Blog
Compartilhe
(I) Mobilidade nas Américas e COVID-19: um projeto coletivo transnacional em andamento
"(In)Mobility in the Americas e COVID-19" é um projeto coletivo digital transnacional cujo foco analítico é a tensão entre mobilidade e controle e suas desiguais repercussões espaciais. Em diálogo com a geografia e antropologia da mobilidade e dos estudos críticos de migração e fronteiras, xs pesquisadorxs do projeto concebemos a mobilidade como uma prática social e política incorporada em migrantes e refugiados, adultos e menores, que ocorre de forma desigual e diferenciada nos níveis nacional e transnacional. O controle, por outro lado, concebemos como as formas pelas quais as medidas implantadas, principalmente pelas instituições estatais, para parar, desviar, desacelerar e, também, acelerar a migração se materializam. Como essa tensão inerente ao regime fronteiriço das Américas, alertamos que ela produz imobilizações forçadas e novas formas de mobilidade e que tem efeitos espaciais multicalares do espaço individual – sobre corpos e vidas migrantes – para o espaço nacional e regional.
Localizar a tensão entre mobilidade e controle nas Américas tem, para nós, relevância analítica e política. A formação social desse espaço geográfico é incompreensível sem atender às formas desiguais da mobilidade humana que a moldaram historicamente. Todos os países foram e/ou permanecem emissores e beneficiários de fluxos transnacionais, enquanto outros também se tornaram espaços para o trânsito e retorno voluntário e/ou forçado. Nas Américas, para citar alguns casos notáveis, estão os Estados Unidos e o México, o maior destino migratório e o maior emissor de migrantes do mundo, respectivamente. Está a Colômbia, país com mais deslocados internos e pessoas que precisam de proteção internacional. Está Guatemala, El Salvador e Honduras, países dos quais seus connacionais fogem por causa da violência; ou Venezuela, de onde mais de 5 milhões de venezuelanos emigraram na última década (1999-até o presente). Este continente é atravessado por rotas migratórias que serviram para fazer historicamente o trânsito de latino-americanxs e caribenhxs para os Estados Unidos, seu maior destino migratório. E, na última década, os fluxos extra-continentais atingiram as Américas e a migração intra-regional e os fluxos sul-sul se multiplicaram. A mobilidade no continente hoje é estrelada por deslocamentos internos, deportadxs, solicitantes de asilo, adultos migrantes irregularizados e crianças e adolescentes que emigram sozinhxs ou acompanhados.
Por um lado, o peso dos Estados Unidos tem sido definitivo em delinear a geopolítica do controle para a mobilidade na região. Este é o país que mais endureceu suas políticas migratórias, a que mais detém e deporta migrantes, especialmente Latinxs e Caribenhxs, e o país que transferiu o controle para países terceiros da região. Por outro lado, na última década, os países das Américas se fecharam à questão migratória: o foco mudou dos direitos dos migrantes ao combate à migração irregular e à segurança nacional, ao passo que o discurso violento xenófobo se normalizou nas sociedades receptoras.
O COVID-19, assim, atacou em uma geografia já marcada pela tensão entre mobilidade e controle, uma tensão que assume nuances mais violentas em contextos desiguais. É o caso do nosso continente: a pandemia desnudou a desigualdade estrutural selvagem e não resolvida, desencadeando efeitos sobretudo nas populações mais vulnerabilizadas, sempre racializadas, como aquelas em condição de mobilidade.
Como surge o projeto?
Em meados de março de 2020, os países das Américas se declararam em uma emergência sanitária, fecharam suas fronteiras e entraram em quarentena como primeiras medidas de contenção em resposta à pandemia de COVID-19. Foi nesse contexto que 45 pesquisadores de 19 países da América do Norte, América Central, América do Sul e Caribe, analiticamente, eticamente e politicamente interessados na questão migratória, se reuniram virtualmente para perguntarmos uns aos outros sobre a situação de milhares de migrantes e refugiados no continente.
