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Hospedaria em Quarentena: A vez do Arsenal da Esperança
No edifício em que funcionou a Hospedaria de Imigrantes do Brás existem duas instituições: o Museu da Imigração e o Arsenal da Esperança. Para encerrar a série Hospedaria em Quarentena, convidamos o Pe. Simone Bernardi, um dos colaboradores do Arsenal, para narrar as experiências e ações tomadas pela casa de acolhida durante a pandemia do novo Coronavírus. Agradecemos ao nosso vizinho, com quem compartilhamos histórias e que nos ajuda sempre a refletir melhor sobre um tema tão caro à Hospedaria de Imigrantes e tão necessário em nossos dias: a acolhida.
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A preciosa coleção de informações, documentos e histórias contida na série "Hospedaria em Quarentena" ‒ que se fecha hoje com esta contribuição inédita ‒ mostra, mais uma vez, como a história, e as múltiplas histórias, deste lugar são continuamente entrelaçadas à história maior da cidade, do estado e do Brasil inteiro.
Talvez o que muitos não saibam é que no espaço da antiga Hospedaria, além do Museu da Imigração (1993), há também outra instituição, chamada Arsenal da Esperança (1996), que, de certa forma, dá continuidade ao que historicamente foi feito neste lugar: acolher pessoas, oferecendo um lugar para repousar, se alimentar e se inserir na sociedade, sob vários pontos de vista. As duas instituições, nascidas mais ou menos no mesmo período, são o último elo de um longo percurso de mais de um século.
Por que "Arsenal da Esperança"?
Nos anos 1960, um jovem casal italiano, Ernesto e Maria Olivero, decidiu dedicar a própria vida para realizar o sonho de eliminar a fome no mundo, promovendo e realizando ações de justiça e paz. Para fazer isso, pediram e obtiveram, com um grupo de jovens, o histórico local em que, por séculos, funcionou o arsenal militar na cidade de Turim, abandonado depois da Segunda Guerra Mundial. Junto a muitíssimos voluntários, eles restauraram e transformaram aquela antiga fábrica de armas naquilo que hoje é o "Arsenal da Paz", uma casa aberta ao mundo e à acolhida de pessoas em dificuldade, transformada também em lugar de cultura, diálogo e formação.
Em 1996, a iniciativa do Arsenal da Paz atravessou o oceano e, mais uma vez, encontrou casa em um edifício histórico e em grande parte abandonado, não mais uma fábrica, mas justamente a antiga Hospedaria do Brás, porto de esperança para milhões de imigrantes ‒ daí o nome "Arsenal da Esperança".
Graças ao empenho de missionários e voluntários italianos e brasileiros, os mesmos locais da Hospedaria que tinham hospedado milhões de imigrantes voltaram a funcionar para acolher as pessoas "em situação de rua", jovens e adultos que sofrem pela falta de trabalho, casa, alimentação, saúde e família. Até hoje, no Arsenal da Esperança já foram acolhidas mais de 63.000 pessoas, 1.200 por dia.
A hospitalidade de ontem e de hoje
Acolher e oferecer hospitalidade ao outro representa um desafio difícil e fascinante, sempre novo, mas feito também de situações humanas e sociais que tendem a se repetir ao longo do tempo. Nesse sentido, é interessante observar como a antiga Hospedaria já acolhera, no passado, uma categoria de pessoas com características semelhantes às da população acolhida hoje no Arsenal da Esperança e, por sua vez, como o Arsenal da Esperança está acolhendo pessoas que enfrentam situações de várias formas semelhantes àquelas em que se encontravam os imigrantes da antiga Hospedaria.
Por exemplo, é interessante citar um fato, ocorrido em 1926, quando um grupo de homens e mulheres "em situação de rua" foram levados à Hospedaria e colocados em duas áreas separadas. Segundo os jornais da época, as autoridades estavam preocupadas com a situação de "mendicância" na capital paulista e, sendo um grupo grande, a Hospedaria acabou por ser o lugar ideal para hospedá-los[1]. Por sua vez, o Arsenal da Esperança está acolhendo, sobretudo nos últimos anos, centenas de homens que chegam ao Brasil como imigrantes ou refugiados.
Apesar dessas possíveis conexões entre passado e presente, ninguém, provavelmente, poderia imaginar que um dia o Arsenal da Esperança acabaria reativando também a antiga função sanitária deste local, que depois de tanto tempo estava adormecida: a quarentena.
Arsenal em quarentena
A emergência do novo Coronavírus fez com que fosse criado um vínculo de continuidade também entre a importante função sanitária realizada pela Hospedaria no passado ‒ no enfrentamento de diversas epidemias e pandemias ‒ e a Hospedaria de hoje que, por meio do Arsenal da Esperança, precisou responder diretamente às demandas dramáticas e urgentes trazidas pela atual pandemia.
