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Peça a Peça: Fotografia - Família Kneif
No dia 19 de junho de 2019 realizamos, no Museu da Imigração, mais uma edição do "Encontro com o Acervo". Dessa vez, o croata Milan Puh nos auxiliou na compreensão de alguns itens de nosso acervo cuja origem é identificada com a Croácia, Iugoslávia e Áustria. A intricada história dessa região, bem como as poucas informações que constam em nossos registros, levam a uma interpretação bastante lacunar desses objetos. Milan nos contou sobre alguns costumes da Croácia e a diferença entre suas regiões, sobre a utilização de cores e padrões comuns nas estampas de vestuário e de objetos domésticos, sobre o uso de itens domésticos como a cafeteira turca, entre outras coisas.
Um dos objetos que apresentamos no Encontro foi uma fotografia, atualmente exibida em nossa exposição temporária “Sinta-se em casa”: um retrato de oito pessoas, entre adultos e crianças; trata-se de uma reprodução em preto e branco, emoldurada com passe-partout branco e moldura ornamentada em tons de marrom, com alguns detalhes em dourado. A única informação que possuímos no processo de doação do item é a inscrição na placa que está na fotografia: “Família Kneif Croácia – 1925”. Tratando-se de um retrato familiar, podemos inferir que o casal mais velho poderiam ser os pais, e as demais pessoas, os filhos, sendo duas crianças pequenas, três mulheres e um homem. No centro do retrato está o casal, com uma das filhas centralizada à frente. O fundo escuro não nos permite concluir o local de produção dessa fotografia, possivelmente realizada em um estúdio.
Milan comentou que em muitas famílias croatas existe a figura da matriarca, a mulher que cuidada das finanças e que tinha uma grande importância na família – nesses casos, seria comum ver a mulher no centro dos retratos fotográficos. Segundo o historiador Peter Burke, os retratos podem ser entendidos como uma forma de expressão simbólica, composta por sistemas de convenções que vão mudando ao longo do tempo.[1] Neste caso que analisamos, a configuração das poses na foto parece corresponder mais a um arranjo estético: homens, mulheres e crianças se organizam de forma mais ou menos simétrica. Também conversamos sobre a coloração das roupas, pretas e sóbrias, bastante comuns e usuais nas famílias croatas. Nesta fotografia, o homem mais velho veste um paletó de cor escura com uma camisa clara por baixo. As crianças e o outro jovem rapaz também estão de roupas claras; já as mulheres portam vestidos escuros, sendo que a mais velha leva um lenço sobre o cabelo, além de algumas pequenas estampas na roupa.
A prática dos retratos foi também bastante difundida entre migrantes, desde o final do século XIX. Sobre esse tema, Miriam Moreira Leite verificou que, além da homogeneização quanto a uma espacialização e posicionamento das pessoas e objetos diante da máquina fotográfica, ocorria também uma homogeneização das famílias, quer fossem japonesas, negras, caboclas, libanesas, judias, portuguesas, espanholas etc.: “essa homogeneização, resultante em parte dos padrões estéticos incorporados pelos profissionais da fotografia e suas formas de enquadramento, provém também das situações escolhidas para serem fotografadas – os ritos de passagem que legitimam a família como grupo”, podendo representar uma integração social, a melhora das condições de vida ou a permanência no país de origem. Esta autora comenta ainda que as roupas tão pouco possuem características particulares, sendo que até a década de 30 eram comuns as vestimentas consideradas “de domingo”, ou seja, um dia especial para aqueles que comungavam da fé cristã.[2]
Ainda assim, o instante capturado por essa imagem jamais se repetiu. O que viam essas pessoas? Seus olhares nos deixam algumas pistas? Estariam felizes, assustadas, incomodadas, confortáveis? Roland Barthes define, a partir do conceito de “Spectrum”, aquele que é fotografado: uma imagem que não necessariamente corresponde com a pessoa real, algo como uma objetificação do ser humano.[3] Essa espécie de imortalização conecta presente, passado e futuro e nos aproxima, de alguma forma, daqueles que não mais estão aqui, bem como de suas experiências vividas.
Para além dos acervos museológicos, os retratos fotográficos familiares são itens bastante comuns na decoração das casas. Ao elaborarmos a curadoria da exposição temporária “Sinta-se em casa”, entendemos que esses objetos são importantes nos processos de rememoração visual da história e trajetória do migrante, sendo itens afetivos bastante significativos ao compor nossos lares. Muitas pessoas, ao serem questionadas sobre o que levariam consigo ao migrar, falam das fotografias de familiares, quer sejam físicas ou digitais, como um meio de se manter em conexão com os entes queridos e seu passado. Assim, as fotografias podem ser entendidas como “um recurso eminentemente moderno que possibilita a conservação e permanência de uma continuidade visual do passado familiar. Resistindo à aceleração do tempo, elas proporcionam uma orientação para a memória num contexto que tende a ser fragmentário e dispersivo”.[4]
Ao longo do século XX, a difusão e popularização da fotografia permitiu que muitas famílias tivessem acesso ao recurso da autorrepresentação, antes mais restrito a uma elite que podia pagar, por exemplo, um artista que pintasse seus retratos. Com o tempo, essa nova tecnologia passou a desempenhar também um papel de afirmação de status social, a suprir necessidades burocráticas – no caso dos documentos, por exemplo – e subjetivas – como forma de registro de memórias. Atualmente, vivemos em um mundo repleto de imagens; as redes sociais, por sua vez, são ferramentas amplamente utilizadas por muitas pessoas que, por meio de fotografias, criam e recriam sua imagem, para si e para outros, construindo narrativas sobre suas próprias vidas e experiências. Os retratos familiares, no entanto, continuam tendo um espaço especial em nossos corações e em nossas casas – seja em porta-retratos como este, em uma mídia digital dentro de nossos dispositivos eletrônicos.
[1] BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência história. São Paulo: Editora UNESP, 2016.
[2] LEITE, Miriam Moreira. Leitura da fotografia, Estudos Feministas, ano II, 2º sem. 1994.
[3] BARTHES, Roland. A Câmara Clara. São Paulo: Almedina Brasil, 2008.
[4] SCHAPOCHINIK, Nelson. Cartões-postais, álbuns de família e ícones da intimidade. In.: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO, Nicolau (orgs.). História da Vida Privada no Brasil, v.3. São Paulo: Cia das Letras, 2006.