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Afinal, o que é o brasileiro? - As "passagens" indígenas pela Hospedaria
Em publicações anteriores desta série, refletimos sobre os princípios do direito gerador da nacionalidade e as dinâmicas de formação nacional e de identificação social para se reconhecer como brasileiro. No último artigo, especialmente, pudemos ver como um projeto político, informado pelas teorias raciais, buscou transformar o Brasil em uma nação mais branca, com consequências importantes para as migrações.
Desde 2020, com a criação do Grupo de Trabalho Histórias Invisibilizadas[1], o Museu da Imigração vem aprofundando a revisão necessária do modo de entender os fenômenos migratórios, considerando como a ideia de raça incide nessa compreensão. Para isso, coloca-se sob análise crítica o seu próprio recorte conceitual e volta-se, muitas vezes, a buscar novas leituras para o seu patrimônio, incluindo a monumental trajetória da Hospedaria de Imigrantes do Brás (1887 - 1978).
Durante o curso "A Hospedaria de Imigrantes e os tijolos do racismo estrutural no Brasil - Deslocamentos indígenas"[2], realizado em 2021, tanto na divulgação quanto durante as aulas, mostramos fotografias que revelavam a presença de alguns grupos indígenas em nosso acervo museológico. Até o momento, temos identificados na documentação iconográfica nove registros, que, pela forma como estão catalogados e pela análise das imagens, sugerem três contextos diferentes de produção. Uma delas abre essa postagem e as demais estão abaixo.[3]


Afinal, quem são as pessoas fotografadas? O que as imagens poderiam revelar sobre o contexto no qual foram registradas? Essas questões são compartilhadas pelas equipes do Museu, mas, até o momento, seguem sem respostas, seja porque esses documentos iconográficos vêm acompanhados apenas das suas legendas, o que impossibilita uma interpretação mais precisa, seja pelo enorme desafio de encontrar outros arquivos que possam lançar novas luzes sobre os porquês, como e quem relacionados às fotos.
As dificuldades de saber quem foram essas pessoas, bem como suas histórias e trajetórias, mostram como o racismo estrutural operou a partir do apagamento, sendo fundamental o trabalho coletivo de reparação dessas histórias e memórias sociais. Ao nos perguntarmos "Afinal, quem é o brasileiro?", não podemos esquecer como os processos de assimilação foram violentos e promoveram genocídios continuados, principalmente contra o povo negro e os povos indígenas que habitam o território brasileiro. Neste texto, portanto, vamos refletir um pouco sobre essas fotografias e seguir algumas pistas para entender a presença indígena na Hospedaria de Imigrantes do Brás.
Indígenas "de passagem"
Apesar de dizerem pouco, as legendas das fotografias acima podem revelar algo pela repetição: nas fotos 1 e 2, a legenda indica a "passagem" desses grupos pela Hospedaria. Em se tratando de uma Hospedaria, que tem como finalidade, justamente, receber pessoas que vem de determinada origem e seguem para ao seu destino, é bastante significativo que o(a) criador(a) do álbum (desconhecido/a) tenha feito questão de indicar esse estado "passageiro" das pessoas retratadas, algo incomum no registro fotográfico de outros grupos sociais. É passageiro porque a sua presença não condiz com a finalidade principal daquele edifício? Ou porque não permaneceram hospedados como os demais migrantes nacionais e internacionais? Essas são questões para futuras pesquisas, mas sigamos um pouco mais adiante.
Ao consultarmos os relatórios da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo[4], publicados anualmente pela instituição e que trazem informações detalhadas sobre a recepção e o acolhimento das pessoas migrantes na Hospedaria, não encontramos menção sobre pessoas ou povos indígenas. Oficialmente, a "passagem" dessas pessoas e desses grupos parece não ter gerado o mesmo interesse que o criador do nosso referido álbum de fotos.
Ao consultarmos os registros de matrícula da Hospedaria, encontramos cinco de pessoas cuja nacionalidade consta como "BRAZ. (INDIO)" e de sobrenome "BOTOCUDO", em 1904, e oito registros de nacionalidade "INDIOS GUARANY", em 1905. Pelas datas em que ocorreram, podemos entender que a Hospedaria deu entrada a essas pessoas como sendo de duas famílias. Fica evidente, também, que na operacionalização da Hospedaria, voltada especialmente à recepção e ao acolhimento de migrantes nacionais e internacionais, a presença indígena gerava certo tensionamento nas lógicas burocráticas, na medida em que o registro do grupo social variou entre o campo do "sobrenome" (caso do "BOTOCUDO") e a nacionalidade (caso do "INDIOS GUARANY"), sugerindo, nesse último caso, a nacionalidade como o campo "mais próximo", dentro do formulário produzido naquela instituição, do que poderia ser considerado o status de um grupo indígena. Apesar dessas informações serem valiosas para confirmar a presença dessas pessoas indígenas na Hospedaria, elas, por si só, pouco ajudam na compreensão das fotografias em questão.
