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Brasileiros na Hospedaria: Onde o frio é maior
Nos tempos de quarentena, já tivemos a oportunidade de mencionar, em duas séries de artigos – Hospedaria em Quarentena e Brasileiros na Hospedaria –, questões relativas à intensificação das migrações no estado de São Paulo, a ausência de planejamento urbano e social e o consequente problema da falta de moradias, especialmente na capital paulista. A alagoana Aurelina Oliveira dos Santos que, junto do marido e quatro filhos, chegou em São Paulo em meados da década de 1970, disse em uma entrevista para o Diário da Noite, distribuído em 2 de junho de 1979, que foi obrigada a viver em barracos na Zona Leste da cidade "como tantos outros da minha terra, no norte do Brasil, simplesmente porque quem vive de salário mínimo não pode morar em casa quentinha de tijolos"[1].
Importante notar o termo "casa quentinha", já que a entrevista fazia parte de uma matéria que tratava da onda de frio que atingiu a região sudeste no inverno de 1979 e como isso afetava a vida da população mais carente de recursos. Até a data da publicação, 14 pessoas em situação de rua faleceram na capital em decorrência do frio intenso; segundo a reportagem, os termômetros chegaram a marcar 1,8 graus negativos na área do Horto Florestal. Um número de telefone foi oferecido por órgãos do governo com a seguinte chamada: "Não deixe ninguém morrer de frio". Se alguém observasse uma pessoa em situação de rua, poderia ligar e solicitar um dos doze veículos disponibilizados para o recolhimento desses indivíduos. Uma extensiva campanha de doação de roupas, cobertores e travesseiros foi realizada nas estações de metrô da cidade. Na segunda quinzena de maio, a campanha reuniu mais de 16 mil itens de vestuário, quase 1.100 pares de sapatos, 59 cobertores e 4 travesseiros. [2]
Entretanto, tais donativos não estavam chegando, aparentemente, nas zonas periféricas da cidade. Antonio Guedes Filho, um dos moradores do Jardim Primavera, junto à Estrada de Sapopemba, na Zona Leste da capital afirmou: "Sabemos de muitas campanhas de agasalho, que aparecem na TV e nas rádios. Mas até agora nada recebemos e nossas crianças já estão doentes, e os mais velhos certamente não aguentarão muito". Pai de três crianças pequenas, Antonio citou ainda que em uma das madrugadas, por volta de duas horas da manhã, a situação em seu barraco de madeira era insuportável e os panos que cobriam as crianças estavam úmidos. Adelmo Domingos dos Santos, outro morador do bairro, afirmou que uma de suas filhas, que tinha bronquite, havia piorado por conta das noites gélidas. Seu maior medo era que seus outros filhos adoecessem também. Já Aurelina comentou sobre sua estratégia para manter a família aquecida: embrulhar todo mundo nas poucas roupas que possuíam, principalmente os pequenos, se enrolar nos cobertores e mantas velhas e ficar todo mundo junto. A apreensão dela só aumentava quando observava o marido e a filha logo cedo, em meio à neblina, saírem para trabalho e escola, respectivamente. Pelas razões mencionadas, o jornal fechou a matéria com a seguinte frase sobre o Jardim Primavera: "Milagre. Ninguém morreu ainda".[3]
Em diversas notícias relacionadas aos fluxos migratórios de nordestinos para São Paulo, o clima – ou melhor, a falta de material adequado dessas pessoas para enfrentar o clima do sudeste do país – é frequentemente citado. Em agosto de 1939, a então primeira-dama do Estado de São Paulo, Leonor Mendes de Barros, visitou a Hospedaria de Imigrantes do Brás para distribuir roupas e cobertores aos filhos dos acolhidos. O ato não foi isolado. Dois meses antes, alunos do Gymnasio Brasileiro-Alemão foram até a Hospedaria distribuir agasalhos[4]. O mesmo se sucedeu no início de julho, segundo o Correio Paulistano:
"Estão chegando, quase diariamente a São Paulo, milhares de retirantes provindos dos sertões da Bahia e de Minas, assolados por uma das mais pavorosas secas de que se tem memória. Toda essa gente infeliz e desprotegida está sendo encaminhada, pela Diretoria de Imigração e Colonização, à lavoura paulista, onde encontra trabalho fácil e remunerador.
