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Afinal, o que é o brasileiro? - As migrações como projeto de nação
No artigo anterior desta série, apresentamos dois conceitos problemáticos – assimilação e aculturação –, mas cuja compreensão histórica é importante para pensarmos nas discussões relacionadas às migrações e como o migrante é interpretado no que diz respeito à uma identidade nacional. Assim sendo, chegamos a uma pergunta um pouco diferente daquela que intitula essa temática: Afinal, quem é reconhecido ou se reconhece brasileiro?
A partir dos desdobramentos dessa questão, podemos refletir ainda sobre um outro aspecto. A transformação do Brasil em um estado independente no início do século XIX gerou diversas inquietações e debates entre aqueles que governavam a nova nação. Entre essas discussões, uma das mais importantes era a construção de uma identidade para o povo brasileiro. Esse povo não era somente aquele que já se constituía no país. Posto isso, temos uma outra indagação: Quem o Brasil queria como brasileiro?
É a partir dessa pergunta que podemos começar a pensar nas migrações de estrangeiros como um projeto de nação.
A política inicial do Império Brasileiro visava migrantes dispostos a ocupar regiões de fronteiras do país, especialmente no sul, e em pequenas propriedades rurais. A própria Constituição de 1824 estabelece diretrizes relacionadas a esse objetivo. Cabe destacar que os migrantes desejados, nesse primeiro momento, eram europeus, não portugueses, principalmente da Europa Central. Os alemães, por exemplo, eram vistos com "qualidades culturais inerentes que contribuiriam para aperfeiçoar o novo império, excepcional habilidade na agricultura e um senso de orgulho nacional".[1]
Decorrem desse exemplo observações acerca da busca pelo branqueamento da população brasileira, pensando ainda nos debates relativos ao fim da escravidão no país. Branquear o brasileiro com a atração de migrantes europeus é algo sempre em pauta nos debates sobre identidade e políticas migratórias entre os séculos XIX e XX. A ideia essencial era ver o migrante estrangeiro, branco e europeu (ou norte-americano) como o responsável por melhorar ou civilizar o Brasil, ou seja, aqueles que aperfeiçoariam uma nação imperfeita e "desafricanizariam" o Brasil. Em meados do século XIX, podemos utilizar como exemplo a atração de sulistas estadunidenses, derrotados na Guerra Civil americana, que receberam subsídios e terras no interior do estado de São Paulo e a visão negativa sobre a migração chinesa.
Segundo o fazendeiro de café Luis Peixoto de Lacerda Werneck (1885):
"Os protestantes alemães eram moralizados, pacíficos e trabalhadores, enquanto os chineses eram homens-animais cujo caráter é apresentado por todos os viajantes com cores desfavoráveis e terríveis. Seu torpe egoísmo, o orgulho, uma insensibilidade bárbara alimentada pela prática do abandono ou trucidamento dos filhos. A cultura chinesa iria degenerar a população brasileira, que já havia sofrido a disformidade do indígena e do africano."[2]
No final do século XIX, as migrações para o Brasil se transformam em um fenômeno de massa e se destacam as chegadas de migrantes provenientes de países do sul da Europa, como Itália, Espanha e Portugal. Obviamente, esse movimento tem relação com fatores que expulsavam diversas famílias de suas terras de origem, especialmente motivos econômicos e, em muitos casos, situações de miserabilidade. Ao mesmo tempo, as migrações desses povos eram importantes para o Brasil em um contexto de recrudescimento e até proibição da migração subsidiada de alemães. Além disso, era uma alternativa de mão de obra extremamente barata para os cafeicultores do oeste paulista que, muitas vezes, junto com o estado, incentivavam a vinda dessas pessoas por meio de subsídios. É ainda nesse cenário que se intensificam no Brasil as teorias raciais vinculadas ao darwinismo social e que buscavam uma solução para o processo de miscigenação no país. Essa solução era teoria do branqueamento, ou seja, a entrada de milhares de migrantes europeus em território brasileiro resultaria, em algumas gerações, na transformação/branquidão da população do país e, por consequência, em uma pretensa nação mais civilizada (entendo civilização como o modelo de europeu de civilização).
Jeffrey Lesser aponta que essa sociedade pluralista colocava a branquidão no topo e a negritude na base e que a fluidez desses termos e dos seus significados fizeram com que o Brasil se tornasse uma nação multicultural.[3] Ademais, indica que os próprios migrantes europeus, cada vez mais, passaram a insistir na sua própria branquidão, ou seja, temiam ser colocados na categoria racial de não brancos.[4]
As elites japonesas costumavam também promover o Japão como o país "branco" da Ásia, o que pode ter contribuído nas negociações para a promoção da migração japonesa para o Brasil. J. Amândio Sobral, inspetor da agricultura do estado de São Paulo, na ocasião de sua visita ao Kasato Maru, navio que trouxe o primeiro grupo oficial de migrantes japoneses ao Brasil, disse que "a raça é muito diferente, mas não inferior".[5]
Conseguimos observar, por meio desses exemplos, como as teorias raciais e, particularmente, a ideia de transformar o Brasil em uma nação mais branca estavam diretamente relacionadas a um projeto político que entendia a migração como uma forma de civilizar o país. Esse projeto se utilizou de diferentes estratégias ao longo do tempo, em razão de diversos contextos históricos, mas o seu objeto principal permaneceu, inclusive nas primeiras décadas do século XX.
Desenvolveremos essa questão em outros artigos da série!
Referências
[1] LESSER, Jeffrey. A invenção da brasilidade. Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] Ibidem
[5] Ibidem