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Hospedaria em Quarentena: Uma epidemia inaugura a Hospedaria
Em razão do nosso atual contexto de enfrentamento da pandemia do coronavírus (COVID-19), o Museu da Imigração inicia hoje uma série de publicações a respeito das relações entre a Hospedaria de Imigrantes do Brás e a história da saúde pública em São Paulo.
Quem já teve a oportunidade de visitar a exposição “Migrar: Experiências, Memórias e Identidades”, certamente pôde observar muitos objetos pertencentes à área da medicina (se você ainda não visitou a exposição, faça um tour virtual por ela. Está disponível no Google Arts & Culture).
Em um primeiro momento pode ser difícil imaginar o porquê da existência de tais objetos em uma parte da exposição que trata, especificamente, sobre o cotidiano da Hospedaria de Imigrantes. A função da Hospedaria não seria acolher, ou seja, fornecer um lugar para que as pessoas pudessem descansar e se alimentar? O que tem a ver a Hospedaria com saúde?
Na verdade, existe um vínculo profundo. A Hospedaria de Imigrantes do Brás nasceu, extraoficialmente, por causa de uma epidemia. Em junho de 1887, ainda com as obras inconclusas, ela foi obrigada a receber imigrantes que estavam acolhidos na outra hospedaria da cidade, a do Bom Retiro, que estava infestada com uma grave epidemia de varíola.
Dois anos depois, em 1889, o Brasil sofreu com uma nova epidemia de febre amarela. A Itália, país que mais nos fornecia mão de obra imigrante na época, chegou a restringir a saída de seus cidadãos que tinham como destino portos brasileiros. Nesse mesmo ano foi contratado como médico da Hospedaria o recém-formado doutor Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho, futuro diretor da Santa Casa de São Paulo e fundador da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
Em 1918 o mundo inteiro foi assolado pela pandemia de gripe espanhola. São Paulo não passou incólume ao fato e é fortemente atingida pela doença. A Hospedaria de Imigrantes do Brás foi transformada, junto com a Santa Casa, no maior hospital (improvisado) da cidade de São Paulo.
Durante todo seu período de funcionamento (1887-1978) a Hospedaria sempre contou com um quadro de funcionários formado por médicos, enfermeiros (as) e parteiras, e com instalações hospitalares, enfermarias e salas de parto. Imigrantes recém-chegados passavam por uma inspeção médico-sanitária e recebiam as primeiras vacinas contra doenças que assolavam o Brasil à época, e contra as quais os imigrantes não tinham imunidade. O telégrafo, assim que um navio aportava em Santos, avisava à Hospedaria sobre as condições de saúde dos passageiros, preocupação que se justificava pela facilidade de contágio entre as milhares de pessoas que permaneciam por dias na Hospedaria. Mas mesmo com tais cuidados, são muitos os registros de imigrantes que precisaram ser isolados ou de toda a Hospedaria ter sido colocada em quarentena, impossibilitando a saída de quem estava ali abrigado. Não por acaso, as primeiras décadas de funcionamento da Hospedaria, quando mais registros de epidemia foram registrados, foram marcadas pelos conflitos mais intensos em seu interior.
A própria localização da Hospedaria tem uma relação com as epidemias. Foi construída no entroncamento das duas principais ferrovias do estado de São Paulo (Estrada de Ferro Central do Brasil e São Paulo Railway) e afastada da cidade, portanto. A capital paulista se expandiu rapidamente e os bairros do Brás e da Mooca, mais próximos da Hospedaria, foram completamente habitados. Entretanto a ideia inicial era fazer com que os imigrantes não tivessem contato com a cidade, sendo que um dos motivos para isso era, justamente, o medo da proliferação de doenças infectocontagiosas.
Nas próximas publicações abordaremos com mais detalhes os episódios mencionados e outros também. Muitas vezes, para compreender melhor o presente precisamos dar uma espiada no passado. A história da Hospedaria de Imigrantes do Brás, desse modo, pode nos ajudar a pensar sobre o que estamos vivendo no começo desse ano de 2020.