Acontece, porém, que esses infelizes patrícios chegam a São Paulo, sobretudo as crianças, desnudos sem o menor agasalho, expostos ao frio intenso que tem feito ultimamente." [5]
A Associação de Assistência aos Filhos de Imigrantes, composta por funcionários da Hospedaria, não tinha os recursos suficientes para agasalhar a todos que chegavam. Fez, portanto, um apelo à população da cidade para que enviassem o que podiam para o edifício do Brás. A Associação dos Representes Comerciais do Estado de São Paulo doou cerca de 700 peças de roupas e o Cotonifício Crespi por volta de 1.500 cobertores de lã.[6]
Apesar desses esforços o problema se manteve, como pudemos confirmar a partir de notícias de 1979. E não foi algo que se deslocou somente para outros bairros onde havia maior concentração de migrantes: uma manchete do jornal O Estado de São Paulo, em matéria publicada no dia 27 de junho de 1970, dizia: "Na Hospedaria, o frio é maior". Cerca de 100 pessoas eram atendidas, diariamente, na enfermaria da Hospedaria. Casos mais graves eram encaminhados aos hospitais Emilio Ribas, Menino Jesus, Clínicas, Cândido Fontoura e Santa Casa. A maior parte estava com gripe e resfriado, mas existiam casos de sarampo e outras doenças contagiosas. A notícia seguia:
"Muitos nordestinos passam frio na hospedaria do Departamento de Migrantes da Secretaria de Promoção Social. Não há cobertores nem agasalhos em número suficiente para os 700 hóspedes do governo paulista ali na Rua Visconde Parnaíba. Crianças, mulheres e velhos ficam encolhidos, tremendo, nestes dias em que a temperatura chegou quase a 10 graus (...).[7]
Muitas crianças estão descalças. Os pezinhos ficam arroxeados de frio. Sem resistência orgânica capaz de suportar uma variação repentina de temperatura, subnutridas, anêmicas, essas crianças estão doentes, em sua maioria."
O paraibano Antonio Faustino da Silva, pintor, quase perdeu seu filho caçula por uma infecção respiratória, durante a viagem. O bebê de cinco meses foi salvo graças aos cuidados médicos na Hospedaria. A família de Antonio, esposa e os dois filhos, estavam nessa instituição há dias, aguardando uma oportunidade para seguir viagem até Uberaba. Genésio Inácio Ferreira estava animado, apesar do frio. Conseguiu alugar uma casa para ele, a mulher e seis filhos, nove quilômetros depois de São Miguel Paulista. A bagagem da família cabia em apenas cinco sacos de pano. O pernambucano Raimundo confidenciou aos jornalistas:
"Lá na minha terra, eu não pensava que existisse frio assim. Eu não tenho cobertor, nem roupa para enfrentar esta situação. Só trouxe um lençol na mala. Essa roupinha do menino eu ganhei hoje, na rua."
Outro migrante, sem nome citado, desabafou:
"Será que o governo de São Paulo não tem dinheiro para comprar cobertores pra gente? Será que o governador do Estado mais rico do Brasil sabe que estamos passando este frio da peste? É um começo de vida nova muito duro." [8]
É, portanto, desde a década de 1930, pelo menos, que as questões citadas no texto se impõem a São Paulo. O problema nunca foi resolvido. Ano após ano, pessoas continuam morrendo de frio nas ruas da cidade; ano após ano são necessários auxílios de associações, entidades filantrópicas, religiosas e da população em geral para fornecer comida, roupas e cobertores àqueles que precisam sobreviver ao inverno na capital paulista. Em São Paulo, o frio é maior, mas o menos culpado é o frio.
Referências bibliográficas
[1] Jornal Diário da Noite, 02 de junho de 1979.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Jornal Correio Paulistano, 20 de junho de 1939.
[5] Jornal Correio Paulistano, 06 de julho de 1939.
[6] Idem.
[7] O Estado de São Paulo, 27 de junho de 1970.
[8] Idem.