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Do vírus chinês à variante brasileira: a estigmatização de brasileiros no exterior em tempos de COVID-19
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, pandemia é entendida enquanto um processo de disseminação mundial de uma dada epidemia e cuja transmissão é sustentada de pessoa para pessoa. Nessa tônica, um dos temas que mais temos debatido, ultimamente, no campo das migrações, é sobre como governos nacionais têm reforçado o controle de fronteiras territoriais com o intuito de frear o espalhamento do vírus da COVID-19. Discutimos, também, o impacto dessas políticas fronteiriças na vida de populações em mobilidade migratória. Muitas delas indocumentadas e em condições de vulnerabilidade. Esse é, aliás, o tema central da parceria entre o Museu da Imigração de São Paulo e o Projeto (I)Mobilidade nas Américas, para a série "Mobilidade Humana e Coronavírus", do qual esse artigo faz parte. A fronteira é excludente. Todavia, o processo acentuado de sanitarização ao lado do já contínuo processo de securitização nos regimes fronteiriços, que presenciamos na atualidade, não é novo. Basta retomarmos cenários do final do século XIX e início do XX, com as grandes migrações para as Américas. Com receio da entrada de doenças junto com essa leva populacional – entendida como trabalhadores –, havia um processo "seletivo sanitário" definindo quem era saudável ou não para poder atravessar a fronteira.
Não por acaso, junto ao temor do espalhamento do vírus território adentro, gostaria de destacar, ainda, o processo de estigmatização que tem sido produzido nas e através das fronteiras, durante a pandemia de COVID-19. Diversos casos saltam aos olhos. Esse, aliás, foi tema cuidadosamente discutido no artigo Pandemia e estigma: nota sobre as expressões "vírus chinês" e "vírus de Wuhan"[1], de Deisy Ventura, também publicado nesse espaço, em setembro de 2020. Logo no início da pandemia da COVID-19, presenciamos o, então, presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dizer que o vírus tinha uma nacionalidade clara. Tratava-se de um vírus que havia aparecido na China e de lá se espalhou pelo mundo. Inclusive foi apontado como uma suposta arma biológica com o intuito de desestabilizar a democracia e a economia ocidental e permitir com que a China conquistasse, de vez, a corrida econômica contra... o próprio Estados Unidos! O tema ganhou força inclusive no Brasil, onde tivemos crises diplomáticas entre os governos brasileiro e chinês. Ao percorrermos matérias de jornais nacionais e internacionais, podemos notar o impacto que esse episódio gerou. Inúmeros casos de violência contra asiáticos foram noticiados. O vírus ganhou, assim, uma nacionalidade, um passaporte e logo passou a ser corporificado por todo e qualquer asiático que lembrasse um chinês. Em outras palavras, ser chinês significava ser contagioso. Nacionalidade tornou-se, nesse cenário, um termômetro social para o risco da pandemia. A literatura sobre nacionalismo nos demonstra que a fronteira entre nacionalizar e racializar nem sempre é tão demarcada e, dependendo das circunstâncias envolvidas, pode atenuar a xenofobia.
Ao longo desse ano, presenciamos, ainda, o surgimento da "variante sul-africana", da "cepa indiana", e, recentemente, das "variantes brasileiras". Variantes que foram resultantes de péssimas políticas nacionais de contenção do espalhamento do vírus e agora ganham, também, uma nacionalidade que, por sua vez, recai sobre a população. Como o título desse artigo indica, quero, brevemente, refletir no caso brasileiro. Em particular, convidar o leitor a pensar qual o impacto dessa variante sobre brasileiros que se encontram em zonas de fronteiras? Ou, ainda, como pensar naqueles brasileiros que, por exemplo, se encontram em situação indocumentada em um dado país estrangeiro e, portanto, sem direito à saúde?
