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Mobilidade Humana e Coronavírus: A fronteira social do confinamento e o direito à cidade
Quando imaginaríamos um ano atrás que, em pleno século 21, viveríamos a situação a qual vivemos? Parece mais um filme de ficção científica ou um capítulo do livro "O ensaio sobre a cegueira", do escritor português José Saramago, mas a verdade é que um vírus inicialmente detectado na China espalhou-se pelo mundo atingindo, em escala global, todos os continentes, isolando milhares de pessoas e vitimando tantas outras.
Em consequência da pandemia do novo coronavírus Sars-Cov-2 causador do COVID-19, cidades mundo afora se esvaziam, sem o frenético ir e vir de pessoas e automóveis. A circulação fica restrita aos que trabalham com serviços essenciais, os automóveis cedem passagem para as ambulâncias e carros de polícia e a população passa a ser monitorada pelo smartphone em seu deslocamento ou pela temperatura dos corpos.
Neste pulsar diferente e inédito da vida urbana, nos questionamos quais são os desafios a serem enfrentados daqui por diante? Como será a vida nas cidades? Quais os efeitos para a mobilidade humana? Várias outras perguntas poderíamos fazer, mas iremos nos deter nas próximas linhas nas questões ligadas à mobilidade humana, aos fluxos migratórios e à vida nas cidades.
A mobilidade humana e os fluxos migratórios foram profundamente afetados em diversas escalas a partir do momento em que há maior controle de entrada e saída de pessoas, o fechamento de fronteiras, a intensificação do monitoramento dos deslocamentos pela tecnologia, a diminuição dos meios de transporte, principalmente aéreos, e o aumento do preconceito e da discriminação com os imigrantes, o que ratifica as ações de alguns governos com relação às deportações.
A globalização das décadas de 1980/1990, que defendia a flexibilidade das fronteiras, de acordo com os interesses políticos e econômicos, para os fluxos de mercadorias, financeiros e de pessoas, acabou por restringir cada vez mais a circulação das pessoas neste século. Desde os ataques do onze de setembro de 2001 nos Estados Unidos, as fronteiras passaram a se fechar nos países desenvolvidos do Hemisfério Norte e, agora com a pandemia, os imigrantes e refugiados são vítimas da imobilidade causada pelas medidas sanitárias para conter a disseminação do vírus que não encontra barreira no mundo globalizado.
Mas é importante analisarmos de qual fronteira estamos falando e quais são esses limites.
O termo fronteira é empregado, no senso comum, de várias maneiras a partir do momento que separamos dois lados opostos, como por exemplo: o certo e o errado, o claro e o escuro.
No entanto, cabe ressaltarmos que, para a Geografia, o termo fronteira, comumente utilizado na geopolítica e para delimitação de territórios nacionais, sempre foi objeto de estudo, de diversas interpretações e é uma categoria de análise para inúmeras pesquisas. No momento atual, é interessante lembrarmos de uma das abordagens sobre este conceito, dentre tantas outras elaboradas, recuperada por Braudel (1989) e na qual vamos também nos focar.
Braudel (1989) diz que: "a palavra fronteira vem de um adjetivo (aliás, jamais encontrada no francês como masculino) fronteiro (frontier), fronteira (frontière): ‘que faz frente’. [...] Transformada em substantivo, a palavra supõe obrigatoriamente dois adversários, fronte contra fronte, de ambos os lados de uma linha que os separe". (BRAUDEL, 1989, p.261)[1]
Utilizaremos, no decorrer do texto, a noção de fronteira como limite, de forma metafórica e como o proposto por Braudel (1989).
Desse modo e tendo em vista o cenário da pandemia, podemos dizer que os países e as fronteiras, no sentido de "fronte", estabelecem uma acirrada batalha contra o vírus e impedem que as pessoas circulem de um país a outro e também atravessem os limites internos de seus territórios. As populações, em isolamento social, permanecem em suas casas e tornam-se agentes ativos neste combate imposto pela autoridade dos Estados contra a COVID-19.
No que tange ao Brasil, ao contexto nacional e os seus limites internos do país, podemos dizer que muitos imigrantes e brasileiros, que estão inseridos na informalidade da economia e em trabalhos precários, revelam uma situação também precária de vida em suas moradias, na alimentação e na saúde. Face à pandemia e com o aumento das demissões, arriscam-se para manterem seus empregos ou venderem suas mercadorias, pois é na "fronteira" do isolamento social que se dá a batalha da urgência da vida e sobrevivência.
Quanto às grandes cidades que sempre foram sinônimo de movimento, trânsito de carros e pessoas, comércio, vida cultural e noturna, esvaziam-se e tornam-se sinônimos do medo, da exposição ao vírus e da contaminação. Quem pode fica em casa e protege sua família, mas quem não pode enfrenta os riscos e sai às ruas para o trabalho, em busca de ajuda e alimento.
A mobilidade humana que, antes da pandemia era internacional, fica restrita à escala do local, ao universo da cidade, das necessidades e da urgência de sobrevivência das pessoas. As distâncias dos deslocamentos e do limiar entre o viver e o morrer se encurtam, revelando a face mais cruel da pandemia. A mobilidade humana passa de um direito a ser vista como uma condenação e um suplício para os que não podem se isolar.
Desse modo, o confinamento desenha e limita uma nova "fronteira" social, entre aqueles que podem e possuem situação econômica favorável e condições de emprego que permitem o teletrabalho e aqueles que não possuem condições de permanecer isolados como os profissionais que atuam nos setores essenciais da saúde, na limpeza urbana, na informalidade, no trabalho doméstico e em outros trabalhos precários.
Com base no cenário atual imposto à vida urbana, é possível nos questionarmos como fica o direito à cidade?
