Blog
Compartilhe
Peça a Peça - Nas tramas de um tecido, a construção de uma identidade
Como já abordamos em outra publicação do Blog do CPPR, já no início do século XIX, em razão do desejo de Dom João VI de introduzir a cultura do chá no Brasil, deu-se o ingresso dos primeiros chineses no país. Em 1812, o navio Vulcano chega ao Rio de Janeiro com 300 chineses cultivadores de ervas da Província de Hubei, conhecida pela cultura do chá verde, trazendo mudas e sementes de Macau para a fazenda da família imperial, local em que hoje se encontra o Jardim Botânico Real.¹
Se o cultivo do produto foi considerado um fracasso - muitos trabalhadores chineses se levantaram diante das condições de trabalho precárias e outros tantos fugiram e se mantiveram na cidade como vendedores ambulantes ou cozinheiros ² - o mesmo não pode se dizer da relação migratória entre os dois países. O movimento migratório de chineses para o Brasil é hoje um dos mais expressivos no país.
De acordo com dados do Departamento de Polícia Federal, obtidos em junho de 2016 e disponibilizados pela Coordenação de Políticas para Migrantes, o Município de São Paulo contava com 385.120 migrantes de 198 diferentes nacionalidades. Os migrantes chineses são o quarto maior grupo com 24.894 migrantes.
Pela importância da presença de chineses no país e por toda bagagem cultural e contribuição que ela trouxe e traz ao país, esta semana foi celebrado o Dia Nacional da Imigração Chinesa no Brasil - dia 15 de agosto - data da chegada oficial de chineses a São Paulo, em 1900.
No exercício de explorar algum item de nosso acervo museológico que se relacionasse com esse tema, encontramos uma série de objetos doados por Irene Zoltoshoff. Chegamos, primeiramente, a um broche de filigrana dourada representando um chinês carregando dois baldes. Esse broche encontra-se preso a um vestido chinês de cetim azul claro, bordado com flores, também doado por Irene.

Por si só, esses dois objetos nos dizem muita coisa: ambos são representações bastante emblemáticas da cultura chinesa. O broche traz uma representação figurativa do chinês, com chapéu e vestimentas que nos remetem à sua cultura, cujos baldes o associam ainda ao trabalho rural e a história do desenvolvimento de sua região, associada ao cultivo do arroz - prática que requer água em abundância. O vestido, por sua vez, foi produzido em cetim e apresenta uma padronagem floral bastante tradicional e utilizada no Oriente. O próprio cetim, espécie de trama de seda, tem origem milenar e justamente chinesa. O bicho-da-seda, utilizado na produção dos fios, é uma espécie nativa do norte do país, que atualmente já é cultivado em vários locais do mundo nas áreas da chamada sericicultura. Com o intuito de baratear a produção, encontram-se também cetins que são produzidos a partir da mistura da seda com náilon, raiom ou algodão.
São muitos os questionamentos de caráter ambiental em torno dessa produção têxtil. Para além disso, o cetim é um tecido que continua circulando no mercado internacional da moda. Assim como as estampas florais, é sinônimo de delicadeza e feminilidade, sendo conhecido por seu caimento fino, elegante, luxuoso e sensual. Nas roupas masculinas é muito menos utilizado, compondo somente elementos pontuais e acessórios, como lenços e gravatas, enquanto costumam emoldurar todo o corpo feminino, culturalmente associado à valorização das formas e sua adaptação a padrões estéticos pré-estabelecidos.
Uma interessante questão sobre esses objetos desponta, ainda, ao olharmos para a documentação de seu processo de doação: a antiga dona dos itens, Irene Zoltoshoff, não era chinesa, e sim de origem russa, mas nascida no Japão; no campo “nacionalidade” de seu passaporte, consta ainda “Stateless”, algo como “apátrida”, ou “sem Estado” - informações que tornam sua trajetória um tanto singular. Ela também doou ao Museu uma série de documentos, como um bilhete de viagem da “Royal Interocean Lines” de 18 de junho de 1953 de Hong Kong a Santos, um certificado de vacinação de 29 de maio de 1953, de Shanghai, um pedido de visto em passaporte estrangeiro da República dos Estados Unidos do Brasil de Hong Kong, de 20 de junho de 1953, além de uma foto do Czar Nicolai e sua família.
Segundo os documentos, Irene veio para o Brasil de Hong Kong, sendo que alguns dias antes teria tomado uma vacina em Shanghai. Em seu pedido de visto consta ainda que Irene era datilógrafa e atriz. Não podemos saber o que Irene fazia na China, tampouco porque nascera no Japão. Sabemos, no entanto, que Shanghai era um conhecido ponto de contato entre Ocidente e Oriente. Já no final dos anos 1940 acirrou-se o conflito existente entre comunistas e nacionalistas na China e em 1949 Shanghai torna-se parte da recém-fundada República Popular da China. Essas diversas transformações causaram grandes mobilidades na região - e Irene, possivelmente, fez parte desse cenário.
Assim, essa pequena seleção de objetos, de origens tão distintas, nos mostram um pouco de sua vida e de sua identidade - migrante, fragmentada; uma trama que, assim como o cetim, revela, ainda que parcialmente, um corpo e uma história
¹Shu Chang-sheng. Imigrantes e a imigração chinesa no Rio de Janeiro (1910-1990). Revista Leituras da História, v. ano II, p. 44-53, 2009.
² Jeffrey Lesser. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil.(tradução: Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres). São Paulo: Editora Unesp, 2001.