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A vida na quarentena[1]: Deslocamentos e aglomerações de pessoas em Fortaleza
Este é o relatório parcial de pesquisa não inferencial realizada entre 08 e 11 de abril de 2020 sobre a vida em quarentena e deslocamentos em Fortaleza-CE por ocasião da crise da Covid-19, que faz parte de duas investigações maiores: uma sobre deslocamento e mobilidade urbana e outra que se propõe a analisar a vida durante esse momento de pandemia.
O questionário online continha 15 perguntas, via Google Forms, e foi enviado pelas redes sociais (WhatsApp e Facebook) para diferentes grupos, com a indicação de que fosse respondido por moradores de Fortaleza acima de 15 anos e que fosse compartilhado para mais pessoas, de forma a dar mais capilaridade e atingir sujeitos dos mais diferentes estratos sociais.
A pesquisa se realizou na terceira semana de isolamento social, medida restritiva para conter o processo de contaminação do coronavírus, decretada pelo Governo do Estado em 19 de março de 2020 (posteriormente ampliada para 20 de abril). Fortaleza já aparecia como a cidade com maior índice proporcional de contaminação no país (34,7 casos a cada 100 mil habitantes). No dia 8 de abril, já havia 1.231 casos confirmados, com 43 mortes e a doença estava registrada em 93 bairros da cidade. Enquanto escrevíamos o relatório, 8 dias depois, já eram 2.041 casos e mais do que o dobro de mortes (95) e a doença já estava confirmada em 114 bairros da cidade. No dia 10 de maio, já estava alastrada pela cidade inteira (11.421 casos), acometendo todos os bairros, com 832 óbitos, sendo a taxa de letalidade muito mais alta na periferia. Desde o início da pandemia, 257 novos leitos foram criados, totalizando 987. Mesmo assim, a taxa de ocupação é de 100% nas redes pública e particular.
O formulário esteve aberto durante 72 horas, obtendo 1.977 respostas de residentes de 120 bairros de Fortaleza, de um total de 121. Importa salientar que os respondentes tinham algum acesso à internet.
Os dados levantados corroboram a situação de desigualdade vivida na cidade de Fortaleza. Manter o isolamento e o distanciamento social neste momento não é uma realidade para parte dos entrevistados ou suas famílias (40%). Isso se dá por questões de ordem econômica, como a obrigação de estar fisicamente no ambiente de trabalho; e por questões culturais, comportamentais e que antecedem à pandemia.
Constatou-se que as áreas onde vivem as classes médias, médias altas e altas têm mais condições de manter o isolamento social do que as mais baixas. As pessoas do primeiro grupo saem menos para trabalhar (em torno de 70%, enquanto nos outros estratos esse número cai para, aproximadamente, 50%), não usam o transporte público e vivem em situações com menos aglomerações de pessoas.
Questões culturais, comportamentais e de renda parecem ter grande influência na maneira como os bairros vivenciam (ou não) o isolamento social. Nota-se uma dificuldade nos bairros mais pobres em abrir mão de alguns costumes, como se reunir nas calçadas para beber, jogar e conversar, frequentar feiras livres, jogar bola na rua, continuar indo a eventos religiosos, etc.
Não se pode esquecer, no entanto, que para muitas pessoas residentes nesses bairros, essas são as únicas possibilidades de lazer. Ficar dentro de casa também não é a melhor opção quando se tem moradias tão precárias, com muitas pessoas acomodadas em poucos cômodos e quando as unidades habitacionais guardam pouca distância entre si, não têm janelas, quintais e varandas. Dessa forma, os bairros de menor renda parecem mais propícios a esse descumprimento, ao mesmo tempo em que também são os mais atingidos pela necessidade de se deslocar para trabalhar.
Os dados mostram que há grande circulação pelo território da cidade de Fortaleza, em especial para bairros que são polos de oferta de serviços e comércios. Não à toa, apesar de a contaminação da doença ter iniciado pelos bairros mais ricos, já há uma contaminação disseminada pela cidade, com fortes riscos para as periferias, que vêm apresentando índices de mortalidade muito maiores do que a média.
Dentre os respondentes, o perfil dos que estão saindo para trabalhar é destacado entre os com renda mais baixa, de modo que essa parcela da população está se expondo mais ao risco de se contaminar e, tendo em vista a característica de manutenção de alguns tipos de aglomerações nos bairros de origem, também colocando em possibilidade a maior disseminação da doença.
Como o relatório parcial da pesquisa já apontava, havia um sério risco para os bairros de IDH mais baixos, dada a circulação pela cidade em vista das obrigações profissionais e das dificuldades de manter o isolamento social, discutidas nesse boletim. Os números aumentaram de forma avassaladora na periferia, ao mesmo tempo em que foi diminuindo a cada semana as taxas de isolamento social. O resultado disso foi a decisão pelo lockdown na cidade de Fortaleza, a partir de 8 de maio, com maior fiscalização e aplicação de penalidades para o descumprimento. As reflexões possibilitadas pela pesquisa nos instigaram a continuar a investigação, agora de forma mais específica na periferia, atentando para a recepção dos protocolos de prevenção e a confiança nas instituições e nos atores nesse momento.
Danyelle Nilin Gonçalves é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará e integrante do Laboratório de Estudos em Política, Educação e Cidade (LEPEC).
Irapuan Peixoto Lima Filho é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará e membro do LEPEC.
Harlon Romariz Rabelo Santos é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Rafael de Mesquita Ferreira Freitas é mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Ceará.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
FORTALEZA. Prefeitura Municipal de Fortaleza. Informe Semanal COVID-19. Fortaleza: SMS, 15 de abril de 2020. Disponível em http://coronavirus.fortaleza.ce.gov.br/pdfs/informe-semanal-covid-16a-semana-2020.pdf. Acessado em 15 de abril de 2020.
IPLANFOR. Instituto de Planejamento de Fortaleza. Fortaleza 2040: Iniciando o Diálogo. Fortaleza: Edições IPLANFOR/ Prefeitura Municipal de Fortaleza, N. 2, Ano II, 2015.
[1] Apesar de o termo utilizado para a maioria dos casos ser o de "isolamento" (separação de pessoas e bens contaminados, transportes e bagagens no âmbito intermunicipal, mercadorias e outros, com o objetivo de evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus) e não "quarentena" (restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das demais que não estejam doentes), o último termo acaba sendo o mais popular e de mais fácil alcance. Dessa forma, sabendo que iríamos atingir diferentes públicos, optamos por usar "quarentena" no título do questionário e no título da pesquisa.
Foto da chamada: Praia do Mucuripe na Semana Santa de 2020. Crédito: José Leomar/SVM. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" em branco.
A ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) para divulgação de artigos selecionados do boletim homônimo, iniciado em março de 2020. Os textos podem ser consultados, também, em formato de ebook. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.