Embora a pandemia tenha guiado nossa capacidade de etnografar as realidades migratórias, nossa ligação direta com as comunidades de migrantes e refugiados não cessou. Por isso, sabíamos que a chegada do COVID-19 tinha impactado solicitantes de refúgio – regionais e extra-continentais – no meio de seus trâmites formais; famílias migrantes e crianças e adolescentes não acompanhadas em travessias transfronteiriças; detentos em estações de imigração superlotadas ou em voos de deportação; e milhares de migrantes irregularizados em seus empregos precários sem condições de parar de trabalhar para realizarem quarentena. Estávamos cientes de que o fechamento da fronteira viola a possibilidade de refúgio, e que a pandemia exacerbaria o hipernacionalismo reforçando a imagem do estrangeiro como um "fardo público" ou como aquele que incorpora o vírus, elementos que intensificam a xenofobia e o racismo. Nos unimos com a intenção de reparar criticamente nessas e outras repercussões que o COVID-19 está promovendo sobre as vidas migrantes que compõem as Américas.
Os avanços
Decodificar os tempos pandêmicos a partir da chave migratória, ativou esta pesquisa coletiva transnacional. Entre março e maio de 2020, onze equipes nacionais nas quatro regiões do continente, coletaram informações da imprensa sobre esses três temas decorrentes da tensão entre mobilidade e controle: 1) situações de alerta enfrentadas pelas populações migrantes e refugiados; 2) medidas estatais; e 3) respostas sociais à dinâmica migratória. Sistematizar essas informações nos permitiu criar uma análise em duas escalas. A nível nacional, produzimos uma ficha técnica que, além de produzir dados sobre o percentual de pobreza e em torno do padrão migratório nacional, dá conta das particularidades desses três temas em cada um dos países que fazem parte deste projeto.
Ao comparar as informações nacionais, identificamos onze situações comuns ocorrendo em vários locais das Américas: 1) Fechamento de fronteiras e hipervigilância; 2) Suspensão do direito de refúgio; 3) Nacionalismo hiper-seletivo; 4) Espiral de violência ao sul como efeito da terceirização da fronteira dos EUA na região; 5) Multiplicação dos espaços de confinamento e sacrifício humano; 6) Privação de direitos a migrantes irregularizados; 7) Produção do medo como forma de controle social; 8) Migração de retorno; 9) Trabalhadores migrantes, essenciais, mas descartáveis; 10) Crianças e adolescentes migrantes; e, 11) Respostas sociais que contrastam entre lutas de migrantes e a xenofobia. A exacerbação da tensão entre mobilidade e controle durante a pandemia explica em grande parte essas situações em que geramos os primeiros textos reflexivos. A produção desse material em dupla escala nos permitiu criar um arquivo digital que serve como fonte de pesquisa e ensino.
Como um projeto coletivo transnacional, (I)Mobilidade nas Américas busca produzir contra-narrativas digitais sobre quem são os migrantes, quais são as causas de sua mobilidade e imobilidade, e como seus deslocamentos devem ser vistos como uma luta pela justiça migrante. Nosso arquivo digital contém material audiovisual e escrito que reflete nosso compromisso como uma investigação coletiva militante que busca denunciar os efeitos violentos e letais do regime fronteiriço nas Américas e sua exacerbação durante a pandemia. É um arquivo em constante expansão de acordo com o impulso criativo dos envolvidos no projeto e das contingências do contexto.
Desde o lançamento do projeto, em julho de 2020, promovemos 17 conversas virtuais: oito nacionais sobre mobilidade e controle no México, Colômbia, Equador e Brasil; cinco regionais, onde os pesquisadores do projeto discutiram sobre duas das 11 situações comuns de uma visão regional comparativa; três conversas com estudantes e uma Assembleia de Migrantes Latino-Americanos discutindo os efeitos que o excesso de controle e hostilidade social têm sobre suas vidas. Todas as conversas estão disponíveis no canal do nosso projeto no YouTube.
Para provocar o diálogo transnacional, traduzimos o conteúdo digital para inglês e português; e para explicar como a pandemia está sendo ressentida e resistida pela população migrante, criamos a seção Mapa Polifônico. Este mapa inclui mais de 70 vozes migrantes de várias idades, gêneros, nacionalidades, origens étnicas, orientações sexuais, que de várias localidades do continente, explicam a experiência diária da (in)mobilidade, como enfrentam o risco de contágio, burocracia estatal, xenofobia, desemprego; e, ao mesmo tempo, como sua luta pela vida se desenvolve entre solidariedade, sua força e esperança.
