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![Obra do artista Eduardo Kobra, que ilustra crianças de diferentes nacionalidades e religiões, com máscaras simbolizando essas referências](https://museudaimigracao.org.br/uploads/blog/materias/foto-chamada-26-08-2020-15-46.png)
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Mobilidade Humana e Coronavírus: Migração e Pandemia - Omissões e oportunidades no combate à COVID-19
Passados cinco meses do início da pandemia provocada pelo novo Coronavírus, é possível vislumbrar um cenário desolador de mortes e destruição econômica no Brasil. Embora nenhum país do mundo tenha passado incólume pela pandemia, podemos afirmar que a extensão de seus impactos na saúde e nas condições gerais de vida da população é também resultado direto das decisões políticas que os governos têm tomado para mitigar esses efeitos, com mais ou menos compromisso em preservar a vida das pessoas. A pandemia é a demonstração trágica do quanto a política determina questões no âmbito da saúde pública, muito além dos meros fatores biológicos ou dos louváveis avanços tecnológicos. Considerando os movimentos migratórios como realidade, em lugar de julgá-los, também percebemos como política a decisão de um Estado e de seus governantes de oferecer ou não as condições para preservar o bem-estar dos cidadãos que habitam em seu território, independentemente de seu status social ou local de origem. É por isso que, por todo o mundo, mesmo antes do alastramento da COVID-19, era previsível que as condições de saúde dos migrantes – especialmente as dos racializados – estivessem, em princípio, mais vulneráveis que as da população em geral, posto que com ou sem pandemia, já o eram antes.
Há algum tempo, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), todos integrantes do sistema das Nações Unidas, reconhecem que a migração, em suas diferentes fases (origem, trânsito e destino), influi diretamente no que se convenciona chamar determinantes sociais da saúde, isto é, as condições de vida e trabalho que afetam a saúde dos indivíduos e, consequentemente, acarretam em desigualdade e iniquidade entre diferentes grupos sociais. Além dos fatores individuais relacionados à idade, ao gênero, e ao estilo de vida, alguns aspectos referentes ao contexto social mais amplo interferem profundamente nas condições de saúde de migrantes, geralmente tornando-as mais suscetíveis a riscos de adoecimento. A maioria dos migrantes, em que pese a heterogeneidade de suas trajetórias, enfrentam um conjunto de barreiras de toda ordem – jurídicas, econômicas e culturais – que prejudicam seu bem-estar físico e mental. No atual contexto da pandemia, esses riscos se exacerbam e os afligem desproporcionalmente, de modo que uma resposta efetiva aos efeitos da pandemia não pode prescindir de uma atenção particular às especificidades dessa população.
No Brasil, onde o número oficial de vítimas fatais do Coronavírus deve superar os cem mil e se estimam as infecções em milhões de pessoas, a primeira grande falha que podemos atribuir ao Estado brasileiro é a ausência de informações detalhadas a respeito da situação da população de migrantes internacionais no país. A mera inclusão da informação de nacionalidade nos formulários de saúde, que alimentam as bases de dados do SUS, poderia já representar um avanço nessa direção, uma vez que permitiria indicar se cidadãos de outros países residentes no Brasil têm sido desproporcionalmente afetados pela doença e, por conseguinte, as causas dessa eventual disparidade, bem como as políticas necessárias para mitigá-la. Apesar de reiteradas iniciativas de associações e migrantes, além de uma ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), que requerem a inclusão deste dado nos formulários na pasta da saúde, não houve até o momento qualquer reação do Poder Público em nenhuma das esferas federativas no sentido de atender a demanda. Por mais que o SUS se oriente pelo princípio da universalidade do atendimento, sem distinções de origem ou status migratório do público atendido, os governos não podem ignorar a iniquidade que pode decorrer das inúmeras barreiras que os migrantes enfrentam na busca de tratamentos de saúde adequados.
