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Pandemia e Xenofobia
Em 2020 a pandemia de Covid-19 se alastrou pelo planeta. No início de Setembro a doença já havia infectado 25 milhões de pessoas e levado mais de 850.000 pessoas à morte. Dada a relativa falta de testagem global e a subnotificação de casos esses dados ainda estão longe de representar a realidade. Mesmo assim, ainda há quem não acredite nos dados ou quem desconfia das explicações sobre o surgimento da doença.
Até agora temos razões para acreditar que o principal ponto de contágio foi a cidade de Wuhan, na província de Hubei, na China. Mas algumas informações sobre um mercado de animais selvagens vivos se misturam com boatos conspiratórios e explicações superficiais, em todo caso restritas aos hábitos alimentares dos chineses, entendidos como exóticos.
Enquanto isso EUA e China trocam acusações e líderes espalham desinformação, todos buscando um bode expiatório para colocar a culpa e a responsabilidade pela pandemia. O secretário geral da ONU chegou a afirmar um tsunami de ódio e xenofobia que estava se espalhando pelo mundo. Proliferam-se casos de racismo, xenofobia e até sinofobia - o racismo específico contra chineses. Esses casos envolvem discriminações, agressões e até o assassinato de pessoas. Como chegamos a este ponto?
Diversos estudiosos vêm desenvolvendo há décadas pesquisas para melhor entender o surgimento de novas doenças infecciosas globais. O geógrafo norte-americano Mike Davis buscou explicar a emergência da epidemia de gripe aviária, causada pelo vírus H5N1 e que também surgiu na China, em 2003. E o Mike nos alertava: a gripe aviária é um asteroide viral em rota de colisão com a humanidade. Visto a partir de hoje, podemos dizer que aquela epidemia de gripe aviária teve um impacto baixo sobre a humanidade, comparada com o novo coronavírus. Mas quando acompanhamos a explicação de Mike Davis, acabamos descobrindo uma dinâmica entre economia e meio ambiente própria ao capitalismo globalizado que acabou por cumprir um papel determinante também para a emergência do vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19.
A forma como a moderna agropecuária relaciona meio ambiente e economia está na raiz deste problema. Os chamados complexos agroindustriais expandiram criam animais geneticamente muito similares, em confinamento e deprimidos imunologicamente, gerando condições muito propícias para a disseminação de doenças infecciosas entre os rebanhos.
O agronegócio também exerce uma pressão muito forte sobre os ecossistemas naturais, como áreas florestais e zonas úmidas, que abrigam diversas espécies de animais selvagens que portam naturalmente cepas de vírus que pode contaminar os animais de criação e até humanos. Tal é o caso, por exemplo das florestas da África Ocidental, onde um surto de Ebola emergiu em 2013 justamente porque o agronegócio removeu as áreas florestais para expandir a produção de óleo de palma. As populações de morcegos perderam os lugares de alimentação e abrigo e passaram a conviver de forma mais próxima com os colhedores do palma, gerando uma cadeia de contágio. Até então, o vírus da ebola ocorria principalmente em morcegos.
Este também é o caso do Pantanal brasileiro e da região Pan Amazônica, prováveis origens de epidemias futuras. A pressão do agronegócio sobre esses biomas interfere diretamente na possibilidade de vírus se tornam capazes de infectar humanos.
Ainda não é possível remontar com exatidão o percurso completo que o vírus Sars-CoV-2 percorreu até infectar humanos. No entanto, uma pesquisa recente já permite afirmar que o vírus não foi criado em laboratório e não vazou por acidente de qualquer laboratório. Isso porque a estrutura genética do vírus é muito diferente de qualquer vírus conhecido. Pesquisadores utilizaram um supercomputador e tentaram refazer o caminho de evolução do Sars-CoV-2 a partir dos vírus conhecidos e não conseguiram chegar nem perto.
O epidemiologista Rob Wallace, por sua vez, sugere que a origem do novo coronavírus está ligada à uma cadeia regional de produção de carnes exóticas no sudeste da China em franco processo de modernização. O percurso completo cumprido pelo vírus ainda é incerto, mas existe uma profunda similaridade do Sars-CoV-2 com um outro coronavírus encontrado em morcegos na China. Esta similaridade é ainda maior com um vírus encontrado em circulação em pangolins, um mamífero escamoso criado em fazendas para o consumo de sua carne, que chegou a ser comercializada pela internet por sistemas on demand, por mais de 100 dólares o quilo. Essa similaridade genética fortalece a hipótese de que os pangolins tenham atuado como uma espécie de hospedeiro intermediário para o transbordamento do vírus para os humanos.
A pesquisa de Wallace demonstra assim como as províncias da costa sul da China foram convertidas, de fato, em um depósito de cepas extremamente virulentas de recombinação de vírus. Contudo, a explicação deste fenômeno, que autoridades do governo chinês insistem em ignorar está relacionada, por sua vez, à industrialização da pecuária na China. Esse processo foi impulsado pela entrada investimentos estrangeiros diretos, principalmente dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.
Em meio à crise de 2008, pouco antes das Olimpíadas de Pequim, a presença do capital estrangeiro foi fortalecida por novos investidores e grandes bancos norte-americanos como o Goldman Sachs. O fluxo de capitais financeiros internacionais estaria assim transformando as paisagens rurais e urbanas do sudeste da China, causando impactos inestimáveis para a saúde humana e o meio ambiente em todo o planeta.

