Blog

Compartilhe
De vírus, máscaras e cestas básicas: imigrantes da periferia de São Paulo em tempos de pandemia | 2022
Por Erika Andrea Butikofer
Imagens de Pedro Fratino
A cidade de São Paulo tem se consolidado, na última década, como um local relevante de recepção e acolhida de imigrantes de diversos países do Sul Global[1] tornando-se uma referência ao atendimento a esta população no país, por concentrar diversos atores da sociedade civil e governamentais, imigrantes e não imigrantes.
Em tempos de pandemia do novo coronavírus, proponho, neste momento, refletir sobre como as redes da sociedade civil e das organizações institucionais que atuam com imigrantes têm se mobilizado no atendimento a esta população situada em áreas periféricas da cidade.
Esse esforço será amparado pela teoria ator-rede (TAR), na forma cunhada por Bruno Latour[2][3], onde se dá especial atenção à agência das coisas. Nesse contexto, entendo o vírus como um importante agenciador de relações sociais, apto a produzir efeitos na articulação desses agentes organizados em rede. Com base em Latour, analiso o papel dos mediadores das organizações da sociedade civil e das instituições governamentais, a dinâmica da rede — composta por atores sociais híbridos, humanos e não-humanos — os acontecimentos e efeitos por estes produzidos. Pretendo refletir aqui sobre a mobilização das instituições que trabalham com este grupo social frente aos auxílios emergenciais e às políticas públicas elaboradas para gerenciar os desafios impostos pela pandemia. Assim, busco entender esse processo em rede, não pelas partes que o compõem, mas pelas conexões, inter-relações e os efeitos mútuos produzidos a partir do vírus.
A análise parte do trabalho realizado no âmbito da atuação do Coletivo Conviva Diferente, do qual sou idealizadora e que, desde 2016, ministra aulas de português para imigrantes em Guaianases, região do extremo leste da cidade de São Paulo.
No início da pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, o Conviva Diferente elaborou uma Carta-Manifesto[4]: Apoiem os imigrantes e refugiados de Guaianases!, com base em relatos de alunos para, cedo, publicizar a situação precária de imigrantes e refugiados, em virtude da condição de extrema vulnerabilidade que se encontravam. A partir da análise do vírus como agenciador da rede e dos efeitos gerados pela Carta-Manifesto, identifico que uma rede de apoio e solidariedade foi ativada com o objetivo de dar visibilidade e garantir os direitos sociais a essas pessoas. A Carta-Manifesto é ponto de partida da análise e não o seu ponto central, pois sabemos que existem diferentes redes de solidariedade e de planejamento de ações, como tantas outras que foram ativadas a partir da pandemia.
Portanto, parto do entendimento que, em rede, nada é totalmente visto como inteiro, concreto ou acabado. Tudo está em constante transformação, em busca de significados que deem voz aos mediadores. Vírus, máscaras, cestas básicas, por exemplo, não transportam apenas significados sociais ou materiais para o combate da pandemia, são eles mesmos pontos de agenciamentos que tecem a rede "(...) de tal modo que façam os outros fazerem coisas"[3]. A partir disso, identifico que instituições governamentais, de imigrantes e da sociedade civil adaptaram seu escopo de trabalho às circunstâncias emergenciais, como as que relato agora.
No dia 14 de março de 2020, tínhamos agendado com a equipe responsável pelo atendimento itinerante do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI), para levarem os seus serviços ao Centro Educacional Unificado (CEU) Jambeiro, local onde ministramos nosso curso de português, para oferecer orientações sociais, jurídicas ou de regularização migratória aos nossos alunos haitianos, nigerianos e camaroneses. Apesar da ação ter sido muito esperada por eles, a atividade planejada teve de ser cancelada no dia anterior, seguindo as orientações de isolamento social dadas pela coordenação da escola e pela prefeitura. Estávamos no início da quarentena devido à pandemia do Covid-19.

Nesse sentido, a produção da Carta-Manifesto teve o intuito de difundir a situação vivenciada por nossos estudantes, moradores de Guaianases, Lajeado e região, mas com a finalidade também de dar visibilidade à realidade semelhante de muitos outros imigrantes residentes de outras áreas periféricas ou não da cidade.
A Carta-Manifesto serviria, além do mais, para assinalar algumas demandas de políticas de saúde pública e assistencial ao Estado, no âmbito federal, estadual e municipal, para garantir a realização da quarentena desta população, com direito à proteção e preservação da vida. Como medidas prioritárias, foram elencadas no documento: o auxílio-aluguel, a manutenção e ampliação dos benefícios assistenciais, a isenção do pagamento de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), água e luz, a garantia de alimentação, por meio de distribuição de cestas básicas e a garantia de atendimento em equipamentos públicos de saúde e assistência, independentemente da situação migratória ou documental dos imigrantes.
