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Brasileiros na Hospedaria: A Lei de Cotas e a Lei dos 2/3 - novo projeto de identidade nacional
Após décadas de todo tipo de incentivo dados aos migrantes estrangeiros, o governo brasileiro criou medidas restritivas para a entrada dos mesmos. Os brasileiros, pelo contrário, foram "elevados" a uma categoria mais importante no cenário operário paulista – pelo menos é o que queria que se acreditasse, de acordo com uma propaganda política muito especifica. São os migrantes nacionais, dos quais temos falado há algumas semanas na série "Brasileiros na Hospedaria". Há muitos motivos para esses deslocamentos de proporções até maiores do que os de outras nacionalidades; muitos deles têm sido descritos a cada texto: razões climáticas, econômicas e sociais. Mas há também outra face dessa história, com personagens já bastante conhecidos e peças movidas dentro de um cenário político mais complexo e menos óbvio.
O resultado dessa interrupção foi toda uma política governamental voltada para a direção oposta do que havia sido feito até então: a Lei de Cotas. Esse bloqueio institucionalizado ocorreu durante o governo de Getúlio Vargas, com adoção de novas medidas normativas que entraram em vigor com a Constituição, em 16 de julho de 1934. Na verdade, muito antes disso, com a dissolução do Congresso Nacional e das Assembleias Estaduais, a questão migratória já era um tema central do governo no começo da década de 1930.
A política de massas é uma das chaves. Ela se definiu a partir das crises intelectuais e econômicas decorridas das guerras na Europa, como por exemplo a crítica ao liberalismo e à democracia representativa. Preocupava-se com a questão social e com novas formas de controle de massas com o intuito de evitar novos conflitos políticos. São as mesmas ideias que inspiraram a visão de um Estado forte comandando por um líder carismático, cujos exemplos, hoje, identificamos bem: o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o salazarismo em Portugal e o franquismo na Espanha. A Era Vargas/Estado Novo inspirou-se nessas experiências europeias. Mas quais foram as características próprias desse novo regime brasileiro que possuem relação com a migração de estrangeiros e dos brasileiros ao Estado de São Paulo, aqui analisada? Colocar o brasileiro em uma categoria mais valorizada de trabalhador, posto até então ocupado pelos estrangeiros? Também. Mas, por trás disso, há ideias e valores mais subjetivos. Existem muitas interpretações por parte dos historiadores. Contudo, houve motivações eugênicas, políticas, econômicas e, principalmente, propagandistas – grande ferramenta na construção de um novo projeto de nação.
A década de 1930 iniciou com necessidades de mudanças econômicas. A crise de 1929 atingiu a economia brasileira, até então baseada na exportação de produtos primários. Sendo o café o principal produto, esse período também ficou conhecido como a Crise do Café, cujo preço caiu em quase 70%. Esse excedente do grão e de mão de obra escancarou um certo atraso do desenvolvimento do país. Com os estoques lotando os portos, a solução foi comprar uma parte dessa "reserva" dos produtores e queimar 80 milhões de sacas. O tema da necessidade de uma modernização da economia também ganhou destaque. O Estado deveria encarar o planejamento como um dos seus principais meios de intervenção na economia para suprir as necessidades:
"Depois de esforços feitos em várias frentes, a economia começou a dar mostras de recuperação em 1933. O governo provisório procurou sustentar o setor cafeeiro e adaptar-se a nova situação do mercado mundial. Aliviada a situação, esboçou-se um projeto de desenvolvimento econômico em bases novas, que procurou priorizar o avanço do setor industrial com a participação do estado."[1]
