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Mobilidade Humana e Coronavírus: Mobilidade, confinamento e migração na pandemia
A pandemia do coronavírus coloca em destaque questões de mobilidade humana que eram tomadas como dadas até poucas semanas atrás. No entanto, as pessoas migrantes, refugiadas e deslocadas já eram afetadas desproporcionalmente pela falta de autonomia em suas mobilidades, o que se intensifica com as restrições ao movimento em geral. Migrantes enfrentam problemas estruturais e solucioná-los não deve significar apenas voltar à “normalidade” anterior à pandemia. Ao contrário, requer uma visão ambiciosa do futuro, baseada na empatia e na atenção às lutas interseccionais por uma sociedade mais justa, igualitária, inclusiva, sustentável e livre.
A crise global de saúde exacerba desigualdades sociais de renda e riqueza, raça, gênero e, notavelmente, mobilidade. Enxergá-la a partir da perspectiva das mobilidades permite uma leitura crítica dos problemas enfrentados especificamente por migrantes. A perspectiva das mobilidades é uma abordagem teórico-metodológica originada nas ciências sociais que se volta para o estudo de fenômenos sociais através dos fatores determinantes da desigualdade de mobilidade de pessoas, objetos, e da natureza não-humana, entre outras. De acordo com esta abordagem, não deve haver prioridade de análise entre mobilidade, permanência e confinamento ou deslocamento forçados, os quais devem ser analisados em conjunto. Nos estudos migratórios, esta perspectiva ilumina como a mobilidade de certas pessoas implica sua falta para outras e como manter-se no lugar requer movimento de outras pessoas. Neste sentido, é importante salientar a redistribuição das mobilidades em tempo de pandemia: enquanto mobilidade tem sido um privilégio para poucas pessoas, o confinamento voluntário se tornou também um privilégio de classe social e ocupação, ao passo que muitas pessoas precisam se mover para que outras possam ficar em casa. Desta maneira, a perspectiva das mobilidades não deve ser confundida com a noção ingênua de que todas as pessoas gozam do mesmo nível de mobilidade, nem com a ideia de que movimento seja sinônimo de liberdade e autonomia irrestritas.
Em vários países, uma das primeiras medidas de contenção do coronavírus foi o dito “fechamento” das fronteiras. Isto pode parecer uma medida necessária do ponto de vista da saúde pública. Ainda assim, há muitos casos, sobretudo na Europa e na América do Norte, em que governantes se basearam em uma retórica xenófoba para criar a ilusão de que o fechamento das fronteiras para pessoas estrangeiras impediria o contágio em território nacional. Essa ilusão parte da premissa de que os únicos vetores de problemas (econômicos, sociais, políticos, de segurança pública e, neste caso, de saúde pública) são as pessoas estrangeiras, particularmente, as pessoas migrantes racializadas. O “fechamento” das fronteiras reforçou as lógicas excludentes da soberania estatal e, principalmente, da cidadania, pois a medida não se aplica para certos grupos de pessoas, incluindo aquelas que possuem cidadania e familiares em determinadas categorias.
Evidentemente, não quero minimizar a necessidade de se tomar medidas drásticas baseadas nas recomendações de especialistas de saúde pública. Na verdade, parte dos problemas da resposta à crise global de saúde advém de governantes que ignoram as recomendações de especialistas. A maioria dos países que adotaram o “fechamento” das fronteiras cometeu erros do ponto de vista de saúde global: não testaram as cidadãs e cidadãos que ingressaram no país, salvo se apresentaram sintomas graves, não ofereceram condições econômicas e sanitárias para fazer autoquarentena, e tampouco monitoraram a saúde dessas pessoas para cuidar das mais vulneráveis e identificar possíveis trajetórias de contágio.
A epidemia não começa nem termina na fronteira. As restrições à entrada de pessoas estrangeiras não são a solução mas apenas um passo nesta direção, que inclui fechamento de serviços públicos e privados não essenciais e confinamento voluntário amparado pelo Estado com renda básica emergencial para que o máximo de pessoas tenha condições de fazê-lo. Apenas o fechamento completo de fronteira (e não as restrições à entrada) poderia impedir a transmissão do coronavírus. Porém, o fechamento completo funciona enquanto durar a medida e precisa ser adotado em momento anterior à transmissão comunitária, quando há poucos casos de COVID-19 importados e a trajetória de transmissão pode ser mapeada (países como Argentina, Guatemala, El Salvador, e Nova Zelândia reduziram entradas internacionais antes de haver número significativo de casos). Ocorre que muitos países adotaram o “fechamento” parcial tardiamente e desacompanhado das demais medidas necessárias. Apesar disso contribuir para retardar o contágio comunitário, esses governos foram lenientes com ingressantes e não souberam usar esse tempo para três aspectos cruciais: preparar o sistema de saúde para o crescimento dos casos de COVID-19, adotar novos modelos de provimento de serviços públicos e implementar programas de amparo social para pessoas mais afetadas economicamente.