O Brasil é um país que, com a criação da Nova República, em 1985, e a adoção de uma agenda neoliberal, a partir do governo Collor, passou a contar com o fenômeno migratório internacional enquanto parte da dinâmica social e, sobretudo, econômica da sua população. Desde então, nossa migração tem se tornado diversificada em sua composição. No início, foi, como as primeiras pesquisas apontam, majoritariamente composta por homens oriundos de classe média e que migravam de forma temporária, com o intuito de acumular recursos e retornar ao Brasil. Todavia, e sobretudo na primeira década dos anos 2000, o perfil do migrante brasileiro tornou-se mais complexo. Migrar para o exterior tornou-se mais acessível e, com isso, classe social, faixa etária, gênero, região de origem e motivos envolvidos na elaboração do projeto migratório, bem como tempo de duração, são alguns desses fatores que tornaram a migração brasileira diversificada. Não por acaso, hoje somos mais de 3 milhões de brasileiros espalhados pelo globo terrestre.[2] Países como Estados Unidos, Portugal, Japão, Reino Unido, Paraguai, Itália e Espanha figuram como os principais destinos. Ao longo dessas quase quatro décadas de migração, tivemos picos ou ondas migratórias, causadas por crises econômicas e que revelam um acentuado aumento de brasileiros no exterior. Em geral, são marcadas por um processo histórico conjuntural: a falta de um projeto nacional capaz de atender demandas sociais (emprego, segurança, saúde, educação...) de nossa população.
Estudos atuais sugerem que estamos passando por uma nova crise econômica e que, portanto, um novo pico migratório estaria em curso na sociedade brasileira. Matérias de jornal, por exemplo, atestam esse fenômeno. Esse é o caso de matéria publicada pela Carta Capital, que sugere um aumento significativo de "fuga de cérebros" do país entre os anos de 2019 e 2020[3]. Em geral, trata-se de uma população jovem, com formação no ensino superior e que, diante do intenso desmonte de cadeias econômicas produtivas nacionais, o baixo investimento em setores tecnológicos, o aumento recente do desemprego e do mercado informal, encaram a migração como a possibilidade de uma melhoria de vida. Os Estados Unidos são vislumbrados como um destino. A matéria, nesse caso, revela que "a busca pelo visto permanente dos tipos EB1 e EB2 aumentou 40%, na comparação com os anos de 2017 e 2018, e 135% quando se compara com 2015 e 2016, quando o país estava em recessão". Não apenas o processo migratório por meio da solicitação de vistos ocorre na sociedade brasileira. Testemunhamos, também, o aumento das tentativas de travessia clandestinas entre fronteiras. Recentemente, o G1 publicou matéria sobre o aumento recorde de brasileiros detidos diariamente na fronteira entre o México e os Estados Unidos.[4] De acordo com o site, apenas nos primeiros cinco meses desse ano, foram detidos 21,9 mil brasileiros durante a travessia. Esses números superam todo 2019, quando cerca de 18 mil brasileiros foram detidos. "Agora, o país é a oitava nação a mais enviar imigrantes irregulares aos EUA no mundo, à frente de países como a Venezuela e a Colômbia, por exemplo, e em patamar semelhante ao de Cuba." Similar processo ocorre com deportações em massa de brasileiros detidos, também, dentro do próprio Estados Unidos. Cabe destacar ao leitor que, desde 2006, o Brasil, através de acordos governamentais, não recebia de volta seus cidadãos sob tais condições. Contudo, entre 2019 e 2021, já tivemos mais de 21 voos trazendo brasileiros deportados dos Estados Unidos. No total, são mais de mil pessoas. Em suma, o argumento que sustenta a criminalização de brasileiros é a falta de documentação, o custo gerado para a sociedade de destino e o risco do "roubo" de postos de trabalho. Todavia, temos agora um novo fator: o estigma das "variantes brasileiras".
