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Quem entra no Brasil? - O mito das portas abertas
Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890:
Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indígenas da Ásia, ou da Africa que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de acordo com as condições que forem estipuladas. (grifo nosso)
Art. 2º Os agentes diplomáticos e consulares dos Estados Unidos do Brazil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos immigrantes daquelles continentes, communicando immediatamente ao Governo Federal pelo telegrapho quando não o puderem evitar.
Art. 3º A polícia dos portos da República impedirá o desembarque de taes indivíduos, bem como dos mendigos e indigentes. (grifo nosso).
(...)
Art. 5º Sómente terão passagem integral ou reduzida, por conta do Governo Federal:
1º As familias de agricultores, limitados aos respectivos chefes, ou aos seus ascendentes os individuos maiores de 50 annos;
2º Os varões solteiros maiores de 18 annos e menores de 50, uma vez que sejam trabalhadores agricolas;
3º Os operarios de artes mecanicas ou industriaes, artezãos e os individuos que se destinarem ao serviço doméstico, cujas idades se acharem comprehendidas entre os limites do paragrapho precedente.
Os individuos enfermos ou com defeitos physicos, sómente terão passagem gratuita, si pertencerem a alguma familia que tenha pelo menos duas pessoas válidas.[1]
O decreto transcrito acima tinha como objetivo regulamentar a introdução e localização de imigrantes na recém proclamada República dos Estados Unidos do Brasil. Os artigos apresentados demonstram algumas características consideradas desejáveis ou indesejáveis pelo governo brasileiro no que diz respeito às pessoas que quisessem morar e trabalhar em nosso território. Isso não é uma invenção republicana. Desde os tempos do Império existiam recomendações e intenções pela atração de uma mão de obra específica. Em meados do século XIX, por exemplo, havia uma predileção por migrantes alemães, até mesmo em comparação com grupos de outros europeus, como franceses, belgas e irlandeses.[2] Já negros, chineses e hindus, considerados "raças inferiores", eram desprezados nas políticas migratórias.[3] As portas do Brasil não estavam escancaradas.
Logo no primeiro artigo do decreto nº 528 observamos o propósito do governo em dificultar as entradas de asiáticos e africanos. No texto introdutório dessa série, já mencionamos alguns aspectos de como o darwinismo e determinismo social e as políticas do racismo científico europeu contribuíram para acentuar no Brasil uma política de branqueamento da população, que nada mais era do que um projeto eugenista. Nesse contexto, é bem ilustrativo o quadro 'A Redenção de Cam" (1895), do artista espanhol Modesto Brocos. A tela foi utilizada pelo médico e subdiretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda, no Congresso Universal das Raças, que ocorreu em Londres, em 1911. Na ocasião, Lacerda apresentou a tese "Sobre os mestiços no Brasil", que em linhas gerais afirmava que no período de três gerações o país se tornaria branco. A obra de Brocos, de certa forma, sintetiza os anseios de Lacerda. A senhora negra (avó da criança), com os pés descalços, olha para o céu em sinal de agradecimento à redenção ou à vitória pela constituição de um futuro mais branco para a família, consequentemente para o Brasil. Significado semelhante pode ser atribuído ao sinal realizado pela mãe do bebê (filha da senhora) que aponta, simbolicamente, para o futuro. O pai, possivelmente um migrante português, observa com orgulho seu filho. Ele está de sandálias e dentro de casa, o que pode ser interpretado como símbolo da civilização em contraposição à barbárie (há um vídeo curto, bem didático, apresentado pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz que trata desse tema especificamente).[4]