Intervindo diretamente na economia do país, o governo Vargas direcionou atenção ao mercado interno brasileiro. A ideia de controle da migração internacional e proteção ao trabalhador nacional foi posta como medida de combate ao desemprego. Foi uma novidade do ponto de vista do entendimento do papel das migrações no país por dois motivos: por uma crítica ao estímulo da vinda de estrangeiros e pela compreensão da concentração de determinados grupos étnicos em núcleos coloniais. Aqui cabe uma menção às discussões raciais e eugenistas em vigor na época, onde teorias de raça compunham o debate da "melhoria" da sociedade:
"Xavier de Oliveira, deputado pelo Ceará, discursou afirmando que o processo migratório possuía fases: a econômica, a política (surgida com a Primeira Guerra) e, finalmente, a fase atual: nacionalista, antropológica e "eugenética" da migração. Para o deputado, no entanto, o Brasil não estava acompanhando essas mudanças, permanecendo ainda na tal fase econômica, ao passo que outras nações, cujas nacionalidades também estariam "em formação", como os Estados Unidos, a Argentina, o Canadá, o Chile, a Austrália, a Nova Zelândia, já haviam passado da fase política para a "eugenética". Várias nações, portanto, eram apresentadas como referência no sentido de restringir o fluxo imigratório."[2]
Esse foi um elemento particular desta política. Outros deputados mencionam, nas discussões da Assembleia, o fato de os japoneses não conseguirem "assimilar a cultura" e que os judeus seguiriam causando problemas de cunho econômico em certos países. Todo esse discurso serviu para a política trabalhista do governo Vargas, que nos seus discursos oficiais alegava a necessidade de defesa e valorização do trabalhador nacional, tendo os brasileiros o direito de fechar seus portos aos estrangeiros com o objetivo de "salvarem sua independência"[3].
A Lei de Cotas foi um projeto de restrição à entrada de imigrantes estrangeiros no Brasil e a Lei dos 2/3 impunha um número mínimo de brasileiros contratados pelo mercado de trabalho, desde fábricas, empresas e instituições públicas. A junção dessas duas leis visava diminuir a chegada de migrantes internacionais para conter o desemprego e fortalecer um novo senso de identidade nacional. Essa medida restritiva não resultou de uma decisão direta do governo, mas de um grande debate da Assembleia Nacional Constituinte e de sua repercussão pública. Cabe dizer também que serviu de forma retórica no processo de implementação de medidas autoritárias e repressivas que viriam posteriormente. A União deveria, portanto, ter autoridade de regular a entrada de estrangeiros, "limitando, ou proibindo a dos elementos considerados nocivos; selecionando, limitando ou favorecendo a entrada de correntes imigratórias". A entrada de migrantes internacionais no território não podia exceder, anualmente, o limite de 2% sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos anos. Para alguns historiadores, isso significa que a medida favorecia certos grupos, como portugueses e italianos.
A Lei dos 2/3 entrou em vigor com o decreto nº 19.482, de 12 de dezembro de 1930, obrigando qualquer empresa e firmas comerciais a apresentarem, pelo menos, dois terços de funcionários de brasileiros natos. Hoje, essa lei é incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho, que entrou em vigor em 1943, sob o nome de "nacionalização do trabalho". Os primeiros atos do movimento de 1930, logo depois da criação do Ministério do Trabalho, trataram das medidas de emergência sobre a localização e tutela do trabalhador nacional. O decreto n. 20.291, de 12 de agosto de 1931, regulamenta a Lei dos 2/3. Segue abaixo parte do artigo:
DA NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO[4]
Art. 1º Todos os indivíduos, empresas, associações, sindicatos, companhias e firmas comerciais e industriais, que explorem qualquer ramo de comércio ou indústria, inclusive concessões dos Governos Federal, Estadual, Municipal, do Distrito Federal e Território do Acre, são obrigados a manter no quadro do seu pessoal, quando composto de mais de cinco empregados, uma proporção de brasileiros natos nunca inferior a dois terços, que deverá ser conservada durante o ano civil.