Ao longo de 2020 e deste ano, presenciamos o Brasil, gradativamente, ascender do papel de um epicentro continental da pandemia de COVID-19 para o sombrio papel de epicentro mundial. Dentre os impactos sofridos pela nossa população, presenciamos, cada vez mais, o fechamento de fronteiras para brasileiros, bem como um violento processo de estigmatização daqueles que se encontram no exterior. Mesmo com o forte aparato tecnológico e logístico do SUS e de centros de pesquisa nacionais, como a Fiocruz e o Butantã, testemunhamos a forte resistência do Governo Federal na organização de uma campanha nacional de prevenção ao espalhamento do vírus e vacinação em massa. Marcados por um deplorável discurso negacionista, que nega a ciência, em especial, a brasileira, setores conservadores de nossa sociedade promoveram desinformação e temor público quanto ao poder da vacina. Por outro lado, incitaram o uso indiscriminado de medicamentos sem eficácia comprovada e a imunidade de rebanho através da contaminação em massa. Não por acaso, o Brasil decolou no número de casos contaminados. Em estudo lançado em janeiro desse ano, pelo Lowy Institute, um think tank australiano, o Brasil aparecia como o país com a pior resposta pandêmica do mundo. Naquele momento (24/01/2021), tínhamos registrado 8.844.600 casos e 217.081 óbitos. Pouco mais de cinco meses depois, no exato momento em que redijo esse texto (28/06/2021), chegamos a marca de 18.420.598 casos confirmados e 513.544 mortes[5]. Nesse ínterim, foram identificadas três variantes da COVID-19 em território brasileiro.
Em pouco tempo, o espalhamento descontrolado da COVID-19 e o surgimento das variantes repercutiram negativamente no cotidiano de nossa população no exterior. As mesmas tornaram-se rapidamente atreladas ao migrante brasileiro. Novamente, o vírus ganhou uma nacionalidade e, por conseguinte, um corpo. O nosso corpo. Em outras palavras, foi corporificado por aqueles brasileiros que deixam o país em busca de condições melhores de vida. O argumento envolvido por detrás do risco da migração brasileira passou a ser não apenas mais de ordem econômica, mas, também, sanitária. Estratégia perversa para desqualificar, ainda mais, a baixa posição social que o migrante ocupa em determinada sociedade de imigração. Relatos de brasileiros em Portugal, por exemplo, revelam acusações de roubo de emprego e, agora, a disseminação de variantes brasileiras. Fomos, então, do "vírus chinês" e do "vírus de Wuhan" para a "variante brasileira". O impacto no fechamento de fronteiras ganhou força substancial no início desse ano. Diversos países impuseram restrições ao Brasil e, logo, nos tornamos o 2° país com mais restrições de entrada no exterior. Em março, por exemplo, 17 países deixaram de aceitar a entrada de pessoas ou voos que tenham passado pelo território brasileiro. Dentre eles, alguns dos países com forte presença da migração brasileira (Estados Unidos, Espanha, Reino Unido e Alemanha). Os dados são da IATA (International Air Transport Association) e foram publicados pela Folha de São Paulo.[6] Atualmente, estamos em uma "lista vermelha" elaborada pelas autoridades britânicas e que reúne 33 países. Charges publicadas nos jornais britânicos The Independent e The Guardian, por exemplo, expõem, de forma apelativa, a decisão. No primeiro caso, The Independent, encontramos uma charge que explora o Primeiro-Ministro, Boris Johnson, com um quepe do controle migratório, aparentemente dançando com um vírus, que remete a uma passista de carnaval brasileiro e perguntando há quanto tempo essa "potra safada" se encontra no Reino Unido.[7] O vírus é incorporado pela mulher brasileira em condição migratória e que, historicamente, sofre com um longo e complexo processo de estigmatização sexual. Contudo, não foi apenas no ato de atravessar fronteiras que essas condições sanitárias foram impostas. Residentes no exterior também passaram a experimentar diariamente a infame qualificação.
