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Afinal, o que é o brasileiro? - Assimilação e aculturação
No artigo anterior desta série, vimos os dois princípios que geram a nacionalidade, o ius sanguinis (direito de sangue) e o ius soli (direito de solo). Considerando o caso brasileiro, sugerimos uma primeira resposta para a pergunta geradora dessa temática: Afinal, o brasileiro seria aquele que nasce no Brasil. Embora essa afirmação pareça correta, por se apoiar em um ordenamento jurídico, naquele mesmo texto vimos como o assunto se complica quando nos questionamos sobre se determinadas pessoas (ou grupos) são mesmo reconhecidas como brasileiros e brasileiras, evidenciando uma outra dimensão do problema: a do reconhecimento.
Seguindo esses questionamentos, poderíamos considerar, então, que uma nova pergunta para a nossa série poderia ser "Afinal, quem é reconhecido como brasileiro?", acompanhada da sua forma inversa "Afinal, quem se reconhece como brasileiro?". Essas são questões tão presentes no campo das migrações, que seria possível escolher vários caminhos para trilhar a nossa reflexão. No texto de hoje, apresentaremos o conceito de assimilação. Apesar de não ser disseminado com esse nome no debate público atual, a ideia, assim como o de "aculturação", foi muito utilizada no passado, ressurgindo em certos momentos com roupagens diferentes.
Nesse sentido, é importante que você entenda que não pretendemos, de maneira alguma, retomar essas discussões para defender uma suposta validade científica desses conceitos, já que em inúmeros estudos foi demostrado o seu caráter problemático[1]. No debate acadêmico, está bastante estabelecido que os chamados processos de assimilação e aculturação nunca ocorreram nos moldes como foram pensados no início do século XX. Do ponto de vista da avaliação histórica, por sua vez, nos parece evidente que essas mesmas noções ajudaram a forjar um conjunto de ideias racistas e xenofóbicas, que legitimaram a violência contra diversas populações[3].
Levantar essa discussão nos pareceu justificado na medida em que essa é uma ideia ainda muito presente quando falamos de fenômenos migratórios. Em conversas cotidianas, é recorrente questionamentos sobre se determinados grupos de migrantes se "misturam" ou não com brasileiros; ou se outras comunidades são "fechadas" ou "abertas" à sociedade brasileira, ou, ainda, se podemos contornar ou não as dificuldades de relacionamento com pessoas de determinadas nacionalidades por uma suposta "diferença cultural". Esses são questionamentos comuns quando se trata do tema migratório e que carregam implicações bastante profundas, merecedoras da nossa atenção.
"Afinal, quem é reconhecido e se reconhece como brasileiro?"
Essa pergunta remonta aos estudos clássicos sobre a migração no Brasil, voltados a entender as transformações decorrentes da nova experiência desses sujeitos no país de acolhida[3]. O pressuposto básico era de que esses indivíduos e grupos carregavam certas práticas e maneiras de viver e pensar com a qual estavam acostumados no seu lugar de origem, e de que esses mesmos modos de vida seriam transformados no novo local de morada. Assim, diferentes autores buscaram os indícios dessas mudanças em variados âmbitos da vida cotidiana, como alimentação, língua, disposições psíquicas, formas de moradia, vestuário, arquitetura, modos de associação, paisagismo, hábitos cotidianos e tecnologia[3].
Considerando esses elementos, segundo uma visão que predominou entre 1920 e 1940, seria possível analisar se determinado grupo era mais ou menos assimilado, no sentido de poder constatar o caráter mais ou menos modificado desses pontos e os graus e os ritmos em que isso ocorria. Ainda segundo esses estudos, uma possibilidade era de encontrar alguns casos de "conflitos mentais" em alguns indivíduos, indicativos de tensões decorrentes desse processo de adaptação[1].