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A ausência de dados específicos sobre os impactos da COVID-19 entre os migrantes no Brasil obstrui o reconhecimento sobre a clivagem que a doença provoca por onde passa. Em países como França, Reino Unido e Estados Unidos, os primeiros levantamentos sobre as infecções e mortes derivadas do Coronavírus já demonstraram que a probabilidade de contágio e de óbitos entre imigrantes, sobretudo os racializados, são superiores ao risco enfrentado por pessoas brancas. Nos EUA, as taxas de contágio entre latinos e negros foi cerca do triplo daquelas dos brancos. Na França, as mortes de imigrantes negros dobraram no pico da doença naquele país, enquanto no Reino Unido os chamados "BAME" (negros e minorias étnicas, da sigla em inglês) morreram proporcionalmente mais da doença do que britânicos brancos. No Brasil, os dados de um estudo em maio já confirmaram a tendência da maior letalidade entre negros (55%) em relação aos brancos (37%). Se admitimos que fatores como maior precariedade laboral e habitacional e a prevalência de doenças que agravam o quadro da COVID-19 explicam uma mortalidade mais elevada da doença, particularmente entre os não-brancos, podemos inferir que os impactos entre imigrantes não-brancos em condições similares podem também ser desproporcionais. Infelizmente, sem a coleta das informações de nacionalidade entre as vítimas, permanecemos apenas no campo das suposições e tão mais distantes de atenuar essas desigualdades.
Um outro aspecto fundamental da resposta brasileira, a distribuição do auxílio emergencial para as faixas de renda mais baixas da população, também apresentou falhas inadmissíveis, que seguem expondo a população como um todo a riscos desnecessários de contágio. O calendário errático de liberação das parcelas do auxílio e os incontáveis casos de atraso e erros nos canais virtuais, além da própria dificuldade em realizar o cadastro para obter o auxílio, que pressupunha a regularização do Cadastro de Pessoa Física (CPF) do beneficiário, contribuíram para tornar o benefício inatingível para muitas pessoas, particularmente imigrantes. Dados recentes apontam que quase sessenta mil deles solicitaram ou atualizaram seu CPF junto à Receita Federal, motivados pela busca ao auxílio. Ainda assim, é notória a disparidade de acesso entre as nacionalidades latino-americanas e europeias e a ausência de solicitações de cidadãos de países africanos, o que sugere uma capacidade de alcance muito limitada do benefício entre os migrantes de fluxos historicamente mais recentes no país e com um perfil socioeconômico mais precário. A se confirmar a distorção do acesso ao auxílio entre os migrantes, destaca-se ainda mais o quanto a medida, já paliativa em sua origem, não alcançou quem mais precisaria dela.
Uma política ineficaz de assistência econômica apenas contribui para acirrar ainda mais a precarização do trabalho, que já antes da pandemia afetava particularmente migrantes nas grandes cidades. A diminuição drástica da demanda do consumo, motivada pelo distanciamento, já ameaçava uma boa parte dos empregos em geral. No setor têxtil, em particular, onde atuam muitos migrantes sul-americanos na cidade de São Paulo, a grande oferta de mão-de-obra abriu caminho para a ultra-exploração das cadeias de produção dos próprios equipamentos de proteção individual antiCovid, na base da qual encontram-se famílias inteiras sem nenhum poder de negociação e barganha em relação ao valor do que produzem. A pulverização das oficinas, a baixa fiscalização e a vulnerabilidade econômica dos trabalhadores, todos já presentes antes da COVID-19, tornam-se os componentes de um ciclo desumano de precarização, cujo resultado mais previsível é elevar ainda mais os riscos de saúde dos imigrantes. Em meio a uma pandemia, excluir os migrantes das medidas de saúde pública corresponde a condenar toda a sociedade a riscos desnecessários e evitáveis de contágio, além de corroborar a injustiça que o próprio sistema econômico já impõe cotidianamente à maioria da população.
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As dificuldades impostas pelo contexto pandêmico não se limitam aos migrantes e refugiados já residentes no território brasileiro. Seguindo as tendências internacionais de restrição à circulação internacional para a contenção do novo Coronavírus, o Governo Federal brasileiro publicou uma portaria em maio (nº 255/2020), em que consolidava o controle da entrada no país. No entanto, a normativa se servia do argumento em favor da saúde pública para infligir discriminação expressa contra cidadãos venezuelanos que, mesmo com a residência concedida no Brasil, não poderiam retornar ao país. Não bastasse o teor discriminatório em flagrante contradição com a própria Constituição, a Portaria nº 255, na prática, vedou formalmente a possibilidade de solicitação de refúgio de venezuelanos, mesmo reconhecida a situação de graves violações de direitos humanos no país vizinho. Os efeitos da norma infralegal foram prorrogados seletivamente no fim de julho por mais trinta dias, já que se liberou a chegada de turistas internacionais por via aérea, enquanto se mantiveram os controles sobre a entrada dos venezuelanos. Embora possua caráter alegadamente provisório, a norma parece integrar uma estratégia comum a governos extremistas em períodos extraordinários, qual seja, violar discricionariamente direitos adquiridos, enquanto caminha no sentido de criminalizar as migrações pela mobilização de uma base ideológica sedenta por supostos inimigos externos.