O povo chinês está sujeito às consequências da modernização agropecuária que ocorre hoje em todo o planeta. Essa dinâmica desestabiliza os sistemas ecológicos em um ritmo industrial. O povo chinês não é responsável pela pandemia de Covid-19, eles são, contudo, a primeira vítima de um sistema global que ignora o risco de uma pandemia para manter sua lógica cega e autodestrutiva em vigor. Já o consumo de carnes de animais selvagens se torna uma ameaça pandêmica à medida em que encontra os modernos circuitos de comércio e produção em escala industrial.
Mesmo assim, se tornaram comuns afirmações que procuram culpabilizar os chineses pela pandemia. Tais práticas execráveis de racismo e sinofobia encontraram na figura do ex-ministro da educação do Brasil um difusor de primeira hora, que publicou em uma rede social um texto no qual insinuava que a China sairia fortalecida da pandemia, por meio da ridicularização do sotaque chinês. O texto do ex-ministro parodiava um personagem da Turma da Mônica. A produtora de Mauricio de Souza repudiou fortemente o desvio do ministro, agora alvo de uma notícia-crime por racismo. O autor da notícia-crime, o historiador Vinicius Wu, afirmou na ocasião que a manifestação “além de indigna e repugnante, é totalmente incondizente com o padrão exigido de um ministro de Estado, prejudica o Brasil (...) e discrimina gravemente o povo chinês e os descendentes de chineses que têm em nosso país sua pátria e sua casa".
A multietnicidade de Wu, que é afro-sino-brasileiro direciona a atenção para uma convergência perversa nas formas de racismo, agora fortalecidas em meio as crises da economia, do meio ambiente e da saúde pública global. Em Maio de 2020, o imigrante angolano João Manoel morreu esfaqueado por um auxiliar de mecânico brasileiro enquanto trabalhava. Outras duas vítimas do ataque sobreviveram. O Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC) emitiu uma carta de repúdio muito oportuna, em que apresenta a convergência das ideologias de crise em meio a pandemia, racismo e xenofobia:
"profundo REPÚDIO contra o aumento, neste momento de pandemia, de ações de extrema violência contra a população migrante cuja motivação principal é a xenofobia. [...] o ato foi motivado por uma discussão sobre o acesso de migrantes ao auxílio emergencial federal. Não podemos aceitar que atos semelhantes continuem acontecendo. Ressaltamos que a política migratória no Brasil é pautada no respeito aos direitos humanos, na não discriminação e no repúdio à xenofobia."
As práticas e ideologias racistas tem origens históricas longas e precisam ser enfrentadas a partir das diferenças que carregam. Para o filósofo Silvio de Almeida existiriam três formas de racismo: a primeira, na qual indivíduos manifestam restrições e discriminações raciais, a segunda, na qual o racismo consegue definir as práticas de instituições, como a polícia a justiça, e a terceira, o racismo estrutural, que acaba dando forma às próprias relações sociais e econômica como um todo. A partir do paradigma do “homem branco e ocidental”, como define a pensadora Roswitha Scholz, os indivíduos e as famílias acabam tendo suas vidas definidas por atribuições que são determinadas pelo racismo estrutural e pelo patriarcado capitalista. Essas imposições atingem diversos âmbitos da vida social, da economia, da cultura até a psicologia.
Para o filósofo Achille Mbembe, a raça não existe como um fato físico, antropológico ou genético. Na verdade, a raça é uma ficção útil, uma construção social que precisa ser abolida. Durante a pandemia, a afirmação de Mbembe ganha novos relevos à medida em que casos de racismo de chineses contra negros na China eclodem enquanto a pandemia se arrefece. Em meio ao recrudescimento de todas as crises, a célebre declaração de Angela Davis deve estar presente em todas as nossas práticas: em uma sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista.
Allan Rodrigo de Campos Silva é geógrafo e tradutor. Realiza pesquisas na área de imigração, geografia econômica e saúde coletiva e é membro do Observatório das Migrações no Estado de São Paulo.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Letramento, Belo Horizonte, 2020.
ANDERSEN, K.G., Rambaut, A., Lipkin, W.I. et al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nature Medicine 26, 450–452 (2020).
CDHIC, Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante. Nota de Repúdio - A escalada de violência não pode ser relativizada ou banalizada. São Paulo, 2020.
DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária. Record, Rio de Janeiro, 2006.
MBEMBE. Achille. Crítica da razão negra. Editora Antígona, Lisboa, 2014.
SCHOLZ, Roswhita. Crítica da dissociação-valor e teoria crítica. In revista EXIT! nº 14, Maio de 2017, p. 300-303. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz28.htm. Acesso em 14/06/20.
WU, Vinicius. Weintraub fez chacota da China. Um neto de chinês não gostou e foi ao STF In: Folha de São Paulo, 11 de Junho de 2020.
WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio. Doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Tradução de Allan Rodrigo de Campos Silva, Editora Elefante & Igrá Kniga. São Paulo, 2020.
Fotos da chamada e do texto: todas as imagens são de autoria da Revista Comando (@revistacomando), que, gentilmente, cedeu autorização para utilização nesse artigo.
A ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO – IFCH/UNICAMP), para divulgação do livro "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.