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Possibilidades educativas em museus de história: Materiais pedagógicos
Para finalizar a série "Possibilidades educativas em museus de história", abordaremos nesse texto breves reflexões sobre o uso de materiais pedagógicos na mediação da história e como esses conteúdos podem ser utilizados para promover importantes discussões sobre as estruturas da nossa sociedade.
Durante alguns dos encontros de formação que inspiraram essa série e foram ministrados por educadoras do Museu da Imigração e do Museu do Ipiranga, o público participante foi convidado a propor intervenções que partissem do olhar da educação em ambos espaços. Para isso, foram colocados em contato com alguns dos projetos desenvolvidos pelas instituições e provocados a refletir sobre como acontece o processo de criação de materiais e propostas educativas. Reflexões sobre público-alvo, construção de narrativas, suporte, acessibilidade e história oficial foram traçadas e abertamente discutidas, culminando em uma dúvida que perpassa essas discussões: como é possível que os materiais educativos elaborados por educadores de museus sejam utilizados dentro da sala de aula?
Para responder essa pergunta, não podemos esquecer que a efetividade na construção e a autonomia no uso dessas publicações só é possível a partir da parceria entre educadores que atuam nos diferentes espaços, conforme comentamos na segunda publicação desta série[1]. No entanto, existem algumas barreiras que atravessam o uso de materiais educativos e que tornam a pergunta acima mais complexa, pois antes de discutir como é possível utilizá-los em sala de aula, é importante entender quais as limitações estruturais para que eles sejam reconhecidos como ferramenta pedagógica e quais as características que não queremos reproduzir na criação do seu conteúdo.
Quando olhamos, por exemplo, para os livros didáticos utilizados nas escolas, não podemos deixar de observar a função ideológica que eles possuem e, por isso, trabalhar em diálogo com este tipo de material é um grande desafio. A apresentação dos conteúdos é escolhida conforme as políticas daqueles que organizam o sistema educacional, seja ele público[2] ou privado. Muitos professores e estudiosos do campo da educação traçam, há anos, críticas sobre o uso desses documentos em sala de aula, uma vez que, como conteúdos prontos, carregam narrativas com pouca abertura para construção de críticas.
"[...] o livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca burguesa. [...] assim, o papel do livro didático na vida escolar pode ser o de instrumento de reprodução de ideologias e do saber oficial imposto por determinados setores do poder e do estado."[3]
No que diz respeito aos livros didáticos de história do Brasil, as discussões ideológicas muitas vezes ficam latentes na própria apresentação da capa, onde imagens estigmatizantes corroboram com um imaginário falseado sobre nossa sociedade. A pesquisadora Suely dos Santos Souza, em sua tese de mestrado, analisa alguns destes livros e o modo como eles organizam os textos e as imagens, destacando ilustrações sobre o período escravocrata. Ela defende, em sua pesquisa, que existe um apagamento da resistência dos escravizados e da cultura africana, além de, em algumas abordagens, a escravidão das pessoas negras aparecer de forma naturalizada – conforme ela aponta ao comentar a relação entre imagens de senzala e as atividades propostas a partir delas:
"Na análise dessas páginas, percebe-se a construção simplificada e reduzida de conceitos no texto. A senzala é apresentada como sendo a moradia natural dos negros e não como um lugar ao qual os mesmos foram relegados e obrigados a sobreviver em cativeiro. O negro não deveria mais ser apresentado como escravo, pois essa também não era uma condição natural concernente a ele, mas sim imposta, nesse aspecto, deveriam ser apresentado como um povo que foi escravizado, e ainda fazer entender que aquela condição de pobreza era devido à forma como os mesmos estavam submetidos e mantidos por seus escravizadores. A página seguinte apresenta as atividades para o aluno, exercícios que giram em torno do conteúdo do bloco inteiro, abordando os assuntos cana-de-açúcar, sistemas de governo e ainda o domínio holandês. O tema da condição dos negros não é mais mencionado nem é feita qualquer provocação de reflexão para os alunos acerca do assunto."[4]
Ainda sobre a maneira pela qual são traçadas essas representações nos livros didáticos, podemos citar reflexões da artista e educadora Rosana Paulino, durante o circuito de debates "Raízes diaspóricas", programação cultural que esteve em cartaz no Sesc Vila Mariana, em janeiro de 2016[5]. Paulino, cuja palestra realizada na ocasião compunha a mesa "A representação do negro nas artes", apresentou (informação verbal)[6] aos participantes o relato de uma mulher negra, que em sua infância, sentia-se incomodada com as aulas de história. Com o passar dos anos, a garota, que se tornou professora, pôde perceber que o que a deixava desconfortável durante as aulas eram as imagens ilustrativas dos livros didáticos, nas quais estavam retratadas pessoas negras sendo açoitadas e em condição de miséria e submissão. Sem exemplos de resistência, com apagamento da culpabilização da branquitude e tendo na figura monárquica o heroísmo pelo fim do sistema escravocrata, a narrativa sobre escravidão era apresentada de maneira romantizada. A artista ainda chamou atenção para as cenas de submissão apresentadas nos livros de história: é preciso se atentar para as mensagens ocultas presentes nas imagens sobre o local que cada indivíduo ocupa na sociedade e sobre a intencionalidade dessas escolhas, que foram feitas por uma elite.