São nos jornais, porém, tratando do cotidiano da cidade e a sua movimentação, que vamos encontrar algumas pistas para entender como a Hospedaria fez parte dessas outras histórias de deslocamentos e atividades[5]. Em 15 de abril de 1904, o jornal O Estado de São Paulo publicou a seguinte matéria:
Indios Coroados
Hontem, pouco depois de meio dia, o capitão dos índios que estavam acampados na villa Cerqueira Cesar, veio, em companhia de outros, até à cidade, apresentar-se aos poderes competentes para que os atendessem ao fornecimento de diversos instrumentos apropriados à lavoura, roupas, etc.
O sr. Dr. Chefe de polícia prometeu-lhes tudo o que estivesse ao seu alcance, mandando-os em seguida à Secretaria da Agricultura, onde o sr. Dr. Luiz Piza encarregou o sr. Luiz Ferraz, chefe da segunda secção de providenciar primeiramente quanto ao fornecimento de roupa para as mulheres e mais tarde para a remoção dos índios para a Hospedaria de Immigrantes.
A notícia faz menção a um "acampamento", montando na 'villa Cerqueira Cesar", de indígenas que vieram à cidade para solicitar, até onde se sabe, instrumentos para a lavoura. Ao seguir as notícias da época sobre esse "acampamento", podemos perceber que foi um acontecimento que mobilizou diversos atores da sociedade paulistana[6], que, além de buscar roupas, acolhimento e alimentação em instituições como a Hospedaria de Imigrantes, promoveu a arrecadação de fundos para a "resolução" do problema. Da leitura dessas notas jornalísticas, podemos entender que a Hospedaria serviu para abrigar pessoas que eram dissuadidas a abandonar esse "acampamento" e receber esses instrumentos de trabalho, constando, inclusive, a resistência de quatro delas a deixar esse terreno.
Ao pesquisar a presença indígena na cidade do Rio de Janeiro entre 1880 e 1889, a pesquisadora Ana Paula da Silva, em sua tese de doutorado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), busca entender o que ela denomina "diplomacia indígena": os "casos de lideranças indígenas que caminhavam ao Rio de Janeiro, motivados por diferentes interesses pessoais ou de suas comunidades"[7] (p.18). Segundo a pesquisadora, essas práticas podem ser encontradas, pelo menos, desde os anos 1600, quando, em meio a um cenário de invasão e guerra imposta pelo poder colonial, determinados grupos passaram a negociar, com os poderes centrais dos diferentes impérios, modos possíveis de pactuação e diminuição da agressão colonial. De acordo com ela, posteriormente, essas caminhadas de lideranças e grupos indígenas à cidade tiveram como objetivos "denunciar abusos e violências, reivindicar direitos, sobretudo seus territórios invadidos, arrendados e usurpados por colonos sesmeiros, etc"[7] (p. 191).
Essas idas à cidade, portanto, fazem parte de uma ação de longa duração desses povos de relembrar o pacto possível de não agressão, diante da constante e incessante invasão iniciada no mal chamado "descobrimento da América". Em pesquisas sobre outros povos indígenas[8], fica evidenciado que essa visita aos poderes centrais incluía a solicitação de ferramentas e armamento, tanto para garantir a sobrevivência nesses territórios, ao qual se viram reduzidos diversos povos indígenas no processo de imposição de um pacto, quanto para a garantia da segurança desses lugares, frente aos interesses locais de exploração econômica. Um caso similar parece ter sido, por exemplo, a notícia encontrada no dia 24 de outubro de 1904, que menciona a vinda de pessoas indígenas denominadas pelo jornal de "botocudos", de Botucatu, para "reclamar ao presidente do Estado armas e munições para o pleito eleitoral do dia 30". Esse grupo, segundo a nota, posteriormente seria enviado à Hospedaria e receberia enxadas no lugar do armamento solicitado.
Uma recorrência importante nessas "passagens" de líderes e grupos indígenas pela cidade é a presença policial e militar na mediação da relação dessas pessoas com as instituições. Na publicação jornalística citada acima ou nas pesquisas consultadas aparecem figuras como os chefes de polícia, responsáveis de escutarem as demandas dessas pessoas, encaminharem para outras autoridades e gerenciarem a circulação delas. Em algumas ocasiões, inclusive, são as próprias delegacias de polícia ou os destacamentos militares que passam a servir de lugar de hospedagem "passageira"[8].
De pesquisas e exposições anteriores[9], sabemos como a Hospedaria de Imigrantes do Brás era marcada por ritos institucionais, ordenadores do cotidiano, conformando um "espaço orientado"[10], onde se sabia, com bastante precisão, como determinados grupos entrariam no espaço, permaneceriam e sairiam. Disso, se faz bastante coerente que em situações de "emergência", como mostradas na nota acima, a Hospedaria tivesse servido de lugar de acolhimento temporário para essas pessoas, ainda mais considerando o seu caráter único nacionalmente, em se tratando de dimensão e de estrutura instalada para o acolhimento. Corrobora, também, a essa análise, o fato de que, em outras ocasiões, a Hospedaria assumiu diferentes finalidades, servindo como local de abrigo e atenção à população em situação de rua ou, até mesmo, de prisão.
