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Sobre a identidade e o racismo xenofóbico: uma breve análise a partir de uma vivência migrante indígena
Sandra Morales Mercado*
Desde o momento em que me tornei uma mãe imigrante, duas perguntas têm me acompanhado. A primeira está relacionada à transmissão cultural: como eu ia transmitir à minha filha conhecimento e amor por sua ancestral cultura indígena andina? A segunda mais vinculada à xenofobia: como eu prepararia minha filha para ser forte o suficiente, autoconfiante e orgulhosa de sua identidade e ao mesmo tempo como garantir que, ao enfrentar episódios indesejados de racismo ou exclusão que imigrantes ou filhes de imigrantes vivenciam, ela sofra o mínimo possível? E como fazer que aos poucos seja consciente da necessidade do letramento e da luta contra os preconceitos e racismos que constantemente nos atravessam?
Eu mesma não tive essa consciência étnico racial quando cheguei no Brasil, doze anos atrás. Como pessoa imigrante racializada, passei por três fases que não tinham data de início ou fim, mas eram muito evidentes. A primeira foi a fase de desconhecer a gravidade do problema, brincar comigo mesma, enganando-me constantemente com a ideia de que o Brasil não era um país "tão" xenófobo e racista quanto outros lugares. Pensava que aqui, por existirem diferentes “raças”, etnias e nacionalidades, pela presença do multiculturalismo, pelas conquistas do movimento negro e outras frentes, pelos avanços do pensamento progressista “inclusivo” e pela gentileza das pessoas, tudo isso não poderia ser coerente com uma sociedade racista e xenófoba. Essas ideias e sensações às vezes me levaram a negar ou justificar atitudes racistas de outras pessoas ou a pensar que a sutileza ou a falsa bondade dessas atitudes as tornavam "menos" graves.
Essa primeira fase foi breve, mas existiu. Depois começou um segundo momento: a da plena consciência que foi acompanhada de confusão e dor, pois toda pessoa que passa por situações de racismo, xenofobia ou discriminação carrega em si um sofrimento psíquico. Precisei mergulhar em constantes reflexões internas para entender e processar. Várias pessoas me ajudaram nesse sentido, especialmente mulheres escritoras, artistas e ativistas que passaram histórias de imigração, refúgio e/ou questões de identidade ou racismo. Elas foram a salvação e a resposta.
Então começa a terceira fase: a fase de luta. O que fazer diante do problema? Manter a calma e sofrer em silêncio ou aprender a verbalizar, nomear, explicar e se posicionar diante dessa sociedade xenófoba? A partir de várias frentes: no meu bairro, na escola da minha filha, em coletivos, comunidades de imigrantes, por meio de pequenas ações que, embora possam parecer insuficientes para gerar grandes mudanças, talvez tenham o poder de abrir caminhos para problematizar, refletir e dialogar sobre o mito do “Brasil acolhedor”.
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Quando cheguei na terceira fase, minha filha já era uma criança bicultural, nela dois mundos confluem sem conflitos aparentes. Embora não seja algo exclusivo da minha filha, milhares de famílias vivenciam essa fusão de universos. Explicar como ocorre essa biculturalidade não é simples. Talvez a dificuldade resida no fato de que, pelo menos no meu caso, o processo ocorreu de forma muito natural, revelando que a maternidade vai muito além do biológico, que envolve um processo carregado de situações cotidianas, conscientes e inconscientes, voluntárias e involuntárias, que abrangem a linguagem, a música, as vestimentas, a culinária, a leitura, a arte, as formas de se relacionar, de educar e de amar, entre tantas outras. É interessante pensar que para uma criança ser bicultural (sem conflito), a família que migrou teria que preservar e vivenciar sua cultura de origem no novo lugar que reside, ou pelo menos parte dessa, e também teria que receber com abertura e amor os códigos culturais do país que a acolheu. Existem infinitas formas de preservar e transmitir a própria cultura, aliás, é muito complexo falar de uma única forma ou de um único processo que inclua tudo o que intuitivamente queremos incluir como cultural. Também é importante enfatizar que a transmissão da cultura é um ato coletivo e não individual.