Todas essas determinações foram apoiadas por 25 entidades. Organizações, coletivos, igrejas imigrantes, movimentos sociais, comunidades indígenas, cátedras, projetos e programas de diversas universidades que trabalham com a questão migratória ou não, aderiram ao documento provocando efeitos diretos para determinadas organizações e imigrantes.
O Coletivo Conviva Diferente, que atua regularmente com diferentes parceiros, depois da produção e ampla divulgação da Carta-Manifesto, viu-se envolto em uma outra nova rede de entidades que atuam com imigrantes, com o intuito de compartilhar e discutir a situação que observamos na comunidade e no território onde atuamos. A rede na qual nós fomos ativados é constituída por mais de 50 membros e representantes de organizações parceiras que vem acompanhando o Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) de São Paulo, e fazem parte do Grupo de Trabalho de Integração Local, órgão consultivo vinculado à Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente (CPMigTD), da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Estes seriam, talvez, os atores que "falam" por uma rede com maior representatividade da comunidade imigrante.
Fui convidada, em nome do Coletivo Conviva Diferente, a participar da 1ª Reunião do Grupo de Trabalho de Integração Local, que viria a ocorrer remotamente no dia 27 de março. A reunião tratou de ouvir as demandas da população imigrante e das instituições que trabalham com eles nos mais diferentes territórios da cidade. Destacou-se a grande necessidade de garantir a visibilidade deste grupo social em meio à pandemia, como também sua proteção e direitos.
Nessa rede foram apresentadas a campanha "Regularização Já"[5], a de doação de cestas básicas, produção de materiais virtuais em diversas línguas para orientar os imigrantes sobre seus direitos e benefícios, como também iniciativas de apoio para confecção de máscaras por imigrantes periféricos ou em situação de grande vulnerabilidade social. Contudo, a realização do cadastro para o Auxílio Emergencial pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal ou a retirada do benefício do governo federal nas agências bancárias foram apontadas como umas das grandes dificuldades encontradas pela população imigrante devido à não aceitação da documentação migratória a dizer, Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM) e o "protocolo de refúgio". Nesse sentido, foram elaboradas, por membros da rede, minutas para serem encaminhadas para o Secretário Especial da Receita Federal do Brasil e para a Presidência da Caixa Econômica Federal, especificando todas as adversidades enfrentadas pela comunidade imigrante que depende dos benefícios emergenciais, entre elas a fome e o despejo de suas moradias.
A partir daqui, encontramos outros actantes não humanos operantes na rede: documentos, minutas, celulares, fake news, aplicativos e agências bancárias, "mediadores" quando assumidos como "fios que conectam" e, em associação, produzem efeitos e significados. São todos eles igualmente importantes para que as informações e os auxílios emergenciais cheguem de forma correta para os imigrantes. No caso das fake news proliferadas em grupos de WhatsApp, como aquelas constatadas no grupo de nossos próprios estudantes, tal mediação distorce e altera informações que aparentemente estariam associadas, produzindo outros efeitos em rede e acarretando também novas frentes de ação e trabalho para a equipe do Conviva Diferente.
Durante as reuniões semanais da rede, o CMI, através do Grupo de Trabalho Integração Local, disponibilizou a todos os participantes, Coletivos, Associações, Órgãos Municipais, Estaduais, Federais e Organizações Internacionais que atuam na garantia de direitos da população imigrante de São Paulo, um formulário on-line sobre o Mapeamento Colaborativo da Rede de Organizações que estavam trabalhando pela garantia de direitos da população imigrante no contexto da pandemia do Covid-19. O questionário foi elaborado com o propósito de identificar como cada parceiro estava funcionando, quais são as demandas dos imigrantes que atendem, além de divulgar as ações emergenciais de cada organização.

Apesar do convite a todos, apenas 13 organizações responderam ao formulário. Foram elas: 8 coletivos/associações/organizações de apoio a imigrantes, 2 coletivos/associações/organizações de imigrantes, 2 órgãos públicos do município e apenas 1 classificado como "outros". Com o preenchimento do formulário, vimos que as comunidades imigrantes mais assistidas foram: República Democrática do Congo, Venezuela, Bolívia, Síria, Angola e Haiti, nessa ordem decrescente. No requisito "demandas", as principais encontradas foram, em primeiro lugar, acesso ao trabalho e renda, e em segundo lugar empataram: o acesso à alimentação e à assistência social e acolhida institucional. Pelo mapeamento, foi possível identificar também que a região da zona leste foi uma das mais assistidas pelas organizações que responderam ao questionário.
