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Entre vãos e devires: O Exercício da Psicologia e a Saúde Mental de Migrantes em meio à Pandemia
Pouco tempo após a deflagração da COVID-19 como uma pandemia global, com o decreto das necessárias medidas de isolamento social em diversos países, pudemos perceber o surgimento de sintomas referendados à saúde mental da população. Para além dos sintomas atribuídos diretamente ao Coronavírus, surgiu um efeito psíquico colateral que afeta a forma como orientamos nossas relações sociais.
O trânsito do vírus nos diferentes continentes e seu impacto devastador em alguns países europeus deixaram registrados nos primeiros meses da pandemia as fotografias ermas e baldias de cidades europeias tradicionalmente turísticas, assim como a cena de uma sociabilidade construída entre as varandas e o mundo virtual. A solidão, o medo, a angústia e a ansiedade logo emergiram como afetos desse cenário de perdas, incertezas e privações, e logo algumas tecnologias de cuidado foram desenvolvidas no mundo ocidentalizado para dar conta de amenizá-los: yoga e meditação virtuais, teleterapias, lives multitemáticas, webinars e toda sorte de atividades remotas.
A chegada do vírus na América Latina trouxe consigo uma inspiração europeizada de como lidar com a crise sanitária, entre lições de insucessos e acertos na forma de administrá-la. Na realidade brasileira, em específico, uma forma peculiar de gestão da pandemia se configura: no âmbito da política, o governo brasileiro se recusa a aderir àquilo que seria relevante importar como exemplo de boas práticas e principais recomendações, adotando uma postura negacionista. Em contrapartida, algumas áreas do saber absorvem de maneira inadvertida os modelos biopolíticos e representações do isolamento gringos, tomando-os como referências para o desenvolvimento de dispositivos de cuidado em saúde mental, desconsiderando as especificidades e mazelas sociais que nesse momento se acentuam e circunscrevem nossa experiência.
Não estamos falando de negar, tal qual o governo brasileiro, a validade e a relevância dos estudos, dispositivos e manuais que referenciam e baseiam as práticas de cuidados em saúde mental internacionalmente, mas de ponderar os limites de algumas importações clínicas, especialmente quando tratamos da saúde mental de migrantes, sob o risco de uma aplicação grotesca e inadequada que estrangula a nossa realidade social numa teoria supostamente "universalizável".
Assim, não deixando de reconhecer a importância das contribuições trazidas por manuais como o da IASC (Inter-Agency Standing Committee) a respeito das considerações sobre a SMAPS (Saúde Mental e Apoio Psicossocial) na pandemia, das intervenções do escopo da psicologia em situações de catástrofe, não desmerecendo o espírito solidário daqueles/as que se disponibilizaram a estar nas linhas de frente do trabalho em saúde mental na pandemia, foi com surpresa e receio que vimos surgir, repentinamente, a iniciativa de diversos grupos para atuar no âmbito da saúde mental da população migrante sem um lastro de experiência prévia de trabalho e conhecimentos necessários para a construção responsável dessa clínica.
Aos psicólogos e trabalhadores da assistência social, caberia então desenvolver um dispositivo de atendimento psicossocial que desse conta de trabalhar no registro do tempo emergencial imposto pela pandemia, sem perder de vista as especificidades da prática clínica com migrantes diante das peculiaridades de um Brasil territorializado pelas diferenças de classe social, raça, gênero e nacionalidade. Poderíamos mapear os efeitos psíquicos da pandemia sob a população migrante desconsiderando a intersecção entre todos esses fatores? Certamente, não.
O risco de criar uma sintomatologia geral dos efeitos do isolamento social sob a saúde mental das pessoas, dispensando uma necessária territorialização e reconhecimento das condições de vulnerabilidade que atravessam de maneiras distintas os diversos grupos populacionais, incorre no equívoco do diagnóstico e, consequentemente, na ineficácia da intervenção. Migrantes não estão isolados em suas varandas particulares cantando o Bella Ciao, pedindo entregas por aplicativo, enquanto esperam pela próxima live. É preciso localizar, na nossa clínica, as coordenadas do grito dos excluídos e saber escutá-lo.
Presumir, a partir da representação idílica do isolamento social, que uma maioria da população migrante no Brasil estaria padecendo dos sofrimentos relativos a uma solidão e, posteriormente, sugerir o estabelecimento de uma maior integração com o mundo virtual, desconsidera o fato de que boa parte dessa população vive em moradias precárias e habitam com muitas pessoas, nem sempre tendo acesso à Internet.
Na realidade concreta, no lugar da solidão temos uma superexposição, a invasão da privacidade que cruza as fronteiras entre o psiquismo e o corpo nas cenas de violência doméstica. Aqui, no lugar da varanda, surge esse "vão" indeterminado que faz os migrantes se questionarem se podem de fato existir em solo brasileiro e gozar dos direitos de um cidadão. Estamos diante da ausência de um projeto de regularização migratória ou da produção de "cidadãos indocumentados" por parte do Estado? É difícil dizer, no próprio português, se "vão" é um espaço ou um discurso baseado num imperativo social que expulsa, mesmo sem palavras, o migrante do território brasileiro.
Não podemos mais aceitar que os migrantes que atendemos sejam atravessados por esse sentimento de terem sobrevivido "em vão' a essa pandemia ao testemunharem a perda dos seus. É preciso desenvolver um trabalho social a partir da realidade desses sujeitos, articulando o sofrimento social e político aos sintomas e às histórias singulares de cada migrante, valorizando seus próprios saberes, assim como as produções locais de conhecimento. É através das redes, do trabalho multidisciplinar e do fortalecimento do SUS enquanto um projeto político e inclusão social que oferecemos o que há de melhor da nossa própria formação para co-construir espaços de escuta em que esses vãos e desvãos possam ser conjugados a um devir.
Cartilha da Fiocruz para saúde mental de migrantes na pandemia
O lançamento da cartilha Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19, feita por pesquisadores e colaboradores de Atenção Psicossocial e Saúde Mental do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (CEPEDES), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) é um material de referência para as tomadas de decisões diante do COVID-19. A FIOCRUZ é a mais importante instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina, sendo referência em pesquisas na área da saúde pública. O material traz estratégias de cuidado psíquico em situações de pandemia, bem como uma lista de reações comportamentais comuns. Caso as estratégias recomendadas não sejam suficientes para o processo de estabilização emocional, busque auxílio de um profissional de Saúde Mental e Atenção Psicossocial (SMAPS) para receber orientações específicas.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/41690
Andressa Castelli é mestranda no Programa de Psicologia Clínica da USP, onde desenvolve pesquisas no PSOPOL (Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP). É supervisora no Grupo Veredas - Psicanálise e Migração e membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Migrantes e Refugiados. Atualmente, é psicóloga do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC).
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Foto da chamada: Guglielmo Mangiapane. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Conexão Migrante" em branco.
A ocupação "Conexão Migrante" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), para divulgação dos artigos publicados na edição 29 da revista "Conexão Migrante" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.