Blog
Compartilhe
De volta à natureza? Utopia e dinâmicas sócio-espaciais no Brasil durante a pandemia da COVID-19
Por Danielle Heberle Viegas[1]
Imagem de Ana Carolina Carvalho
Entre as questões relacionadas à pandemia da COVID-19, mobilidade não parece ser uma das mais proeminentes. De fato, expressões como "quarentena", "home office", "lockdown" e outras que começaram a compor um léxico, que era específico do evento, parecem estar mais de acordo com qualquer versão preliminar de uma análise social da pandemia do que abordagens voltadas para os movimentos populacionais. Entretanto, como na maioria das generalizações, isto é parcialmente um engano: em um relatório publicado em 2020, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) destacou que enquanto a mobilidade global diminuiu, os efeitos catastróficos da pandemia sobre os migrantes nunca foram tão fortes, revelando assim a importância de fazer uma análise mais abrangente destas mobilidades[2]. No caso da América Latina, esta situação tem sido descrita como "mobilidade para a imobilidade"[3], de acordo com sucessivas condenações que relataram o drama daqueles apanhados em uma situação de refúgio ou deslocamento quando as fronteiras de alguns países foram subitamente fechadas.
Além da imigração no sentido mais estrito da palavra, outros processos amplamente relacionados à mobilidade da população também foram observados desde o início da pandemia, tanto no continente sul-americano quanto ao redor do mundo. Estes têm variado desde novas configurações de padrões de deslocamento nas regiões metropolitanas, migrações "de retorno" da cidade para o campo que contrariaram as tendências do século XX até mudanças ocasionais a partir de grandes centros urbanos. A mídia, que ao mesmo tempo faz reportagens e dá forma a tendências e narrativas, não perdeu tempo em espalhar supostas novidades nas primeiras páginas de jornais, websites e relatos da mídia social: na Espanha, El País classificou o retorno ao campo como uma utopia moderna, enquanto a famosa revista alemã Der Spiegel e a BBC do Reino Unido enfatizaram como o preço das propriedades ao redor das metrópoles sofreu um tremendo aumento, dada a forte demanda por propriedades em áreas verdes.
No Brasil, regularmente reportado como um dos países mais afetados pela COVID-19, devido ao número de mortes durante a pandemia, a mobilidade da população também começou a ser noticiada pela mídia nacional: em 26 de junho de 2020, a primeira página do jornal brasileiro Zero Hora, detalhava as preocupações do governo com relação ao movimento das capitais em direção à costa atlântica. O Estado de São Paulo também abordou o fenômeno "Novo Rural" e sua tendência ascendente durante a pandemia.
Tais reportagens são apenas a ponta de um iceberg, cuja base é o aumento da mobilidade, precisamente, para lugares genericamente associados a expressões idealizadas da natureza fora das grandes cidades do país, que passaram a ser apoiados por números fornecidos por observatórios, agências de turismo, empresas imobiliárias e pesquisas acadêmicas[4]. As mobilidades são ativadas por uma ampla gama de experiências e ofertas, que vão desde o turismo e suas múltiplas variações, experiências utópicas contemporâneas no campo, aluguéis oferecidos por plataformas globais como a AirBnB e, por último, a aquisição de segundas ou casas de campo.
A partir desta visão geral, há pelo menos duas tendências que têm sido mostradas durante a pandemia: o turismo de natureza e a aquisição de terrenos em condomínios com acesso controlado, popularmente chamados de condomínios fechados. Para ambas as modalidades, sua localização é a chave: embora o fenômeno possa ser mapeado em quase todo o Brasil, ele assumiu proporções impressionantes no Sudeste, o que se explica em parte pelo acúmulo histórico e pelo aumento da renda naquela região; além disso, a renda tem sido ultimamente influenciada pelos altos rendimentos trazidos pela indústria do agronegócio. Embora ainda não possam ser definidos estatisticamente, tais deslocamentos – uma vez reconstruídos por diferentes fontes e discutidos dentro de uma perspectiva histórica – tornam-se pistas para entender um fenômeno que encontra ecos no passado e no presente da sociedade brasileira, e revela várias conexões globais, bem como rupturas e marcos históricos regionais.