Descobri que, apesar das minhas próprias descobertas, processos e sofrimentos como pessoa racializada, algo que me ajudou muito no meio desses processos todos era que eu já tinha algum letramento e uma aparente clareza identitária vinculada à raça - e não me sentia mal por isso nem a rejeitava, essa identidade estava caracterizada por um apego e reconhecimento da minha ancestralidade indígena andina, até então livre de rótulos e sem o dispositivo racial separatista. Porém, a sociedade brasileira e a paulistana em específico tem lido minhas características fenotípicas e colocou um rótulo sempre de maneira automática, rápida e com frequência de maneira preconceituosa, antes mesmo de falar comigo já me colocam uma nacionalidade, uma ocupação, uma raça e até uma crença religiosa destacando de maneira consciente ou inconsciente o estrangeirismo: “você é o outro não desejado”. Repetidas vezes tenho sido forçada a me colocar numa caixa identitária, entrar numa classificação, nomear ou falar da minha "autodeclaração" racial, sexual, social, política e religiosa. O problema aqui pode radicar na ideia de que o identitarismo é o fechamento da identidade e esse “fechamento” leva consigo o perigo de reduzir a pessoa ao estereótipo, de incrementar a racialização e ser excludente e não necessariamente inclusivo [1].
No meu caso pessoal, tento fugir desses identitarismos, especialmente daqueles utilizados pelas velhas ondas ultra direitistas como a chamada "nacionalidade" que resulta ser a irmã mais nova do racismo [2]. As nações e as fronteiras correspondem a uma era recente e costumam ser militarizadas, definindo territórios, carregando-os sempre de competitividade e ambição. Os discursos nacionalistas frequentemente revelam posturas discriminatórias e atitudes de apropriação cultural, sendo separatistas, alienando os países vizinhos, criminalizando as migrações e gerando tensões entre os povos. Esses discursos, repetidos pelas extremas direitas de uma maneira entusiasta nos últimos anos, buscam também homogeneizar os estados negando a existência de diversas culturas e línguas presentes nos territórios, procurando esconder suas próprias ineficiências para enfrentar os problemas sociais como a delinquência ou a falta de emprego, buscando bodes expiatórios para colocar a culpa destes problemas e reinventando inimigos comuns.
No meu caso como pessoa migrante, depois da nacionalidade como primeiro grupo identitário, em seguida aparece a questão racial: a qual “raça” eu pertenço? Quem sou eu? Ou como muitas vezes ouvia a pergunta direta: “o que você é? Você é uma índia?” com todo peso racista que a pergunta carrega em si mesma. É difícil para as pessoas entender que muitas vezes essa resposta é complexa, entender-se como uma pessoa indígena responde a processos internos fluidos e profundos, e responde também à "classificação" social e racial própria do lugar onde essa leitura é feita. A classificação racial no Brasil é formalmente realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em cinco categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena. A cor da pele é o elemento fundamental para essa classificação, e com isso, eu não me encaixo em nenhuma das quatro primeiras, então normalmente sou lida como indígena e muito provavelmente seria lida da mesma forma em outros países.
No entanto, na minha cidade de origem, não seria lida como tal porque outros marcadores sociais, culturais e físicos entram em jogo. Saindo da cidade onde nasci e chegando à capital do Peru [3], Lima, me aproximo novamente do fenótipo indígena, sendo lida como "provinciana", uma palavra pejorativa que carrega uma mistura de marcadores sociais que incluem “raça”, cor da pele, fenótipo, sotaque e classe social. Zavala explica como a identidade é um fenômeno relacional e sociocultural que emerge e circula nos contextos discursivos locais de interação e não é uma estrutura estável [4].
Neste sentido, se eu voltar ao lugar onde nasci e pensando em aspectos geográficos e culturais, eu seria uma pessoa andina: uma mulher andina. E se fizermos uma breve análise da minha ancestralidade imediata, venho sem dúvida de uma família multirracial. Meu pai se declarava negro (não tenho informações sobre as origens dos meus avós e bisavós paternos), minha mãe se autodeclara branca e minha avó materna repetia que sua família vinha do litoral peruano, demarcando distância dos povos da serra (região dos Andes), de onde vêm os "serranos" (outro termo usado pejorativamente no Peru), sempre querendo se afastar da origem andina.
Meu avô materno era originário de uma comunidade quéchua, meus bisavós maternos eram do Vale Andino de Canchis (cidade de Cusco), falavam quéchua; e apesar de eu não ter crescido com eles e não ter aprendido a falar quéchua, me identifico com essa etnia, com suas diversas manifestações culturais, artísticas, linguísticas e gastronômicas. E essa identificação não é executada deliberadamente, vem do reconhecimento dessas manifestações vivas e presentes em meu ambiente familiar, social e geográfico.
