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Saudade: o registro dos nossos sentimentos mais complexos
Evelize Moreira - Pesquisadora
30 de janeiro é comemorado o dia da saudade.
A palavra "saudade" é um dos termos mais emblemáticos da língua portuguesa, conhecida por sua profunda carga emocional e pela dificuldade de tradução para outros idiomas. Ela vai além da simples falta de algo ou alguém, encapsulando um sentimento nostálgico e agridoce. "Saudade" é um elemento fundamental da cultura de países de língua portuguesa, presente na literatura, na música, na arte e nas manifestações diárias, faladas e escritas. Ela reflete a visão de mundo, marcada pela melancolia, pela nostalgia e pela valorização das relações interpessoais.
É uma palavra que em si reúne a diversidade etimológica de influências latinas e árabes na língua portuguesa.
Somente a língua portuguesa conseguiu colocar, ao mesmo tempo, a força do coração e da memória na palavra saudade [1]
A saudade pode ser experimentada em uma variedade de situações, como quando alguém está longe de casa, separado de entes queridos, relembra tempos passados ou anseia por algo que já se foi. É um sentimento emaranhado na cultura, refletindo a importância do vínculo emocional e da memória na vida.
No acervo do Museu da Imigração, antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, há correspondências que nos trazem à reflexão esse sentimento comum entre indivíduos e que através da língua portuguesa tem um caráter profundo e complexo. Para além disso, as correspondências,
permitem observar os deslocamentos pelo caleidoscópico ponto de vista de seus protagonistas, possibilitando compreender as transformações sociais, culturais e identitárias (...) também as práticas da escrita, mesmo derivadas de uma cultura popular, e por vezes marginal [2]
As correspondências via cartas e postais, embora estejam sendo cada dia menos usadas devido ao desenvolvimento tecnológico e mensagens instantâneas, ocuparam um papel crucial nos processos migratórios durante os séculos XIX e XX. Além de serem meios pelos quais se obtinham e contavam notícias, muitas vezes eram usadas como documentos que comprovavam vínculos com uma pessoa imigrante no país de acolhida e viabilizava entradas e saídas. Sobretudo as cartas denominadas “cartas de chamada” possuíam a utilidade de documento comprobatório, que no caso do Brasil, deveria ser apresentado nos portos de chegada do país junto à Inspetoria de Imigração. No caso de Portugal, por exemplo, as cartas serviam também como autorização para a família conseguir retirar o passaporte e se deslocar para o Brasil. A expansão das ferrovias e do sistema de navegação a vapor junto ao fenômeno da grande migração para o Brasil, facilitou consideravelmente os envios de correspondências, que passaram de 60 dias para 20 dias para chegada ao destino.
A partir de 1911 as cartas de chamada se tornaram obrigatórias para imigrantes com mais de 60 anos e não aptos ao trabalho, que desejavam se reunir a família que já residia no Brasil, sendo a carta um comprovante de amparo e garantia de subsistência através da família. No acervo digitalizado do Museu da Imigração, há 1492 cartas denominadas de cartas de chamada, em diversas línguas, sendo em língua portuguesa 557 no total. Dentro dessa classificação, há cartas que mandavam notícias, contavam agonias, serviam de convite para a vinda, mas também reclamavam a saudade.
As cartas em português falam de saudade, ainda que a palavra não esteja explicita.
As missivas não apenas documentavam os mundos de origem e de destino; por meio delas, buscava-se arguir silêncios, superar distâncias, perpetuar afetos, reforçar laços e combater a saudade, reconfigurando relações tornadas vulneráveis pela longa distância e tempo de separação. [3]
As correspondências que ilustram este texto são apenas uma amostra da saudade como sentimento presente no deslocamento e na distância e do uso da língua portuguesa escrita, que carrega a preciosidade da palavra que traduz o mais profundo desejo do reenconto, sendo elo entre universos pessoais.
Imagem Principal: Postal de Giuseppe Ferré, imigrante italiano. Há uma coleção de centenas de postais que ele e a esposa trocavam com amigos do mundo todo. Acervo Museu da Imigração
Referências bibliográficas
[1] BERTINI, Fátima. O conceito de saudade (desiderium): a pertinência de uma tradução. Santa Bárbara Portuguese Studies, University of Califórnia, v. 2, 2016, p.1
[2]TRUZZI, Oswaldo; MATOS, Maria Izilda. Saudades: sensibilidades no epistolário de e/imigrantes portugueses (Portugal-Brasil 1890-1930). Revista Brasileira de História, v. 35, p. 257-277, 2015, p.340
[3]Idem, p.339
FELDMAN-BIANCO, Bela. Saudade, imigração e a construção de uma nação (portuguesa) desterritorializada. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 9, n. 1, p. 35-49, 1992.
LAMAS, Maria Paula. Reflexões sobre a saudade. Lisboa: Impressão José Fernandes, 2003.
LEITE, Ana Carolina da Silveira et al. Entre cartas e chamamentos: a história social da cultura escrita de imigrantes portugueses no Brasil entre 1896 e 1929. 2023. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia.
MATOS, Maria Izilda Santos; TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Presença na ausência: cartas na imigração e cartas de chamada. História Unisinos, v. 19, n. 3, p. 338-347, 2015.