Assim, surge a questão: o que os historiadores são capazes de dizer sobre essas mobilidades populacionais "em direção à natureza"? O que isso significa para a "euforia do movimento, mobilidade e circulação"[5] que caracteriza a comunidade histórica global? Ao considerar estas questões, o presente texto sugere uma abordagem teórica baseada na história ambiental e na história urbana. Desde os anos 90, um ponto de vista mais cultural em relação ao conceito de natureza tem fornecido uma perspectiva interessante para superar a habitual oposição binária entre natureza e cultura, que marcou o início da história ambiental como uma disciplina independente. Esta "virada cultural" argumentou que a natureza é uma construção social e não uma determinada entidade, explicável per se[6]. Sugere-se que para entender as mobilidades da COVID-19, é necessário criticar os discursos sobre a natureza, o tropical e sua propagação às paisagens e aos tempos, referindo-se à idéia de translocalidade[7]. O conceito procura estabelecer elementos para compreender a tensão entre movimento e ordem; é particularmente sensível às tentativas de dar sentido a um mundo cheio de fluxos. Segundo McNeil: "A história ambiental reconhece que o mundo natural não é apenas o pano de fundo dos eventos humanos, mas evolui por si mesmo, ambos próprios em resposta às ações humanas. A natureza é agora natural e cultural, pelo menos na maioria dos lugares da Terra[8].
Com esta inspiração, sugiro entender quais significados sociais relativos à natureza foram mobilizados por estes deslocamentos "em direção à natureza". Há pelo menos três reflexões importantes que têm guiado as características dos deslocamentos discutidos neste texto: 1) a ideia recorrente de que a natureza está além da cidade e deve ser procurada e/ou domada; 2) os usos sociais da natureza: o que e quem ela serve 3) e, finalmente, de que natureza se fala.
As peculiaridades destacadas aqui têm como objetivo não perder de vista uma discussão historiográfica sobre os usos sociais da natureza no Brasil no passado e no presente, e os marcos que o colonialismo acrescentou à noção de tropicalidade no país, embora haja muitos paralelos com a realidade global. Por outro lado, a busca de espaços naturais foi uma tendência que se deu além das fronteiras do Brasil. A valorização da natureza como componente da identidade e da cultura nacionais também não é uma peculiaridade do país. Não existe, portanto, relação causal exclusiva entre o fenômeno dos deslocamentos e as espacialidades naturais focalizadas no Brasil.
De fato, mesmo que estes argumentos baseados em um ponto de vista global sejam válidos, eles não podem alimentar a dissolução total dos problemas nacionais e regionais. Embora a busca por espaços naturais – e, especialmente, espaços naturais fora das regiões metropolitanas – não tenha sido algo específico do Brasil, é neste país que a discussão assume contornos muito interessantes, dada a combinação de sua fama mundial associada à natureza tropical, a situação terrível da interiorização da COVID-19 e os vários projetos abrigados dentro de seu passado que correlacionam utopia e natureza. Mas o que exatamente relaciona utopia, mobilidade, natureza e pandemia no Brasil?
O peso desses deslocamentos é imenso na produção de espaços de diferenças acelerados pela pandemia. A natureza no Brasil, sobretudo, serve à diferença de classe em uma mistura de repaginação do passado colonial com o capitalismo verde e o ambientalismo neoliberal[9]. A condição social é aqui destacada não só por razões econômicas, mas também culturais. Ao considerar os deslocamentos como mero resultado do acaso ou apenas uma oportunidade de bem-estar por parte de setores socialmente privilegiados da população, recorremos a verdades generalizantes e relativismos aos quais a história certamente não se presta. No caso do Brasil, isto significa abordar os significados da natureza em um país essencialmente associado ao tropicalismo, e por que a natureza está associada ao bem-estar – que não é uma marca absoluta para outros grupos sociais se não as classes urbanas médias citadas, como aquelas que vivem da terra ou mesmo têm uma cosmovisão holística da natureza e veem nela muito mais do que um espaço de uso, como os povos indígenas.
