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O cotidiano de migrantes espanhóis na Hospedaria de Imigrantes do Brás
O texto reproduzido abaixo é a tradução de parte do relatório, escrito pelo inspetor Ángel Gamboa, cujo título é “Situación de los emigrados españoles en el Brasil” [1]. Em 1910 ele esteve na Hospedaria de Imigrantes do Brás, em outras localidades do estado de São Paulo e registrou o que observou.
Importante não deixar de contextualizar historicamente a produção de tal registro. Não só na Espanha, mas também em diversos outros países, há àqueles favoráveis à uma política emigrantista e outros contrários a tal política (anti-emigrantistas). Sendo assim ora um relato se inclina a uma posição, ora se inclina a outra.
Situación de los emigrados españoles en el Brasil
O edifício (Hospedaria), que é vastíssimo e possui aparência de um quartel, está totalmente rodeado por um muro bem alto. A via de acesso ao pátio, em cujo centro está a Hospedaria, é um portão de ferro, coberto de chapas do mesmo metal que ocultam, completamente, o interior do edifício da vista dos transeuntes.
Não me parece desnecessário registrar esses detalhes, já que servem para que tenhamos uma ideia do cuidado que se tem em evitar que os imigrantes não se comuniquem com ninguém. Cabe também mencionar que, de forma alguma, se permitem as visitas de amigos, conterrâneos ou parentes. As precauções para evitar o acesso à Hospedaria são tão rigorosas que nem mesmo eu, apesar de apelar para o caráter oficial das minhas visitas, tive a entrada liberada sem antes avisarem ao Diretor.
A Hospedaria recebe previamente, por via telegráfica da Inspeção de Imigração em Santos, a notícia da vinda dos imigrantes e assim que chegam é servida uma comida que não tem nada de boa: a que eu vi servida aos da minha expedição consistia em um arroz com umas folhas de repolho, com nenhum outro condimento além de água, sal e pimentão. Havia também pães, nem todos macios, alguns duríssimos (…).
Quanto a alimentação especial das crianças, ainda que os folhetos sobre a Hospedaria, publicados pela Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, façam menção ao fornecimento de leite na quantidade necessária para sua alimentação, pelo que pude observar é mais uma promessa que só se encontra no papel (…).
Os dormitórios que existem na Hospedaria são salões bem extensos, capazes de abrigar, cada um deles, cerca de 150 pessoas (com divisões para solteiros e famílias). As camas possuem armações de ferro (…) sem colchão, manta, almofada nem qualquer outro tipo de roupa, apesar de que as noites de invernos podem ser tão frias que chega a gear, como eu mesmo pude comprovar.
A Hospedaria possui todos os serviços: uma boa enfermaria, farmácia, instalação hidroterápica, estufa para desinfecção, sala de vacinação (…); porém, pelo que pude observar, não me parece temerária a afirmação de que tudo aquilo não tem outra função além da aparência, pois que para satisfazer meu desejo de visitar a enfermaria foi necessário arrombar a porta já que não encontraram a chave (…).
Ao ingressarem (imigrantes) na Hospedaria o médico não pratica o devido reconhecimento. No dia seguinte colocou um enfermeiro em seu lugar e como desculpa me disse que aquele subalterno era homem de grande experiência e excelente “olho clínico” (…).
Nove crianças com sarampo, no auge da enfermidade, entraram na Hospedaria no dia seguinte. Às onze da manhã estavam todas nos braços de suas mães, em meio aos demais indivíduos, e nenhuma medida foi tomada – nem a mais ligeira precaução – para evitar o contágio (…).
Cabe ainda ressaltar o que sucedeu com uma pobre mulher (grávida), mãe de um dos meninos com sarampo. Esta, como todas as mães das crianças doentes, devia acompanhar seu filho até o Hospital de Isolamento; entretanto, por apresentar alguns sintomas do parto, foi mandada de volta para a Hospedaria pelo Diretor do estabelecimento, apesar dos protestos das enfermeiras (…). No final das contas aquela infeliz mulher deu à luz no pátio da Hospedaria (…) e sem nenhuma assistência além de um companheiro de viagem, vizinho do mesmo povoado de origem da mulher. Poucos dias depois ela morreu de infecção. E que fique registrado que em São Paulo há, para esses casos, uma magnífica casa de maternidade.
[1] Fonte: HERNÁNDEZ, R. J; LUXÁN, A. B. Pasajeros de Tercera Clase. 2. Ed. Madrid: Ministerio de Trabajo, Migraciones y Seguridad Social, 2019.