O mesmo substrato ideológico tacanho dessas restrições legislativas pode explicar a enorme resistência de alguns setores da sociedade brasileira à contratação de profissionais da saúde com diplomas estrangeiros, entre eles, migrantes internacionais. Em meio a uma crise de saúde pública mundial sem precedentes e uma resposta absolutamente fragmentária e descoordenada por parte da esfera federal, prefeitos e governadores de diferentes pontos do país, em particular do Norte e Nordeste, têm tentado obter o respaldo judicial para contratar médicos formados no exterior. Esse esforço, em todo caso emergencial no combate à COVID-19, esbarra na postura corporativista dos conselhos de medicina que, a exemplo do que ocorreu à época da implementação do programa Mais Médicos, opõem-se à presença de profissionais com diplomas estrangeiros. Enquanto isso, as regiões mais pobres, no interior e nas zonas metropolitanas, padecem a carência de médicos brasileiros, em geral desinteressados em atuar nesses territórios. O próprio Governo Federal foi compelido pelas circunstâncias da pandemia a reabsorver centenas de médicos cubanos ao Mais Médicos, que remanesciam do contingente que deixou o país após o rompimento do acordo com Cuba. Trata-se de um exemplo cristalino do quanto os migrantes internacionais podem contribuir para o bem-estar do país que os acolhe, mesmo que de forma estritamente pragmática, sobretudo em momentos de emergência social, como o atual.
A excepcionalidade do momento pode servir também de oportunidade não apenas para profissionais de saúde, mas inclusive para um conjunto muito maior da população imigrante no Brasil, por meio da regularização de sua situação migratória. A indocumentação determina a vulnerabilidade da saúde dos migrantes, na medida em que os afasta dos serviços públicos de todo tipo e lhes retira as oportunidades de obter melhores condições de formação e trabalho. Por isso, a pandemia legitima ainda mais a demanda pela regularização massiva de migrantes residentes no Brasil, materializada pelo Projeto de Lei 2699/2020, que tramita na Câmara dos Deputados. Com base no princípio da acolhida humanitária, o PL institui a autorização de residência ao solicitante, independentemente de sua situação migratória até o início da vigência da lei. Endossado por inúmeras organizações da sociedade civil, a aprovação do PL representaria um passo a mais na consolidação dos direitos de uma parcela da população completamente invisível às políticas públicas, o que reforça o próprio intuito da proteção da saúde pública. Os exemplos positivos de Portugal, que deferiu todas as solicitações pendentes de regularização de imigrantes em março, e Itália, que em maio abriu caminho ao mesmo processo para mais de 500 mil trabalhadores do setor agrícola e de cuidados, como forma de enfrentar as consequências da pandemia no país, precedem essa iniciativa e apontam uma política viável e desejável.
Idealmente, a regularização não serve apenas para contemplar os interesses econômicos de uma sociedade, porém deve pavimentar o caminho para o reconhecimento da dignidade humana dos migrantes e suas famílias. A pandemia escancara as desigualdades e, a exemplo das catástrofes naturais, não atinge a todos da mesma forma, apesar de pertencermos à mesma espécie. Na verdade, ela vem sublinhar as fronteiras políticas, econômicas e sociais que historicamente se erigiram para que se realizassem projetos de poder de uns poucos sobre a maioria. Não é um acaso que as cadeias produtivas capitalistas se servem, em suas fundações, da exploração da mão-de-obra precarizada, documentada ou não, para manter os "mercados" aquecidos. Nós podemos e devemos aproveitar a ocasião para erodir essas fronteiras, mesmo que nos moldes políticos do nosso tempo. A gravidade da pandemia acentua o papel constitutivo da migração no bem-estar de todos, se o fenômeno for tratado como parte da solução dos problemas, e não sua causa.
Jameson Martins é doutorando do Programa de Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP-USP). Pesquisa as políticas de saúde pública dirigidas a migrantes internacionais na cidade de São Paulo.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Foto da chamada: Obra "Coexistência" do artista Eduardo Kobra, que generosamente cedeu autorização para ilustrar essa publicação. Para mais informações: https://www.eduardokobra.com/shop/.