Até o presente momento, as ideias ligadas à natureza tropical têm desempenhado um papel central no desenvolvimento das cidades e arredores brasileiros durante a pandemia, pois iluminam uma questão central para os historiadores urbanos e ambientais interessados em pesquisar o passado, presente e futuro dos ideais utópicos e da conexão global. Do ponto de vista da saúde pública, os deslocamentos sazonais em geral não só sobrecarregaram o sistema de saúde pública como também contribuíram para o que veio a ser chamado de internalização do vírus Sars-Cov-2, o que em alguns casos significou uma inversão da tendência inicial da pandemia - o que indicou as capitais como sendo os epicentros de propagação do vírus[10]. De uma perspectiva histórica, os deslocamentos não são novidade no Brasil - amplamente marcados por altas taxas de trabalho informal e desigualdades regionais[11], dos quais a configuração agrária e urbana é historicamente guiada pelos fluxos populacionais. Por outro lado, há contornos sociais muito claros nestes deslocamentos que não permitem que eles sejam colocados lado a lado com as migrações históricas no Brasil, motivadas por problemas sociais.
Portanto, há uma certa urgência em questionar se as mobilidades induzidas pela natureza no Brasil devem ser consideradas utopias. Para ser ainda mais claro, é preciso perguntar se as culturas utópicas podem ser instrumentalizadas na criação de distopias eco-sociais. A inversão da lógica moderna das cidades que oferecem oportunidades e emprego, reforçada particularmente na segunda metade do século XX com as migrações do campo para a cidade, torna possível cogitar o retorno ao campo como uma completa distopia do Brasil contemporâneo.
Danielle Heberle Viegas é historiadora, doutora e mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente, realiza pós-doutorado na Ludwig-Maximilians-Universitat Munchen. Principal pesquisadora do projeto "Back to nature: COVID-19, utopia and socio-spatial dynamics in Brazil", vinculado ao programa "Corona Crisis and Beyond – Perspectives for Science, Scholarhip and Society".
Ana Carolina Carvalho é arquiteta urbanista e trabalha com mobilidade urbana como projetista viária em projetos de redesenho urbano. Também é pós-graduanda em Mobilidade e Cidade Contemporânea pela Escola da Cidade - SP.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[1] Este texto foi originalmente apresentado no Digital Symposium "Epidemics and Othering: The Biopolitics of COVID-19 in Historical and Cultural Perspectives", na Ruhr-University Bochum, Alemanha. A versão original está em inglês.
[2] OIM, COVID-19 and the State of Global Mobility in 2020. Available on: https://publications.iom.int/books/COVID-19-and-state-global-mobility-2020, 2020.
[3] Por favor, consulte: https://www.inmovilidadamericas.org.
[4] Nicolelis, m. a. l.; Raimundo, r. l. g.; Peixoto, p.; Andreazzi, C. S. The impact of super-spreader cities, highways, and intensive care availability in the early stages of the COVID-19 epidemic in Brazil. Scientific Reports, vol. 11, artigo n. 13001, 2021.
[5] Conrad, Sebastian. What is Global History? Princeton, 2016.
[6] Carey, Mark. Latin American environmental history: current trends, interdisciplinary insights, and future directions. In: Environmental History 2009, v.14, p. 221–252.
[7] Ulrike Freitag; Achim von Oppen: 'Translocality': an approach to connection and transfer in Area Studies. In: Ulrike Freitag; Achim von Oppen: Translocality: The study of globalizing processes from a southern perspective. Leiden, Boston 2010, p. 1–24.
[8] Mcneill, John. The State of the Field of Environmental History. Annual Review of Environment and Resources. 35. 10.1146/annurev-environ-040609-105431. (2010).
[9] Acker, Antoine; Kaltmeier, Olaf; Tittor, Anne. "The Social Production of Nature Between Coloniality and Capitalism (Introduction)". Forum for InterAmerican Research, v.9, n. 2, p. 5-24, 2016.
[10] Vander L. S. Freitas. Konstantyner, Thais C. R. O; Feitosa, Jeferson; Sepetauskas, Catia S. N.; Santos, Leonardo B. L.."The correspondence between the structure of the terrestrial mobility network and the emergence of COVID-19 in Brazil". 2020. DOI: https://doi.org/10.1101/2020.05.17.20104612.
[11] Santos, Milton. A Natureza do Espaço Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: EDUSP, 2017.
A chamada "Mobilidade Humana e Coronavírus" é uma iniciativa do Museu da Imigração para divulgação de artigos, ensaios e materiais visuais selecionados, por meio de edital aberto entre fevereiro e abril de 2022. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série homônima, seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.