Apesar de não ser fácil encontrar os registros documentais dessas atividades na Hospedaria, sendo um dos desafios colocados pelas "Histórias Invisibilizadas", o caráter único assumido pelo equipamento como instrumento de política pública, voltada especialmente a receber imigrantes do continente europeu, gerou as condições para esse grande monumento figurar em algumas histórias de deslocamentos e atividades de diferentes grupos que habitam o território brasileiro, entre eles, os povos originários.
Nesse texto, além de reapresentar as fotografias que indicam a presença de pessoas e grupos indígenas na Hospedaria, cujas histórias ainda estão para serem contadas, pudemos levantar algumas hipóteses baseadas em documentação. Ao apreciarmos, principalmente, como a Hospedaria aparecia vinculada às visitas desses grupos à cidade, pudemos contextualizar essas "passagens" dentro de um processo mais amplo de deslocamento desses povos indígenas e da defesa dos seus direitos conquistados por meio da negociação, no embate desigual de forças contra os poderes coloniais.
Dessa perspectiva, portanto, e considerando os artigos anteriores que refletiram sobre o processo de formação da identidade nacional, sugerimos dois questionamentos importantes:
1) Precisamos nos perguntar como a nacionalidade, com as suas consequências políticas de pactuação dentro de um cenário de embate existencial e político, foi uma imposição para muitos povos que habitam e habitaram o território brasileiro;
2) Devemos conhecer o modo como diferentes povos resistiram, negociaram, denunciaram e reivindicaram os seus direitos, quando certa pactuação foi imposta ou aceita.
Com esses pontos, finalizamos o texto com um novo questionamento decorrente da nossa pergunta inicial dessa série: "Afinal, como nos tornamos brasileiros?".
Legenda foto da chamada: Indios Goyanos de passagem pela Hospedaria. Crédito: Acervo Museu da Imigração/APESP.
Referências
[1] Para mais informações sobre o GT: http://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/avulso/arquivos/programa-curso-a-hospedaria-e-os-tijolos-do-racismo-estrutural-no-brasil-01-12-2020-21-03.pdf.
[3] Agradecemos à professora Antonia Calazans, que, gentilmente, compartilhou um dos seus escritos, ainda não publicado, sobre o tema das viagens de grupos indígenas às cidades. Esse trabalho foi fundamental para o recorte de pesquisa assumido no presente texto.
[4] Para a escrita desse texto, realizamos pesquisa entre essa série de relatórios nos primeiros anos da década de 1900 e a década de 1920.
[5] Encontramos, ao todo, nove menções no jornal O Estado de S. Paulo e uma menção no Correio Paulistano, entre 1904 e 1911, que se referiam à entrada de diferentes povos indígenas na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Encontramos nos arquivos do jornal "O Estado de S. Paulo" menções dos grupos "Coroado", "Botocudo", "Guarany" e "Caioá", que deram entrada a Hospedaria de Imigrantes do Brás. A seguir, uma pequena síntese dessas notas:
Abril de 1904: Vinda do Rio do Peixe, de 48 indígenas, referidos no jornal como "coroados" e "botocudos", que se instalaram na Villa Cerqueira Cesar. A decisão do governo era de que os indígenas se retirassem. Foram encaminhados para a Hospedaria de Imigrantes do Brás. Duas crianças morreram.
Outubro de 1904: Quatro indígenas vindos de Botucatu, chamados "botocudos", incluindo o capitão para pedir armas para ao pleito eleitoral. Receberam enxadas.
Março de 1905: Chegada de 20 pessoas do povo denominado "Guarany", do aldeamento do Bananal, em Conceição. Vieram para indicar o capitão da aldeia, porque este havia morrido. O secretário da agricultura deu a permissão para a estadia dos indígenas no equipamento. Também receberam na hospedaria materiais para a lavoura. Seguiram para Santos para voltar a Itanhaém. O relato é de que haviam 100 pessoas na aldeia a que regressaram.
Fevereiro de 1911: 12 indígenas "caioás", que vieram de Santa Cruz do Rio Pardo. 'Os caioás aqui chegados tiveram anteriormente o seu aldeamento em Pirajú, mas dali foram expulsos de suas terras, e tiveram que procurar outras terras, nas divisas com Cuiabá, desde onde vieram a pé até Santa Cruz". Mencionam a mediação policial.
[6] Encontramos outras notas jornalísticas mencionando esse episódio nos dias 16 e 17 de abril de 1904.
[7] SILVA, Ana Paula da. O Rio de Janeiro continua índio: território do protagonismo e da diplomacia indígena no século XIX. 2016.
[8] SCHROEDER, Ivo. Política e parentesco nos Xerente. 2006. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
[9] É o caso, por exemplo, da exposição "Hospedaria 130" realizada pelo Museu da Imigração.
[10] CHRYSOSTOMO, M. I.; VIDAL, Laurent. From the deposit to the reception accommodation for immigrants: the genesis of an "inspection gateway center" on the path to emigration to Brazil. Historia, ciencias, saude--Manguinhos, v. 21, n. 1, p. 195-217, 2014.