O conceito de direito à cidade foi proposto em 1968 pelo sociólogo e filósofo marxista francês Henri Lefebvre e exposto no livro de sua autoria "Le droit à la ville".
A obra de Lefebvre está voltada para análise das consequências da urbanização e como os espaços das cidades, por meio do planejamento urbano, foram cooptados como mercadorias no desenvolvimento do capitalismo, expulsando para a periferia dos grandes centros os trabalhadores e promovendo, assim, discriminação e segregação.
Assim sendo, o direito à cidade defende a não exclusão dos trabalhadores da vida urbana e dos benefícios que a centralidade das cidades oferece. Entretanto, o que vemos é uma imensa e crescente desigualdade a partir do momento em que é no centro das cidades que há a maior concentração de serviços e oferta de trabalho e o seu acesso é privilégio de uma população mais abastada. Desse modo, o valor de troca supera o valor de uso e transforma a cidade numa mercadoria e acirra o confronto da luta de classes.
Harvey (2008)[2] cita que a cidade é o palco de uma "criatividade destrutiva" que segrega e exclui os pobres e os menos favorecidos em prol da construção de um novo urbano.
Em meio à esta segregação, o trabalhador das periferias e a maior parte dos imigrantes se inserem na vida urbana somente por meio do consumo, mesmo que este seja precário. Portanto, ao mesmo tempo que a cidade exclui, ela também integra as pessoas, mas somente como consumidoras.
Harvey (2013) vai além e acrescenta que: "A qualidade da vida urbana virou uma mercadoria. Há uma aura de liberdade de escolha de serviços, lazer e cultura – desde que se tenha dinheiro para pagar". (HARVEY, 2013)[3]
É preciso ressaltar que o acesso à moradia está mediado pela propriedade privada e seu valor de troca e isso sempre fez parte do cotidiano das cidades. No entanto, com a pandemia, a desigualdade de renda, o acesso aos equipamentos urbanos, a xenofobia e a discriminação ficam mais exacerbadas. Não se trata de elementos novos, mas a negação ao direito à cidade se intensifica com a pandemia.
Quanto ao debate do direito à cidade, Lefebvre (2001)[4] propõe que pensemos uma outra cidade que permita transformar as relações sociais e a realidade a qual vivemos da vida urbana e da prática social. Para que isso ocorra, é preciso imaginarmos um conceito de cidade mais inclusiva que garanta o direito à vida urbana, à dignidade da moradia e ao cotidiano das relações e das práticas sociais sem nenhum tipo de discriminação.
Neste momento de pandemia e isolamento, os cidadãos, de um modo geral, independente de sua classe social, estão excluídos da vida urbana. No entanto, temos presenciado no cenário das cidades brasileiras, a população, mais carente e necessitada de recursos para a sobrevivência, aglomerando-se e ocupando as inúmeras filas da Caixa Econômica Federal para o recebimento do auxílio emergencial dado pelo governo ou nas filas das entidades que estão distribuindo alimentos/refeições e produtos de higiene. A desigualdade salta aos olhos e moradores de rua, famílias inteiras e imigrantes deslocam-se de diversos pontos da cidade, principalmente para o centro das grandes cidades, para se manterem vivos.
Nesse sentido e paradoxalmente, a mobilidade humana nas cidades se revela pela precariedade das condições de sobrevivência dos mais vulneráveis que estão impedidos de estarem em isolamento. Quanto aos imigrantes e refugiados, uma nova "fronteira" se estabelece no espaço urbano, além daquela já transposta no momento de chegada ao Brasil, pois vivem em situações limites impostas pelas necessidades básicas da vida cotidiana.
Atualmente, torna-se extremamente importante repensarmos o futuro das nossas cidades, conforme nos sugere Lefebvre (2001), e na forma de torná-las mais inclusivas para todos a partir do momento que a pandemia passar e pudermos circular e nos apropriarmos de seus espaços.
Urge nos unirmos na luta pela transformação da cidade, pela dignidade de vida e para a conquista do direito à habitação e ao uso dos equipamentos urbanos para que as cidades sejam a possibilidade de uma mudança radical, algo que realmente nunca existiu como o local do encontro para todos, da empatia, da diversidade, das relações sociais, da festa, do cotidiano e do lazer, onde o valor de uso prevaleça sobre o valor de troca e que a mobilidade humana possa enfim se restabelecer.
Cabe lembrarmos que os casos de contaminação e de mortes crescem diariamente no Brasil, mas o vírus tende a acometer com maior facilidade os mais vulneráveis que residem do lado mais fraco da "fronteira" desenhada pela imensa desigualdade social presente em nosso país.
Entretanto, temos presenciado inúmeras ações de solidariedade da sociedade civil e das entidades que visam ajudar a população carente (moradores de rua, desempregados, imigrantes e refugiados) e isso nos faz acender a chama da esperança e união pela luta em prol de um futuro melhor e mais humano para as nossas cidades onde todos, independente de raça, cor e condição social, possam se reencontrar incluídos dignamente na vida urbana.
Priscilla Pachi é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (PPGH – USP), mestra em Geografia (USP) e graduada em Geografia (USP) e Turismo (Unibero). Interculturalista e voluntária em treinamentos interculturais para imigrantes e refugiados.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] BRAUDEL,F. A identidade da França: espaço e história. Rio de Janeiro, Globo, 1989.
[2] HARVEY, D. A liberdade da cidade. In: Revista Urbânia 3. São Paulo, Pressa, 2008.
[3] HARVEY, D. O direito à cidade. REVISTA PIAUÍ. EDIÇÃO 82 . JULHO/2013. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-direito-a-cidade/. Acesso em: 15 de maio de 2020.
[4] LEFEBVRE, HENRI. O direito à cidade. São Paulo, Centauro, 2001.
Crédito da foto da chamada: André Conti