O que quero ressaltar é o imperativo de tomar medidas respeitando tanto as orientações de saúde pública quanto os direitos e bem-estar de migrantes e pessoas vulneráveis. As lógicas da soberania estatal e da cidadania são tão arraigadas que acreditamos ser necessário e suficiente “fechar” as fronteiras apenas para pessoas estrangeiras. Paradoxalmente, muitos países que adotaram restrições à entrada tardiamente recebem grande número de migrantes de lugares onde a transmissão comunitária não havia começado. Essas pessoas migrantes teriam poucas ou nulas chances de portarem o vírus; ao contrário, estariam indo em direção aos epicentros da pandemia e bastaria que o mesmo tratamento dado a demais residentes fosse dispensado a elas para que permanecessem seguras e não colocassem em risco a saúde pública. Ao usar, explícita ou implicitamente, nacionalidade e situação migratória como sinônimo de risco para a saúde pública, muitos governos e certas mídias (principalmente governos conservadores populistas e as fake news) projetaram uma falsa sensação de controle. Em vários países, não foram migrantes que introduziram o vírus e, mesmo se fosse o caso, isso não deveria importar. No Brasil, inclusive, membros do governo e de elites econômicas retornando de viagens internacionais foram responsáveis pela introdução do vírus. Mas, com a transmissão comunitária, o perfil de muitas vítimas fatais não é esse; são pessoas mais vulneráveis socioeconomicamente.
As restrições de entrada e outras medidas serão mais longas do que antecipávamos. É provável que vivamos ciclos de implementação dessas medidas alternados com momentos de flexibilização. Neste cenário, há dois fatores importantes de desigualdade de mobilidade que irão afetar as migrações. Primeiro, a possível adoção de certificado para pessoas que contraíram o vírus e estariam imunes. O estigma negativo sobre migrantes é entrave para alcançarem seus planos migratórios e viverem vidas plenas e livres de preconceito e impedimentos sociais e culturais. Além disto, dificuldades legais, econômicas e práticas para obtenção de documentos obstaculizam migrantes, o que não será diferente se houver um certificado de imunidade. Segundo, há grandes chances de desigualdades de oportunidades e riqueza entres países do Norte e do Sul global aumentarem com a intensificação da restrição a entradas internacionais para pessoas estrangeiras. Isso poderá ser ainda mais brutal se o momento em que os países mais ricos decidirem “reabrir” suas economias coincidir com surtos de COVID-19 em países de emigração do Sul global.
Nos Estados Unidos, que recebem fluxos migratórios mistos de migrantes e pessoas em busca de refúgio na fronteira sul, o controle fronteiriço recrudesceu e se tornou mais discricionário na pandemia. O governo federal encontrou a desculpa perfeita para praticamente suspender o sistema de solicitação de refúgio e retornar migrantes em situação irregular para o país de entrada. Isso ocorreu a despeito de migrantes virem de países que não tinham transmissão comunitária e poderem, presumidamente, fazer quarentena e permanecer em confinamento voluntário. Em vez disso, as pessoas migrantes e refugiadas são enviadas de volta ao México ou países da América Central, que não são necessariamente seu país de cidadania, colocando-as em situação de risco por não conseguirem seguir as recomendações de distanciamento físico em centros de acolhida superlotados. Isso expande a política de externalização da fronteira que vinha em curso: esses países foram pressionados pela Casa Branca a assinar acordos para conter a migração ao sul da fronteira estadunidense e a conceder refúgio a pessoas em trânsito quando, na verdade, um crescente número de nacionais desses países necessitam de refúgio elas próprias.
A situação não é muito diferente na Europa. A externalização do controle fronteiriço de migrantes cruzando o Mediterrâneo inclui acordos com países do norte da África e Oriente Médio, e intensificou a detenção e “devolução” de migrantes para países onde não são nacionais. A pandemia evidencia a necropolítica, isto é, a nefasta forma de governar através do gerenciamento da morte de grupos populacionais para a manutenção da vida de outros. A necropolítica já estava presente nas políticas de contenção da mobilidade de migrantes. Recentemente, a Frontex, agência europeia de controle de fronteiras externas, retornou migrantes de vários países africanos à Líbia desde a Itália, onde os portos foram considerados inseguros devido ao COVID-19. No entanto, a Líbia considerou seus portos inseguros para o desembarque de migrantes devido a condições naturais, enquanto a capital, Trípoli, implementou políticas estritas de toque de recolher por causa do coronavírus. Assim, migrantes que esbarraram na restrição de sua mobilidade internacional enfrentaram em seguida o confinamento forçado em um navio impedido de atracar.
