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Brasileiros na Hospedaria: A viagem ao Eldorado
Nos últimos anos da década de 1920, o estado de São Paulo assistiu a um aumento nos números de chegadas de migrantes nacionais. A Hospedaria do Brás, local tradicionalmente reservado à acolhida dessas pessoas, já não estava em suas melhores condições. Descrita, no Diário Nacional, como "um velho casarão", possuía dormitórios malconservados, especialmente no piso superior. Além disso, os assoalhos velhos, a falta de higiene e os aparelhos sanitários em locais inadequados caracterizavam o edifício. Nessa época, a Hospedaria mantinha oito dormitórios, que podiam conter entre 150 e 220 camas dispostas em beliches. Os colchões, em sua maioria, estavam gastos e os poucos que eram mais novos haviam sido doados pela penitenciária da cidade. No primeiro trimestre de 1928, mais de sete mil brasileiros dormiram na Hospedaria de Imigrantes do Brás nessas condições[1]. Esse era só mais um dos capítulos da história de frustrações e dificuldades que os migrantes enfrentavam em busca de um suposto Eldorado paulista.
A maior parte dessas pessoas provinha de Minas Gerais e de alguns estados do Nordeste do país, como Bahia, Pernambuco, Piauí, Ceará e Maranhão. Uma reportagem do dia 10 de junho de 1928, publicada no Diário Nacional, destacava a presença dos nascidos nos municípios baianos de Caetité, Juazeiro, Rio Manso, Guanambi e Bom Jardim, e nas cidades mineiras de Pirapora, Montes Claros e São Romão. O trajeto de uma parcela significativa desses migrantes passava por Montes Claros e Pirapora. Os meios de transporte variavam, mas chama atenção o fato de que muitos viajavam a pé. Apesar da maior parte caminhar até Juazeiro, na Bahia, onde começava a navegabilidade do Rio São Francisco, houve, pelo menos, um caso registrado de uma família que andou por um ano, três meses e sete dias entre Maranhão e São Paulo[2].
Independente do meio empregado para a viagem, esta se revelava uma verdadeira odisseia. Com pouco dinheiro, muitas famílias precisavam arrumar pequenos serviços temporários durante o trajeto para ter o que comer, se sustentar e prosseguir rumo ao Sudeste. Entretanto, como denunciava o Diário Nacional, muitos migrantes estavam sujeitos a trabalhos análogos à escravidão. Para aqueles que decidiam ou tinham condições de tomar um barco e descer o Rio São Francisco, também não havia facilidades. As embarcações, que demoravam cerca de onze dias entre o estado da Bahia e o porto de Pirapora, em Minas Gerais, estavam, com frequência, superlotadas, eram velhas e não possuíam a higiene devida. Quem tinha condições comprava a alimentação servida a bordo, outros aguardavam as paradas programadas nas margens para comprar fibra caroá[3].
Pode-se dizer que a cidade de Pirapora era um dos grandes centros da migração nordestina rumo a São Paulo. Em muitos casos, como relata o jornal já citado, os migrantes aguardavam por diversos dias a partida dos trens rumo à capital paulista. Por três dias e três noites, com escalas em General Carneiro, Belo Horizonte e Cruzeiro, essas pessoas ficavam apinhadas em vagões improvisados. Desembarcavam na estação do Norte (atual estação do Brás), onde também podiam ser extorquidos, já que os preços cobrados pelas carroças que os levavam até a Hospedaria eram exorbitantes[4]. No edifício, permaneciam cerca de um ou dois dias antes de seguirem para o interior, com exceção daqueles que estavam doentes ou tinham parentes na mesma situação.
O Relatório da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras de 1928 registrou a entrada de mais de 55 mil brasileiros no estado de São Paulo. Pouco mais de 12 mil desembarcaram no porto de Santos e o restante, cerca de 43 mil, chegou por meio das estradas de ferro. Segundo o documento, em 1928, mais de 88 mil pessoas passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Brás (isso se deve aos números de reentrados e leva em conta, também, os migrantes internacionais). Apesar disso, no que diz respeito aos nacionais, só há, para o ano citado, aproximadamente 30 mil matrículas digitalizadas. Eis uma lacuna a ser preenchida.
Trecho do jornal Diário Nacional, de 10 de junho de 1928 (as fotos citadas seguem abaixo):
"Atraíra a nossa atenção, ultimamente, a chegada em nossa capital, de centenas de famílias patrícias, vindas do Norte, nas mais miseráveis condições. As declarações de alguns membros das mesmas, levou-nos a estudar cuidadosamente o fato. Chegamos, assim, à uma conclusão iniludível: a de que se desenvolve sossegadamente, no país, uma indústria que não é das mais lícitas, qual seja a de “contrabando” de braços nacionais.
Com suas sedes principais no Rio e em São Paulo, o grande sindicato que mantém tal organização, possui agentes nos principais centros do norte do Brasil.
Eles procuram os trabalhadores, nas regiões em que existem parcos recursos, incutindo-os a procurarem o estado de São Paulo, cujas vantagens e riquezas pintam com as mais garridas cores. Muitas vezes oferecem como aconteceu a elevado número desses colonos, serviços em fazendas situadas em Minas Gerais. Aí eles sofrem novas extorsões, sendo frequentes os casos de trabalhadores que foram contratados por meses em determinadas propriedades, para depois nada receberem por seus serviços.
Os agenciadores de braços oferecem-lhes ótimas colocações em São Paulo, pedindo-lhes apenas uma certa quantia em dinheiro, na maioria dos casos. A viagem é feita quase toda a pé. Apenas de Minas para São Paulo eles vêm, como sardinhas enlatadas, em imundos carros da Central do Brasil.
Muitos pagam com suas economias as despesas de viagem. Outros são embarcadas por conta dos “empresários” ou gratuitamente por concessão do governo estadual. Ao chegar a esta capital, como eloquentemente demonstram as fotografias que publicamos, estão nas piores condições. Maltrapilhos, doentes, famintos, etc., mais parecem farrapos humanos do que seres audaciosos á procura da fortuna.
Nem aqui cessa a exploração que lhes é feita. Desembarcando na estação do Norte, prosseguem a pé até a Hospedaria dos Imigrantes. Os que têm crianças, em geral enfermas, contratam carroças, a preços exorbitantes. Partem nelas, apinhados, numa promiscuidade dolorosa, carregando nos ombros e nas cabeças suas “trouxas” ou bagagens, para não diminuir a lotação do moroso veículo.
Na Imigração, depois de longos meses de suplício, conseguem obter refeições um pouco melhores que as que lhes eram impingidas. Aí ficam da manhã de um dia até a manhã do dia seguinte, quando partem para o interior do Estado, pela Sorocabana ou Paulista."
Referências bibliográficas
[1] Jornal Diário Nacional, 10.05.1928.
[2] Idem, 10.06.1928.
[3] Jornal Diário Nacional, 10.06.1928.
[4] Idem.
Foto da chamada: migrantes que chegaram de Pernambuco