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Hospedaria em Quarentena: O cheiro de pão fresco
Considerações sobre a escarlatina em São Paulo
"Então que ideia fazem vocês do nariz? Acham mesmo que esse ilustre apêndice não tem um destino elevado na história da humanidade?
Um bom nariz, meus amigos, é uma sentinela da saúde; avisa-nos em tempo, para que evitemos absorções que nos prejudicam".[1]
Assim começa um artigo do jornal Correio Paulistano, assinado por. A. Fejo no dia 12 de fevereiro de 1895. O texto disserta sobre o valor do olfato, principalmente para os médicos, os quais poderiam identificar as doenças pelos odores que elas exalavam. Para o autor, a febre tifoide recende sangue, por isso atrai moscas; a diabete exala feno; a cólera evapora amoníaco; e a escarlatina cheira à pão fresco.
Seguindo a tese de A. Fejo, no início do mês de setembro de 1888 a Hospedaria de Imigrantes do Brás poderia estar infestada pelo cheiro de pão fresco. Sante Lugli, uma criança de apenas um ano e meio de idade, foi uma vítima fatal da escarlatina. A família Lugli, composta pelo casal Rinaldo e Antonia mais os filhos Angelo, Malvina, Antonio, Maria e Sante, matriculou-se na Hospedaria no dia dois de setembro; três dias depois precisaram sepultar o caçula.
A escarlatina é uma doença infectocontagiosa aguda, causada pela mesma bactéria responsável por provocar artrite, pneumonia, endocardite, impetigo e erisipela. Geralmente está associada à ocorrência de amidalites e faringites, acomete principalmente crianças e sua transmissão se dá por meio de contato direto com a saliva e secreção nasal; ou seja, tosses, beijos e compartilhamento de objetos contaminados podem ajudar na propagação.[2]
Em São Paulo, a preocupação com essa doença era grande. Em junho de 1892, o jornal Correio Paulistano publicou uma troca de cartas entre os doutores Cesário Motta Júnior e Joaquim José Torres Cotrim. A missiva tratava da necessidade de desinfecção de vagões e bagagens no sistema ferroviário. Segundo os médicos era importante dividir os objetos em duas categorias, sendo chamados de primeira classe aqueles mais suscetíveis de portarem moléstias.
Eram trapos, couros e todos os tecidos de animais, mais as bagagens de imigrantes que tinham como destino o estado de São Paulo, "por onde veiculam de ordinário germes de varíola, escarlatina, sarampo etc.". (Correio Paulistano, 04.06.1892)[3]. Em 1907, os serviços de desinfecção na capital paulista tinham como função evitar a proliferação da febre amarela, peste bubônica, cólera, escarlatina, crupe, tuberculose, febre tifoide e bexigas (varíola). Qualquer pessoa acometida por alguma dessas doenças era transferida ao Hospital de Isolamento.
Como se pode observar, a escarlatina era sempre citada dentre as principais enfermidades infectocontagiosas. As notícias relacionadas às epidemias na Argentina e no Uruguai, em 1904[4], bem como ao surto em Boston, três anos depois, que obrigou a cidade americana a fechar as escolas, em razão de se contarem mais de seis mil crianças contaminadas, além de notas a respeito de uma possível descoberta de cura para a escarlatina, em Berlim[5], demonstram, mais uma vez, a inquietude que tal moléstia suscitava em São Paulo.
Apesar de pessoas de todas as faixas etárias estarem sujeitas a contrair escarlatina, costuma ser mais perigosa para crianças com menos de dez anos. Os fluxos migratórios para o estado de São Paulo, especialmente entre o final do século XIX e o início do século XX, se caracterizaram por uma grande quantidade de famílias e, consequentemente, um número significativo de crianças. A Figura 1, que mostra um grupo de migrantes no pátio da Hospedaria do Brás por volta de 1910, bem como as próprias matrículas no edifício, comprova esse fenômeno.

É, portanto, compreensível a aflição que a escarlatina causava. Casos como de Sante Lugli, mencionado acima, que ocorriam nas dependências da Hospedaria de Imigrantes – um local que, naturalmente, era suscetível as aglomerações – podiam transformar a situação epidemiológica da cidade e, de fato, levar muitas crianças a óbito. Em um outro artigo desta série – "Na Hospedaria Ninguém Entra e Ninguém Sai" –, já tivemos a oportunidade de discorrer sobre o alto índice de mortalidade infantil na Hospedaria do Brás. Os registros de óbitos na cidade de São Paulo também apontam números semelhantes. Na primeira semana de junho de 1905, por exemplo, morreram 92 pessoas na capital paulista, sendo que 47 delas possuíam menos de 2 anos de idade; entre os dias 5 e 11 de janeiro de 1920, na mesma cidade, ocorreram 210 óbitos, em que 113 eram menores de 2 anos.
Em vista disso, naturalmente, as propagandas de remédios contra a escarlatina tinham como foco as crianças. A Figura 2 diz respeito à emulsão de Scott, anúncio frequente no Correio Paulistano nos primeiros anos do século XX. É possível observar, além da imagem da criança a pedir o xarope, todo o texto focado nesse público. O mesmo medicamento (Figura 3) aparecia nas páginas dos jornais paulistanos na segunda década do século XX.


Para o Serviço Sanitário de São Paulo, a escarlatina estava na mesma categoria das principais doenças infectocontagiosas. Segundo regulamento da instituição:
"Art. 146. São moléstias consideradas transmissíveis e, portanto, de notificação compulsória as seguintes: a febre amarela, a febre tifoide, a cólera, a peste, o sarampão, a escarlatina, a varíola e a tuberculose.
Art. 144. Quem vender, emprestar o der qualquer objeto ou roupas que tenham servido a doentes atacados de moléstias transmissíveis, antes de terem sido expurgados, será punido com a multa de cem mil réis a duzentos mil réis, da qual não haverá recurso.
Art. 145. As pessoas que se opuserem às determinações da autoridade sanitária incorrerão em multa de cinquenta mil réis, devendo a mesma autoridade solicitar o auxílio policial sempre que ser tornar preciso para o cumprimento de suas obrigações."[6]
As regras eram rigorosas. Havia uma angústia e um temor evidentes no que diz respeito a escarlatina, mais precisamente a possibilidade de uma epidemia. Esse sentimento era tal que, quando apareceram alguns casos da doença na cidade de Batatais, interior de São Paulo, o Colégio Diocesano, na tentativa de obedecer ao máximo o Serviço Sanitário, resolveu antecipar as férias de todos os alunos. Estes, certamente, ficaram aliviados; livres da escarlatina e com mais dias para descansar.[7]
Referências bibliográficas
[1] Correio Paulistano, 19.02.1895.
[2] Drauzio Varella. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/escarlatina/. Acesso em 01.06.2020.
[3] Correio Paulistano 04.06.1892.
[4] Correio Paulistano, 07.08.1904.
[5] Correio Paulistano, 04.02.1903.
[6] Correio Paulistano, 20.08.1908.
[7] Correio Paulistano, 03.06.1920.
Foto da chamada: Fachada do edifício central do hospital da Hospedaria de Imigrantes do Brás