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Hospedaria em Quarentena: Um patrimônio da história da saúde pública em São Paulo
No dia 8 de junho de 1925, a Sociedade Brasileira de Biologia e Higiene se reuniu em São Paulo para discutir algumas questões relativas à febre tifoide. Entre os assuntos debatidos estava a Hospedaria de Imigrantes do Brás, mais precisamente as dificuldades que o diretor da instituição teve em controlar o fluxo de entradas de migrantes no edifício. Isso ocorreu em razão de determinações provocadas pela vacinação contra a febre tifoide, que exigia um número mínimo de dias de espera para a aplicação. Chamou a atenção dos presentes o fato da superlotação da Hospedaria acontecer com apenas duas levas de migrantes (não se sabe o número exato), e acrescentaram que "fosse época de imigração intensa (o que não se está verificando), e não haveria acomodação para todos os desembarcados, tornando-se, então, preciso retê-los no porto de Santos"[1] .
Ao longo das publicações da série Hospedaria em Quarentena, pudemos observar que, desde o início do funcionamento do edifício, o controle das epidemias e a vigilância sanitária eram serviços essenciais. Evidentemente isso exigia do governo um investimento tanto em equipamentos quanto em funcionários responsáveis pelas tarefas médico-sanitárias. Quem eram essas pessoas e qual era o volume de trabalho delas?
Em 1925, durante a crise mencionada, o médico da Hospedaria era o doutor Pedro Nacarato. Depois de prestar serviços médicos na Assistência Policial de 1912 a 1923, Nacarato foi o responsável pelo tratamento dos migrantes por, pelo menos, dez anos. Sabemos que ele fazia aniversário no dia 14 de fevereiro. O jornal Correio Paulistano publicava as felicitações de algumas autoridades para o doutor; ou seja, ele – possivelmente – possuía certa influência na capital. Ainda assim, em 1929, sua equipe na Hospedaria do Brás era formada, segundo Relatório da Secretaria de Agricultura, por somente sete funcionários (ele incluso):
“(...) a Enfermaria teve, durante o anno, (...) os seguintes vencimentos mensaes:
1 médico, 1:600$000
1 Pharmaceutico, 750$000
1 Parteira, 400$000
1 Enfermeira, 300$000
1 Servente, 250$000
1 Ajudante, 180$000
1 Creado, 150$00” [2].
Em primeiro lugar, é interessante notar alguns aspectos como a diferença salarial e as demarcações de gênero nas profissões – no caso médico e farmacêutico, parteira e enfermeira. Destacam-se também as ações desenvolvidas, anualmente, por esses profissionais: centenas de internações e curativos, algumas operações, milhares de consultas, receitas fornecidas e vacinações. Em 1929, por exemplo, foram vacinadas mais de 33 mil pessoas na Hospedaria, ou seja, pouco mais de 90 por dia. Na imagem abaixo, é possível ver uma tabela com esses números para o período 1917-1929:
Claro que os médicos eram os maiores responsáveis pela gestão de todos esses trabalhos. Com algumas pesquisas, conseguimos elaborar uma tabela com os nomes de alguns deles, especialmente nas três primeiras décadas do século XX. Alguns são mais conhecidos, como o Doutor Arnaldo Vieira de Carvalho – diretor da Santa Casa e fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo – e o Doutor Marcos de Oliveira Arruda, um dos médicos do exército brasileiro na Guerra do Paraguai e Inspetor Geral de Higiene em São Paulo[3]. A relação desses profissionais pode ser vista na tabela abaixo:
Médicos da Hospedaria de Imigrantes do Brás (1887 – 1935)
(com possíveis lacunas entre 1889 e 1904)
A Hospedaria de Imigrantes do Brás acolheu migrantes internacionais, nacionais[4], repatriados[5], prisioneiros[6], estudantes[7], homens e mulheres em situação de vulnerabilidade social[8], enfermos e diversos profissionais da saúde. Na exposição de longa duração do Museu da Imigração – "Migrar: Experiências, Memórias e Identidades" – é possível observar alguns objetos relacionados à prática da medicina: seringas, agulhas, tesouras cirúrgicas, bisturis, aparelhos ginecológicos, oftalmológicos, maletas médicas, cadeira de rodas, biombo hospitalar, prensa para fazer comprimido, entre outros. Tais objetos pertenceram à Hospedaria ou foram doados para a constituição do acervo museológico da instituição. De todo modo, a partir deles, podemos refletir melhor sobre a história da imigração em São Paulo, da Hospedaria de Imigrantes do Brás e suas relações com o desenvolvimento da saúde pública no Brasil.
Na Hospedaria do Brás, pessoas faleceram, nasceram, ficaram doentes, foram curadas, permaneceram em quarentena e foram imunizadas. Quantas epidemias foram controladas ou deixaram de acontecer em razão dos serviços realizados pelos funcionários da enfermaria e do hospital?
Referências bibliográficas
[1] Jornal Correio Paulistano, 11 de junho de 1925.
[2] Relatório da Secretaria de Agricultura, 1929.
[3] Jornal Correio Paulistano, 05 de agosto de 1909.
[4] A Hospedaria de Imigrantes do Brás, especialmente a partir da década de 1930, recebeu milhares de migrantes brasileiros, principalmente dos estados do nordeste do país.
[5] Algumas pessoas que solicitavam repatriação permaneciam na Hospedaria até a finalização dos trâmites burocráticos e a chegada do navio, em Santos.
[6] No contexto da Revolta Paulista de 1924, a Hospedaria do Brás se transformou em um presídio político.
[7] Durante a Segunda Guerra Mundial, a Hospedaria do Brás foi cedida à aeronáutica. Por alguns anos funcionou no edifício a Escola Técnica de Aviação.
[8] Em 1926, homens e mulheres em situação de rua, na capital paulista, foram acolhidos na Hospedaria.
Foto da chamada: prédio da enfermaria da Hospedaria de Imigrantes do Brás.