O decreto também faz menção aos asiáticos. Dois anos depois, em 05 de outubro de 1892, a lei nº 97, assinada por Floriano Peixoto, permitia a livre entrada, no território da República, aos migrantes de nacionalidade chinesa e japonesa, com exceção daqueles considerados mendigos, indigentes, piratas ou sujeitos à ação criminal em seus respectivos países.[5] De todo modo, vale a pena recordar que o primeiro grupo oficial de migrantes chineses aportou no Brasil em 1900, enquanto os primeiros japoneses chegaram, em caráter oficial, somente no ano de 1908. Isso não encerrou as discussões a respeito da admissibilidade ou não de asiáticos em território brasileiro. Ainda na década de 1930, existiam argumentos que procuravam afirmar a inadaptabilidade de japoneses à cultura brasileira e inseri-los em uma categoria inferior de raça. O livro de Vivaldo Coaracy, chamado "O Perigo Japonês", publicado em 1942, é um exemplo desse tipo de pensamento. Não à toa, tal matéria – se o Brasil deveria ou não permitir a migração de japoneses – foi objeto de discussão durante a elaboração da Constituinte de 1946.[6]
Outro ponto que chama a atenção é a proibição da entrada de mendigos e indigentes, presente tanto no decreto nº 528 quanto na lei nº 97. O decreto limitava, ainda, a entrada de indivíduos enfermos ou com deficiências físicas. Evidentemente, é difícil imaginar como era realizada a triagem de migrantes que desembarcavam no Brasil no que se refere às possíveis avaliações para determinar se alguém era mendigo ou indigente. No caso das pessoas doentes, apenas para citar um exemplo, em 1893 alguns navios provenientes da Europa foram impedidos de atracar em portos brasileiros por possuírem surtos de cólera entre os passageiros.[7] De todo modo, esses artigos revelam o desejo do Estado brasileiro em contar com migrantes, de preferência famílias numerosas, que tivesse como destino, especialmente, o emprego na lavoura. O país buscava uma pretensa "civilização". E, nesse novo contexto, não havia espaço para as chamadas "raças inferiores" e para quem, na visão das autoridades, não pudesse contribuir com sua força de trabalho. Ou seja, os ditos mendigos e indigentes, os doentes e os deficientes físicos.
Por fim, é preciso citar as condições estabelecidas para a disponibilização de passagem gratuita ou reduzida para os migrantes que escolhessem o Brasil como destino. Esse tipo de subsídio foi amplamente utilizado no país, seja pelo governo federal ou pelos governos estaduais, como estratégia para atrair mão de obra estrangeira. Muitas vezes, a exigência para a concessão do subsídio repousava em famílias com certo número de membros com determinadas idades. Mais do que isso, o desejo era por famílias de agricultores. Em alguns casos, as pessoas que ansiavam por migrar ao Brasil e não se enquadravam nessas categorias tentavam burlar o sistema para conseguir uma passagem gratuita ou, pelo menos, mais barata. Com esse intuito, muitos migrantes se indicavam como agricultores, quando na verdade exerciam outras profissões em seus países de origem; daí também a produção de passaportes falsos, principalmente de pessoas que não constituíam famílias, mas planejavam parecer uma.
A partir desses tópicos, a ideia de que o Brasil foi um país de portas abertas durante a "Grande Imigração", onde todo mundo era bem-vindo, se desmantela. Aliás, será que o Brasil foi, em algum período de sua história, um país de portas abertas? Essa é uma das reflexões pretendidas por essa série.
Referências bibliográficas
[1] Decreto nº 528, 28 de junho de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-528-28-junho-1890-506935-publicacaooriginal-1-pe.html.
[2] FRAZÃO, M. Samira. Política (i)migratória brasileira e a construção de um perfil de imigrante desejado: lugar de memória e impasses. Antíteses, v. 10, n. 20, p. 1103-1128, jun./dez. 2017.
[3] Idem.
[4] SCHWARCZ, Lilia. A redenção de Cam. 2020 (6m41s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v3mtwEoBZJM. Acesso em 14/10/2020.
[5] Lei nº 97, 5 de outubro de 1892. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-97-5-outubro-1892-541345-publicacaooriginal-44841-pl.html#:~:text=Art.,para%20trabalhos%20de%20qualquer%20industria.
[6] FILHO, A. Manoel. Da xenofobia pintada de amarelo ao 'quase silêncio' dos intelectuais. Jornal da Unicamp, 16 a 22 de junho de 2008. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/jornalPDF/ju399pag03.pdf.
[7] Blog do Museu da Imigração. Hospedaria em Quarentena: Hospedaria do Brás em tempos do cólera. Disponível em: http://www.museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/hospedaria-em-quarentena-hospedaria-do-bras-em-tempos-do-colera.