Mesmo contando com pouca adesão das partes integrantes da rede no preenchimento do formulário do Mapeamento Colaborativo, constatou-se que uma das primeiras ações emergenciais que poderiam advir do poder público municipal é a garantia de doação de cestas básicas, o que veio a se concretizar por meio do Programa de Doação de Cesta Básica da Prefeitura – Cidade Solidária.
O Conviva Diferente foi um dos agentes contemplados por essa ação, e outra rede foi formada a partir da coleta e entrega de 100 cestas básicas para alunos atendidos pelo Coletivo. Tomo como eixo condutor as mediações e as representações sociais desse novo arranjo e agenciamento, ou seja, na concepção da teoria ator-rede, a análise de acontecimentos, fluxos e ações em curso e suas interações.
Para fazer parte do Programa de Doação de Cesta Básica da Prefeitura – Cidade Solidária: Ação de Voluntariado de São Paulo Contra o Coronavírus, as entidades participantes precisavam ter o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) para que, depois, pudessem realizar a prestação de contas ao poder público. Por não termos CNPJ, conseguimos a doação de cestas por meio de uma organização conhecida pela sua atuação com imigrantes em São Paulo da qual nunca tínhamos nos aproximado antes. A rede de contatos entre os integrantes do Conviva Diferente foi fundamental para selar a importante parceria.
Por termos sido contemplados pela ação da Prefeitura, em maio, pudemos assistir a 137 famílias imigrantes e brasileiras, mais do que o dobro do mês anterior. A grande doação de cestas básicas se deve, em grande parte, pelos efeitos produzidos pela Carta-Manifesto, que, em seguida, foi divulgada em um portal de notícias que difunde matérias sobre questões migratórias e em outro vinculado à uma universidade que divulga ações relacionadas ao espaço público e ao direito à cidade, mas também pela atuação da própria rede de solidariedade pró-migração que foi ativada a partir do Covid-19.
Cabe compreender, nesse contexto como as diferentes comunidades imigrantes veem e interpretam o vírus, e a compreensão que têm sobre a pandemia. Diferentes significados, contextos e situações podem ser construídos a partir de novas narrativas. Precisamos delas para compreender melhor a disseminação do novo coronavírus nas periferias das grandes cidades.
Para Latour, a própria comunicação é uma mediação que deve ser levada em conta para compor o panorama das redes. Este texto inclusive pode ser entendido como um agente mediador, na espera que outros se produzam, e, em rede, possam dar uma dimensão maior sobre a situação da pandemia de coronavírus entre imigrantes moradores de regiões extremas da cidade, suas estratégias e redes de solidariedade e sobrevivência.
Erika Andrea Butikofer é bacharela em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Possui especialização em Direitos Humanos, Diversidade e Violência (UFABC). Atualmente, concluiu o mestrado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. É idealizadora e cofundadora no Coletivo Conviva Diferente, um grupo independente e multidisciplinar atuante, desde 2014, na garantia de direitos de imigrantes que compõem o novo fluxo migratório na cidade de São Paulo. Também é professora de português no mesmo Coletivo. Participa de vários grupos de pesquisa, dentre eles: o Grupo de Estudos do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP), o Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais da UFABC (GEDHRI)/UFABC e Cátedra Sérgio Vieira de Mello (UFABC) e o Grupo de Estudos e Pesquisa em Migrações Internacionais (MIGREPI)/UFABC.
Pedro Fratino é fotografo que cobre ações da Cruz Vermelha Brasileira de São Paulo, atuando, principalmente, no departamento de Restabelecimento de Laços Familiares. Cursou Relações Internacionais na FAAP.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] BAENINGER, Rosana. et alii. (Orgs.). Migrações Sul-Sul. Campinas, SP: Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" - Nepo/Unicamp, 2018.
[2] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica.1°ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
[3]_____________. Reensamblar lo Social: una introducción a la teoría del actor red. Buenos Aires: Manantial, 2008.
[4] Redigida pelo antropólogo Alexandre Pereira Branco. Disponível em: https://www.change.org/p/secretaria-dos-direitos-humanos-de-s%C3%A3o-paulo-a-situa%C3%A7%C3%A3o-prec%C3%A1ria-dos-imigrantes-e-refugiados-da-periferia-de-s%C3%A3o-paulo-na-pandemia. Acesso em: 05 de abril de 2022.
[5] Movimento que defende a regularização daqueles que vivem no Brasil em situação irregular, provisória ou indocumentada.
A chamada "Mobilidade Humana e Coronavírus" é uma iniciativa do Museu da Imigração para divulgação de artigos, ensaios e materiais visuais selecionados, por meio de edital aberto entre fevereiro e abril de 2022. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série homônima, seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.