Quando os responsáveis pelo Arsenal souberam do primeiro caso confirmado de COVID-19 em São Paulo, tornou-se imediatamente evidente que os seus hóspedes ‒ que normalmente passam ali meio período ‒ não poderiam respeitar sequer a primeira das recomendações da OMS, a de permanecer em casa, simplesmente porque eles não tinham uma casa onde pudessem ficar o dia inteiro. E, consequentemente, também não poderiam seguir a segunda recomendação, a de lavar bem as mãos: talvez alguns deles recebessem um sabonete, graças à distribuição de um grupo organizado, mas para uma pessoa em situação de rua o acesso à água é dificílimo. Seria também muito complicado seguir as medidas de distanciamento social porque os pontos de distribuição gratuita de alimento podem criar aglomerações. As recomendações que o mundo estava dando para se defender do novo Coronavírus eram dirigidas, de fato, a determinadas classes sociais. De certo nível para baixo, porém, elas eram frequentemente impraticáveis. A doença é comum a todos, mas a prevenção e o acesso aos cuidados médicos não.
Como no passado ‒ diante daquele risco imprevisto de uma epidemia que inaugurou oficialmente a Hospedaria de Imigrantes ‒ também os responsáveis pelo Arsenal da Esperança se viram diante de um dilema imprevisto: basear-se na compaixão, que sempre moveu os projetos desta casa, ou fechar temporariamente o serviço de acolhida para não correr o risco de que a grande casa se tornasse uma "bomba biológica" de difusão do vírus?
Eis a decisão: transformar o Arsenal da Esperança em uma quarentena, 24 horas por dia, sete dias por semana. Em 23 de março de 2020, enquanto a longa fila de 1.200 hóspedes entrava, assistentes sociais e educadores os reuniam em grupos: "Senhores, para tentarmos nos proteger do contágio, a partir de hoje quem entrar deve permanecer aqui por tempo indeterminado. As autoridades de saúde dizem que o novo Coronavírus é uma ameaça para a vida e, portanto, a melhor coisa a fazer é ficar em casa, dia e noite dentro do Arsenal".
Mais de mil pessoas ficaram. Literalmente um povo. O Arsenal, mesmo grande, precisou se reinventar, transformar, mudar o ritmo para permitir que centenas de homens ‒ que normalmente passam o dia como "nômades urbanos" ‒ se estabelecessem em um lugar, comessem, dormissem, cuidassem da higiene pessoal e de tantas outras questões que agora eram de fundamental importância.
Do dia 23 de março até hoje, a direção do Arsenal empregou todos os recursos para garantir a refeição extra aos hóspedes e a execução de uma longa série de estruturas e atividades para transcorrer o dia, criando as condições para que a quarentena pudesse durar: montagem de grandes tendas para garantir ambientes cobertos e ventilados, salas de encontro transformadas em depósitos de doações, locais externos de triagem para os assistentes sociais e demais funcionários, preparação e distribuição de mais de 180.000 refeições (entre café da manhã, almoço e jantar), entre outras.
Um esforço enorme que pediu e recebeu a solidariedade e ajuda concreta de dezenas de pessoas, associações, organizações sociais e grupos de solidariedade que forneceram ao Arsenal, e aos seus habitantes, gêneros alimentares básicos, kits de higiene pessoal e produtos de limpeza. Um sinal positivo e encorajador de uma sociedade civil que, além de ajudar, acabou desenvolvendo também um significativo papel de "ponte entre mundos separados" dentro da mesma cidade.
Passaram-se mais de 90 dias do início desta, em certo sentido, inédita "quarentena em massa". O balanço até agora é o de nenhum quadro grave de saúde e nenhum caso confirmado de COVID-19. Ninguém, nem mesmo o Arsenal, está em condições de prever como essa história irá terminar, mas é possível tirar uma conclusão, ainda que provisória: talvez possamos dizer que, diante de um problema, principalmente se ele tem o rosto de uma pessoa ou de uma comunidade em dificuldade, não basta oferecer "alguma coisa", uma solução só emergencial; é preciso dar o melhor, procurando uma série de soluções concretas com fidelidade e responsabilidade, no serviço desinteressado ao bem comum.
Esses meses de "Arsenal em quarentena" demonstraram que, se certa solidariedade é possível entre pessoas que vêm da rua, algumas de situações de violência e de marginalidade muito grandes, se é possível conviver em mil pessoas mantendo uma harmonia, então isso é possível também para tantas outras situações. A solidariedade salva, a solidariedade quebra o isolamento, não só agora em que devemos nos proteger de um novo inimigo, mas justamente porque o maior inimigo é o fato de estarmos isolados e indiferentes em uma realidade em que cada um pensa só em si mesmo.
Esse tempo de quarentena é um patrimônio que não se perde, que deve conseguir não apenas nos proteger neste momento, enquanto a pandemia ainda não terminou, mas que pode fazer o mundo mudar de verdade.
Referências bibliográficas
[1] Correio Paulistano, 1926.
Foto da chamada por Luca Meola.