"Numa sociedade atravessada, e movida, por conflitos sociais, ou seja, onde há explorados e exploradores e, portanto, classes antagônicas, a História é sempre uma construção que reflete os interesses dos grupos sociais dominantes, que controlam os meios de comunicação. Em outras palavras, a História é uma construção das classes sociais que detém o poder e os meios de comunicação. E isso é verdade mesmo quando tal situação é mascarada, não estando explicitada, quando ela não é evidente."[7]
Essa discussão, portanto, nos faz concluir que, para adentrar as salas de aula com materiais pedagógicos elaborados em parceria externa ao ambiente escolar, precisamos nos inteirar das discussões sobre a produção e o uso desses conteúdos. Para que os materiais utilizados dentro e fora dos museus possam se integrar como ferramenta pedagógica e de transformação social, é necessário primeiro combater as violências simbólicas que são apresentadas em conteúdos prontos. O mesmo vale para as exposições elaboradas nos museus e demais espaços culturais: para que se integrem às práticas educativas transformadoras, as instituições precisam estar atentas a quais políticas são submetidas e como se apresentam ao público.
Finalizamos, com este texto, a série "Possibilidades educativas em museus de história" e convidamos os interessados pelos debates levantados a nos escreverem para que possamos trocar reflexões e pontos de vista sobre o trabalho desenvolvido no campo da educação dentro e fora das salas de aula. Entre em contato pelo e-mail: educativo@museudaimigracao.org.br!
Referências bibliográficas
[2] "Tal ação regulamentada por lei, é: '[...] controlada pelo estado, que se constitui como sensor do mesmo através de legislação criada em 1938 pelo Decreto-lei 1.006, consolidado em 1945 pelo decreto nº 8. 460. A partir de então os livros só podem ser adotados em todo o território nacional com autorização prévia do Ministério de Educação. (SILVA, 2004, p. 52)'" Apud SOUZA, S. S. O livro didático e as influências ideológicas das imagens: por uma educação que contemple a diversidade social e cultural. Dissertação de mestrado (Educação), Universidade Estadual de Feira de Santana, 2014. Disponível em: http://tede2.uefs.br:8080/handle/tede/91. Acesso: 20 de julho de 2020.
[3] BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
[4] SOUZA, S. S. Op. cit.
[5] RAÍZES DIASPÓRICAS. "A representação do negro nas artes". Sesc Vila Mariana, São Paulo, 2016. Disponível em:
https://www.sescsp.org.br/programacao/81254_A+REPRESENTACAO+DO+NEGRO+NAS+ARTES. Acesso 20 de julho de 2020.
[6] Na ocasião, a educadora do Museu da Imigração, Valéria Chagas, participou do circuito de debates como ouvinte.
[7] PRESTES, Anita Leocádia. O historiador perante a história oficial. Germinal: marxismo e educação em Debate, v. 2, n. 1, 2010.
Foto da chamada: formação "Possibilidades Educativas em Museus de História" em março de 2018 / Crédito: Jenifer Lu.