Também me identifico com a história dos povos quéchuas originários provenientes da grande civilização Wari, um dos primeiros grandes impérios da América do Sul que se desenvolveu entre os séculos V e XII d.C. e ocupou o território que hoje corresponde à cidade onde nasci: Arequipa. Essa seria minha ancestralidade histórica. Com tudo isso, essas duas ancestralidades, a imediata e a histórica, as leituras sociais dos lugares onde transito e as classificações formais, fazem de mim uma pessoa "indígena”? Deixarei essa pergunta aqui como uma provocação para refletir sobre e especialmente para analisar a complexidade da resposta. O exercício da dúvida e da reflexão sobre a minha própria identidade surge juntamente com a migração e todos os fenómenos psicossociais que a acompanham, especialmente o racismo, mas também surge na consciência cada vez mais profunda da necessidade de reconhecer e revalorizar aos povos originários, seus conhecimentos e sua existência, nossa existência, inúmeras vezes apagada pelo racismo epistemológico que acaba me anulando também como sujeita e cidadã.
Ainda no século XXI, a colonialidade se manifesta na maneira como as identidades são construídas, as relações de poder são organizadas e o conhecimento é produzido [5]. Para Krenak a única forma de confrontar o pensamento colonial é se opor a ele em nosso cotidiano, em nosso modo de viver, de comer, de andar, de dançar, de conversar e de pensar [6]. Para ele, "se você imitar o discurso do dono, não vai se libertar" [6]. Krenak defende a contracolonialidade como forma de denunciar e combater o pensamento colonial. Mas sacudir a herança colonial não é fácil, requer desconstruir quase tudo o que aprendemos e substituí por epistemologias indígenas anticoloniais, anticapitalistas e antirracistas, e, ao mesmo tempo, abraçar os elementos culturais próprios do processo de miscigenação, aceitando a hibridez e os sincretismos de nossas vidas urbanas. Voltando às classificações identitárias, sou uma pessoa decolonial? Contracolonial? Espero ser, sim.
A identidade não está ancorada em um único lugar e muitas vezes nem tem nome. A identidade é a soma das histórias que a precedem, de tudo o que aprendemos e desaprendemos dentro e fora das nossas migrações e experiências, e também é a soma de todas as maneiras pelas quais somos lidos e classificados. As questões de identidade racial nos atravessam de forma violenta pelo sistema. Mas no meio dessas violências nascem pessoas que falam, que cantam, que gritam, que pintam, que sonham, que escrevem, que agem, que bordam, que tecem, que costuram, que amam e que preservam e transmitem o conhecimento indígena dos nossos povos ao mesmo tempo que lutam contra a discriminação racial. Experimento, então, a arte, a resistência e a luta dessas pessoas como uma experiência e conexão, com plena consciência de que um forte efeito de espelho é despertado entre elas e eu, entre a arte delas e eu, entre os gritos e lutas delas e eu, entre os saberes delas e eu. Assim, espero que quanto mais intenso esse efeito for, melhor conseguirei transmitir essa intensidade para minha filha, e ela para suas filhas e filhos, e as filhas e filhos da Pachamama.
Referências bibliográficas:
[1] BARROS, Douglas. O que é identitarismo. São Paulo: editora Boitempo, 2024.
[2] AGUILAR, Yasnaya. Un nosotrxs sin estado. México: Ediciones OnA 8va edição, 2023.
[3] Lima é a capital do Peru, é uma cidade que está na Costa peruana e onde se centralizou o poder político e econômico do país que estabeleceu uma profunda distância social e racial com as outras cidades do país.
[4] ZAVALA, Virginia y BACK, Michelle. Racismo y Lenguaje. Lima: Fondo editorial, Pontificia Universidad Católica del Perú, 2017.
[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A Colonialidade do Saber: etnocentrismo e ciências sociais–Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
[6] KRENAK, Ailton. Conferência no evento de inauguração da cátedra Darcy Ribeiro: Soberania, Educação e Política, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da Universidade Federal de Minas Gerais, 2024.
Outras referências:
NUÑEZ, Geni. As monoculturas como violação da singularidade. São Paulo: Jornal de Psicanálise, 56 (105), 107-120, 2023.
SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2021.
* Sandra Morales é uma mulher cis gênero, imigrante peruana, descendente de indígenas quechuas. Psicóloga, com mestrado em Psicologia Social e especialização em Psicologia Junguiana, faz parte Associação Junguiana do Brasil com a linha de pesquisa: mitologia andina. Ativista antirracista e pelos direitos dos imigrantes no Brasil. Trabalha como psicoterapeuta e consultora em temas como migração, diversidade, discriminação e relações étnico raciais.
Os textos publicados na série temática não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.