensas. Ainda assim, o inimigo invisível já avança na Síria, que registra casos de coronavírus e uma curva de contágio em crescimento acelerado, mesmo com a grande desconfiança de subnotificação que paira sobre os números oficiais.
Cabe, diante dos fatos e dados apresentados, refletir se os cessar-fogos foram decretados em atenção à preservação da vida de civis, em especial dos deslocados forçados, e aos apelos internacionais que líderes têm feito para que neste momento os confrontos sejam suspensos e as atenções voltadas à saúde pública. Ou então, se estas tréguas são consequência inevitável das demandas internas que o próprio coronavírus trouxe, desviando recursos antes destinados às atividades bélicas para as economias nacionais e dificultando a manutenção de combates, sobretudo por dificuldades de abastecimento de tropas, falta de produtos da indústria, como armamentos e peças de reposição para blindados, entre outros. Independente do sentimento altruísta ou egoísta que permeia a decisão, o maior custo envolvido nela e que está, pelo menos por hora, sendo minimizado, é o custo humano: as vidas que podem ser poupadas com um arrefecimento dos conflitos e melhores condições de enfrentamento ao coronavírus.
Victor Del Vecchio é professor, gestor de projetos, advogado e mestrando pela USP. Atuou como Consultor jurídico da ONU Migração (OIM) e membro do ProMigra - Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da USP e da equipe do Observatório das Migrações em São Paulo-NEPO/UNICAMP. É sócio do Bastos & Del Vecchio - Consultoria em Migração e professor da ESPM - Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] Escola de Cultura de Pau; Comercio de armas, conflictos y derechos humanos; jan. 2020; Disponível em: <https://escolapau.uab.cat/informes-2/comercio-de-armas-conflictos-y-derechos-humanos/>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
[2] Institute for Economics and Peace; Global Peace Index 2020; jun. 2020; Disponível em <http://visionofhumanity.org/app/uploads/2020/06/GPI_2020_web.pdf>; Acesso em 11 de jun. de 2020.
[3] Médicos Sem Fronteiras; Violência compromete acesso a cuidados de saúde em região de Moçambique; 05 de jun. 2020; Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/violencia-compromete-acesso-cuidados-de-saude-em-regiao-de-mocambique>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
[4] https://news.un.org/pt/story/2020/03/1708212
[5] PNUD Brasil; Conflito prolongado tornaria Iêmen o país mais pobre do mundo, aponta estudo do PNUD; 04 de out 2019; Disponível em: <https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2019/conflito-prolongado-tornaria-iem.
[6] Médicos Sem Fronteiras; Iêmen: hospital de MSF é destruído por ataques aéreos; 27 de out. De 2015; Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/iemen-hospital-de-msf-e-destruido-por-ataques-aereos>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
[7] DEL VECCHIO, Victor; Yahoo Notícias; Iemên vive a maior crise humanitária do mundo na atualidade - e o Brasil tem 'culpa' nisso; 17 de jul. de 2019; Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/iemen-maior-crise-humanitaria-mundo-085900193.html>; Acesso em 14 de jun. de 2020.
[8] CNN Brasil; Arábia Saudita declara cessar-fogo com Iêmen por causa pandemia de coronavírus; 09 de abr. De 2020; Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/09/arabia-saudita-declara-cessar-fogo-com-iemen-por-causa-pandemia-de-coronavirus>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
[9] Médicos Sem Fronteiras; MSF trata pacientes gravemente doentes no epicentro da pandemia de COVID-19 no Iêmen; 12 de jun 2020; Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/msf-trata-pacientes-gravemente-doentes-no-epicentro-da-pandemia-de-covid-19-no-iemen>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
[10] Médicos Sem Fronteiras; Dia terrível de ataques indiscriminados em Idlib, Síria; 26 de fev. De 2020; Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/dia-terrivel-de-ataques-indiscriminados-em-idlib-siria>; Acesso em 02 de jun. de 2020.
[11] Médicos Sem Fronteiras; Noroeste da Síria : "A COVID-19 tornou ainda mais complexa uma situação que já era catastrófica"; 20 de abr. de 2020; Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/noroeste-da-siria-covid-19-tornou-ainda-mais-complexa-uma-situacao-que-ja-era-catastrofica>; Acesso em 13 de jun. de 2020.
Foto da chamada: Carl Waldmeier. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" em branco.
A ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO – IFCH/UNICAMP), para divulgação do livro "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.