Na França, presenciamos publicações, vídeos e memes – nada jocosos – estigmatizando a comunidade brasileira ali residente. Elas são marcadas com a hashtag #VariantBresilien (variante brasileira). Porém, as agressões não estão restritas apenas ao universo virtual. Em um vídeo, recentemente, postado no Twitter, um homem visita um conhecido distrito de prostituição parisiense, o Bois de Boulogne, e intercepta trabalhadoras do sexo questionando se são brasileiras: "Variante brasileira? Acabaram de chegar na França?". Em artigo publicado na Folha de São Paulo, brasileiros residentes na França relatam perplexidade com os comentários xenófobos que acompanham o vídeo. Um dos entrevistados observa que brasileiros, além de serem mal vistos em geral, são agora tratados como ameaças internacionais.[8] Da Irlanda, onde vivem oficialmente cerca de 50.000 brasileiros, há também relatos de discriminação com referências diretas às variantes encontradas no Brasil. Um número significativo de motociclistas e entregadores de aplicativos no país são brasileiros e, em grupos de Facebook, expõem as violências sofridas. "Um cliente me disse, na minha cara, que os brasileiros estão aqui espalhando doenças, que eles trouxeram o Covid-19. Ele gritou e me perguntou porque eu não voltei à minha terra natal", comenta um desses brasileiros, para a mesma matéria do periódico paulistano.
Fruto de um projeto de nação excludente, a migração internacional tornou-se parte estruturante da sociedade brasileira. A agenda neoliberal adotada pelo Brasil, desde o início da década de 1990, cruelmente reprimariza nossa economia, através do agronegócio e de grandes mineradoras, e reduz postos de trabalho; ela, também, precariza as relações trabalhistas brasileiras em nome de uma falsa modernização. Com isso, milhões de brasileiros encontram-se, atualmente, no exterior. Muitos, por sinal, em condições precárias de vida. Diante da ineficiência do Governo Federal em controlar o espalhamento do vírus e as variantes encontradas em território nacional, o cenário deteriora-se, mais ainda, para aqueles que já deixaram o Brasil. São cruelmente discriminados. Assim, ao descumprir com o artigo n°196, da Constituição Federal de 1988, que afirma ser a saúde "[...] direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", o Estado brasileiro, de forma irresponsável, contribui para a estigmatização dessa mesma população que, por falta de oportunidades, viu-se impelida a migrar em busca de melhores condições de vida.
Gustavo Dias é sociólogo e professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e do Mestrado Associado UFMG-Unimontes em Mestrado, Ambiente e Sociedade. É coordenador do Odisseia - Núcleo de Pesquisa Abdelmalek Sayad/ CNPq. A sua pesquisa é focada na migração brasileira internacional com ênfase na mobilidade migratória e na produção fronteiriça. E, também, no pensamento de critico de Abdelmalek Sayad.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] São Paulo, 11 de setembro de 2020. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/pandemia-e-estigma-nota-sobre-as-expressoes-virus-chines-e-virus-de-wuhan.
[2] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. 2015.Diplomacia Consular, 2007 a 2015. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.
[3] São Paulo. 09 de junho de 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/fuga-de-cerebros-cresce-40-sob-o-governo-bolsonaro/?fbclid=IwAR1Z1PLwRWka1OgJ1Ml5L_ipxVcW0-w6jTekXDXUm5CWytxMEKqRBu_vN3s.
[4] Rio de Janeiro. 11 de junho de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/11/recorde-de-imigracao-150-brasileiros-sao-detidos-por-dia-ao-cruzar-a-fronteira-do-mexico-com-os-eua-em-2021.ghtml.
[5] WORDOMETERS. Acessado em 28 de junho de 2021. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/country/brazil.
[6] São Paulo. 03 de março de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/brasil-e-o-2o-pais-com-mais-barreiras-de-entrada-no-exterior-por-conta-do-coronavirus.shtml.
[7] Londres. 01 de março de 2021. Disponível em: https://www.independent.co.uk/voices/editorials/brazilian-variant-covid-uk-government-test-trace-b1809435.html.
[8] São Paulo. 17 de abril de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/04/brasileiros-sao-alvo-de-discriminacao-na-europa-devido-a-variante-do-virus.shtml.
Crédito foto da chamada: Joshua Woroniecki via Pixabay. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "I (MOBILIDADE) NAS AMÉRICAS" em branco.
A ocupação "(I) Mobilidade nas Américas" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o projeto de pesquisa regional "(In) Mobilidade nas Américas e COVID-19" para divulgação de artigos inéditos, escritos especialmente para esse espaço. O site do projeto de pesquisa, com todos os textos e materiais multimídia, pode ser consultado neste link. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.