Porém, no contexto brasileiro, as discussões sobre a mistura ou não de grupos e indivíduos humanos a partir da noção de raça foi anterior a essa discussão sobre a assimilação. Em um país de colonização portuguesa, onde foram impostos aos povos indígenas e negros uma posição de inferioridade dentro da estrutura social, a noção de assimilação acabou por carregar consigo a ideia de que a junção ("caldeamento", como diziam na época) de diferentes grupos humanos invariavelmente geraria um elemento homogêneo, incorporando um modelo de civilização própria dos países europeus, racialmente identificada enquanto branca. Nos escritos de Abdias do Nascimento, intelectual negro que se debruçou sobre a questão do genocídio do povo negro no Brasil, por exemplo, encontramos observações justamente sobre a questão da assimilação, entendida como uma forma de negar à população negra a sua cultura e ancestralidade própria, compondo um projeto mais geral de apagamento da presença e contribuições dessas pessoas[5].
A partir da ideia de que haveria uma tendência geral de redução biológica e cultural dos diferentes povos, a noção de embranquecimento influenciou, então, as concepções sobre a assimilação no Brasil. Uma especificidade importante de se notar, nesse sentido, é de que quando pensada em termos de migração vindas de outros países, eram os grupos oriundos das chamadas "nações latinas" (Portugal, Espanha, Itália e França), de população majoritariamente branca, predominantemente cristã e consideradas próximas da matriz colonial portuguesa, as imaginadas como mais aptas a se "abrasileirar"[2]. Segundo Syferth[2], essas ideias tiveram efeito tanto na priorização dessas nacionalidades nas políticas migratórias, assim como na desconfiança alimentada durante um longo período sobre algumas nacionalidades, como a alemã e a japonesa, de serem incapazes de se misturar, o que, supostamente, iria resultar no que pejorativamente se chamou "quistos étnicos"[3].
Uma das críticas principais, então, levantadas aos debates do século passado sobre assimilação é o pressuposto de que haveria um processo de homogeneização progressivo e de que, no caso brasileiro, o mesmo levaria a redução dos grupos, que diversamente habitam o território, rumo a um processo de embranquecimento homogeneizador. Hoje, sabemos que as populações indígenas continuam vivas e resistentes, as populações negras não desapareceram e as comunidades migrantes continuam criando, a partir das suas particularidades, novas formas de viver junto às realidades locais aqui encontradas. Frente ao descrédito que o conceito de assimilação acabou por receber, Truzzi[1], por exemplo, propõe que os estudos sobre esses processos deixem de lado o pressuposto de uma inapelável homogeneidade, buscando entender o modo como se constroem os critérios que mantêm os grupos diferentes entre si e como os mesmos fazem uso desse tipo de dinâmica para participar da vida social.
Do ponto de vista dessa discussão, então, a pergunta "Afinal, o que é o brasileiro?” estará sempre em aberto, no sentido de que será necessário observar, a partir de casos concretos, quais condições e a partir de quais elementos há ou não uma identificação enquanto "brasileiros" e "brasileiras". Por outra parte, não se reconhecer enquanto brasileiro não significa, necessariamente, que um indivíduo ou grupo migrante é alheio a determinadas práticas cotidianas vivenciadas aqui. Significa, apenas, que existem razões para essa diferenciação, que precisam ser compreendidas a partir da escuta e do estudo do contexto histórico.
Um aspecto importante que surge das leituras críticas sobre o conceito de assimilação é que as transformações decorrentes da migração não geraram processos de homogeneização, mas, pelo contrário, indicam o surgimento de diversas formas de vínculo, que, em algumas ocasiões, podem se expressar em identidades nacionais, religiosas ou, até mesmo, relacionadas a determinados territórios. A ideia de uma nacionalidade brasileira calcada em um processo de homogeneização, portanto, diz mais respeito às dinâmicas próprias da formação nacional do que às dinâmicas migratórias em si, sendo esse um tema de interesse sobre o qual poderemos refletir em textos futuros aqui na série.
Referências
[1] TRUZZI, Oswaldo. Assimilação ressignificada: novas interpretações de um velho conceito. Dados, v. 55, p. 517-553, 2012.
[2] SEYFERTH, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. Repensando o estado novo. Rio de Janeiro: FGV, p. 199-228, 1999.
[3] TANIGUTI, Gustavo T. O imigrante segundo as ciências sociais brasileiras, 1940-1960. Sociologias, v. 20, p. 142-196, 2018.
[4] SEYFERTH, Giralda. A dimensão cultural da imigração. Revista brasileira de ciências sociais, v. 26, p. 47-62, 2011.
[5] NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016.