Aprofundamos também a dimensão pedagógica do projeto, oferecendo um curso de licenciatura que utiliza o arquivo digital construído para formação de graduação em ciências sociais, realizado durante o primeiro semestre de 2021, em conjunto com o Departamento de Estudos Culturais Comparativos da Universidade de Houston e o Departamento de Estudos Latinos e Caribe da Rutgers University. Além disso, alunos do curso de sociologia da Universidade Central do Equador realizaram suas práticas pré-profissionais dentro do projeto, participando do processo de pesquisa com cada uma das equipes nacionais que fazem parte do projeto e alimentaram a atualização das informações por país. Nestes meses de trabalho, também iniciamos ou participamos de campanhas públicas para a Justiça dos Migrantes, como a rejeição da militarização da fronteira Chile-Peru-Equador-Peru em janeiro de 2021 ou a convocação internacional no Primeiro de Maio para uma luta transnacional de trabalhadores migrantes.
Próximos passos
Nosso projeto vem crescendo. Novos países se somaram e hoje somos 24 países[1] e a rede inicial de pesquisadorxs conta com mais de 70 participantes. Nosso esforço coletivo agora estará centrado em coletar vozes migrantes para expandir o mapa polifônico; na organização mensal de conversas virtuais sobre as onze situações comuns mencionadas e outras que surgirão; e em breve, produzir textos críticos sobre esses temas. Continuar a alimentar o material audiovisual e escrito do arquivo digital existente e em construção é nosso maior propósito. O arquivo digital que construímos serve como fonte de ensino, pesquisa e como uma memória do presente em torno da tensão e controle da mobilidade nas Américas em tempos de pandemia. Um ano após o início deste projeto, a tensão entre mobilidade e controle no continente foi exacerbada e as condições de vida da população migrante se deterioraram rapidamente. Estamos convencidos de que análises regionais comparativas são tremendamente necessárias não apenas para expandir o arquivo digital existente, mas sobretudo para interpretar criticamente os tempos complexos e desafiadores presentes e, assim, contribuir para uma prática que contribua para a busca de justiça social para a população mais empobrecida e vulnerabilizada que cruza as fronteiras das Américas em busca de um lugar digno e seguro para viver.
Soledad Álvarez Velasco é pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais Comparados da Universidade de Houston e co-coordenadora geral do projeto de pesquisa regional "(In) Mobilidade nas Américas e COVID-19". É doutora em geografia humana pela King's College de Londres. A sua pesquisa se centra na migração indocumentada no trânsito global sul-norte e na formação de corredores migratórios através das Américas. Publicou em revistas indexadas como Migration and Society, ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, Journal of Latin American Geography, Sociologías, Estudios Sociológicos y EntreDiversidades. É autora de Frontera sur chiapaneca: el muro humano de la violencia. Uma análise da norma de violência contra migrantes indocumentos em trânsito (UIA, CIESAS, 2016).
Ulla D. Berg é antropóloga e professora associada nos Departamentos de Antropologia e Estudos Latino e Caribenhos da Rutgers University, EUA, onde também dirige o Centro de Estudos Latino-Americanos. É co-coordenadora geral do projeto de pesquisa regional "(In) Mobilidade nas Américas e COVID-19". É autora do livro "Sujetos Móviles: Raza, Migración y Pertenencia en el Perú y los Estados Unidos" (Instituto de Estudios Peruanos, 2016) e co-editora, com Robyn Rodríguez, da antologia "Transnational Citizenship Across the Americas" (Routledge, 2014) e com Karsten Paerregaard do livro "El Quinto Suyo: Transnacionalidad y Formaciones Diaspóricas en la Migración Peruana" (Instituto de Estudios Peruanos, 2005). Também publicou sobre migrações latino-americanas e andinas e sobre a detenção e deportação de migrantes em revistas indexadas como Journal of Ethnic and Migration Studies, Journal of Migration and Human Security, Latin American Perspectives, Latino Studies, Current Anthropology, Cultural Anthropology, Identities, Etnografías Contemporáneas, Iconos, entre outras.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Nota
[1] Os países incluídos no projeto são: na América do Sul, Argentina, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Uruguai e Venezuela; América Central, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala; No Caribe, Haiti, República Dominicana, Cuba e Porto Rico; América do Norte, México, Estados Unidos e Canadá.
Crédito foto da chamada: © David Gustafsson e Cynthia Briones/(In)Movilidad en las Américas y Covid-19. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "I (MOBILIDADE) NAS AMÉRICAS" em branco.
A ocupação "(I) Mobilidade nas Américas" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o projeto de pesquisa regional "(In) Mobilidade nas Américas e COVID-19" para divulgação de artigos inéditos, escritos especialmente para esse espaço. O site do projeto de pesquisa, com todos os textos e materiais multimídia, pode ser consultado neste link. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.