Art. 2º Para os efeitos do disposto no artigo anterior, são equiparados aos brasileiros natos os estrangeiros cujos cônjuges forem brasileiros, e que, tendo filhos brasileiros, residam no Brasil há mais de 10 anos, ficando igualmente equiparados, durante cinco anos, a contar da data do decreto n. 20.261, de 29 de julho de 1931, os demais estrangeiros com o mesmo tempo de residência daqueles no país.
(...)
Art. 7º Quando, por falta de trabalho, qualquer estabelecimento ou empresa houver de reduzir o número de seus empregados, operários ou trabalhadores, a dispensa dos estrangeiros deverá preceder sempre a dos brasileiros natos da mesma categoria, observado o disposto no art. 2º.
Essa mudança pode ser lida dentro do contexto de um objetivo específico desse governo: o projeto de consolidação de uma identidade nacional. Para alguns historiadores, foi aí que se deu toda a propaganda política de Getúlio Vargas: centralizar o poder de um Estado autoritário e criar uma identidade nacional coletiva, supervalorizando o trabalhador nacional. E, para tanto, a propaganda política não foi apenas a principal ferramenta como o próprio exercício do poder. O principal personagem, nesse projeto, foi o brasileiro, logicamente. Observamos a valorização de figuras nacionais, como a do sertanejo, caipira, caboclo e outras variantes do elemento rural. Esses personagens, aliás, tiveram grande destaque na busca pela valorização do que é essencialmente brasileiro, sendo comparados muitas vezes, pela sua importância, à figura do camponês nos países europeus dentro das propagandas nacionalistas. Isto também pode ser entendido pelo interesse que havia no momento em se avançar para o interior do território brasileiro. A política de integração do interior, chamada de "marcha para o Oeste", representava a possibilidade de superação do atraso e transformação do país em uma potência. Nesse projeto e em seu discurso, cada elemento teve seu lugar e sua razão de ser. Era o oposto do estrangeiro. Essa coesão da nacionalidade brasileira dependia de diversos fatores, como o reconhecimento da autoridade estatal, comunhão linguística, religiosa e cultural – aspectos dos quais o Brasil já dispunha. Para Capelato, esse estímulo ao nacionalismo foi o ponto essencial da política varguista.
A proposta deste texto foi pontuar as mudanças de paradigma com relação à importância dos estrangeiros e na valorização do trabalhador nacional no contexto brasileiro da década de 1930, levando em conta a propaganda política e o controle social existentes por trás desse novo projeto de nação. Contudo, esse novo momento político trouxe aspectos positivos, principalmente por conta das conquistas sociais e trabalhistas, como salário mínimo, férias, limitação de horas de trabalho, segurança, carteira de trabalho e inclusão nacional. Apesar desse reconhecimento, é preciso lembrar que os trabalhadores sempre estiveram em luta por esses direitos. Ainda é necessário, também, recolher mais dados e fontes a respeito do quanto essas medidas de fato beneficiaram o trabalhador brasileiro, migrante, que vinha a São Paulo com o desejo de encontrar trabalho e acabava, muitas vezes, caindo em situação de precariedade como, inclusive, condições de trabalho análogo à escravidão. Vimos em textos anteriores que nem todos os espaços da Hospedaria estavam disponíveis para o alojamento dos retirantes, por exemplo. O Brasil é um país vasto, e suas políticas públicas e de cidadania estão longe de alcançar a todos.
Referências bibliográficas
[1] Maria Helena Capelato. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: Ferreira, Jorge; Delgado, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo - do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[2] Geraldo, Endrica. A “lei de cotas” de 1934: controle de estrangeiros no Brasil. Campinas. Caderno AEL, v.15, n.27. 2009.
[3] Op. Cit.
[4] Disponível na íntegra em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-20291-12-agosto-1931-514687-publicacaooriginal-1-pe.html#:~:text=6%C2%BA%20do%20decreto%20n.,do%20Trabalho%2C%20Ind%C3%BAstria%20e%20Com%C3%A9rcio.