A pandemia coloca entraves adicionais à migração regular e segura. Migrantes têm que escolher entre ficar nos lugares onde não há todas as possibilidades para o florescimento de suas potencialidades - o que, no limite, pode significar a morte por perseguição, conflito ou fome - ou migrar por canais irregulares. Mesmo países que vêm recebendo intenso fluxo misto de populações migrantes e refugiadas, como Colômbia, Bangladesh e Tailândia, anunciaram que vão recrudescer as fronteiras e esperam um aumento da migração irregular.
Entre as populações mais vulneráveis estão as pessoas refugiadas em campos, especialmente campos fechados. Mesmo os mais bem equipados centros de recepção de solicitantes de refúgio tampouco têm condições de garantir o cumprimento das medidas recomendadas de distanciamento físico e confinamento voluntário. Ao contrário, muitos estão superlotados e com poucos recursos, incluindo estoque adequado de alimentação e água potável. O atendimento médico e hospitalar para essas populações é insuficiente e, por vezes, precário. O aumento dos números de casos de COVID-19 será ainda mais devastador nos locais onde se encontram esses centros de recepção e campos para pessoas refugiadas.
Também nos centros de detenção de migrantes é difícil praticar distanciamento físico adequado. Os riscos de contrair coronavírus são enormes para migrantes, advogadas representando clientes, oficiais do Estado, e trabalhadoras de manutenção. Os centros de detenção são frutos de políticas migratórias injustas que retiram a liberdade de pessoas que cometeram violações administrativas. Pior, muitos centros de detenção nem sempre respeitam os direitos humanos de migrantes. Nos Estados Unidos, onde os centros de detenção são parte do complexo industrial-prisional, até mesmo famílias são separadas, vivendo a incerteza sobre seu destino e de familiares. No contexto da atual pandemia, a luta de migrantes e pessoas aliadas em solidariedade pelo que chamamos de abolição tem se intensificado para demandar que migrantes recuperem a liberdade, denunciando uma situação inaceitável independente da pandemia. Acabar com o confinamento forçado de migrantes em centros de detenção significa zelar pela vida de migrantes e não-migrantes implicados no sistema de detenção. Neste sentido, esta situação se assemelha à da população encarcerada, especialmente em países de passado escravista como Brasil e Estados Unidos, em que o encarceramento em massa atinge desproporcionalmente jovens negros e pobres, muitos dos quais presos por delitos civis ou de baixa periculosidade em uma cínica guerra às drogas e um racista combate à pobreza.
Migrantes compõem a força de trabalho dos países de residência, sendo, em vários casos, grupo absolutamente crucial para o trabalho produtivo e de reprodução social (isto é, trabalho necessário para tarefas de cuidado e limpeza, que é mal remunerado ou não pago e recai majoritariamente sobre mulheres). Trabalhadoras e trabalhadores migrantes são mais vulneráveis ao COVID-19 por estarem desproporcionalmente representadas em atividades consideradas essenciais, incluindo aquelas que necessitam de pouca qualificação e não garantem condições trabalhistas e de seguro social dignas. Além disso, têm menores chances de condições adequadas para manutenção de sua saúde física, mental e econômica durante a crise e, em muitos casos, sem acesso a programas emergenciais de amparo social. Países como Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos e Colômbia estão tentando flexibilizar regulações para que migrantes com credenciais estrangeiras possam se juntar à força de trabalho na área de saúde. Cumpre lutar para que sejam dadas as condições de trabalho adequadas a essas pessoas, que elas permaneçam autorizadas a atuar na área da saúde, e que as medidas continuem flexíveis.
Ao nos depararmos com mudanças drásticas em nosso estilo de vida decorrentes da pandemia, temos obrigação de praticar empatia e refletir criticamente sobre como pessoas migrantes, refugiadas e deslocadas sofrem rotineiramente com fronteiras fechadas, separação de suas famílias e detenção. Não queiramos retornar à “normalidade”, pois ela é injusta. Ampliemos as lutas sociais para alcançar um futuro mais digno.
Douglas de Toledo Piza é fellow do Zolberg Institute on Migration and Mobility e do International Rescue Committee. Atualmente, é doutorando e mestre em Sociologia pela New School for Social Research, em Nova York, Estado Unidos. É mestre também em Sociologia pela Universidade de São Paulo, de onde possui título de bacharel em Relações Internacionais. Sua pesquisa atual foca nas condições de mobilidade de migrantes em um circuito comercial entre Ciudad del Este, cidade fronteiriça paraguaia, e São Paulo, maior cidade brasileira.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.